Os dois recordes históricos sucessivos de calor na Antártida registrados na última semana podem ter relação direta com as tempestades que castigaram o Sudeste neste início de ano. A hipótese foi traçada por um cientista brasileiro analisando o caminho das massas de ar entre o continente austral e a América do Sul.

Como frequentemente ocorre com extremos climáticos, esses dois fenômenos são complexos e é difícil atribuí-los diretamente ao superaquecimento da Terra. Mas o climatólogo Francisco Aquino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), teoriza que uma união até aqui nunca antes observada entre os efeitos do aquecimento global e da redução do buraco na camada de ozônio pode ajudar a explicar ambos.

Na quinta-feira (13 de fevereiro), o jornal “The Guardian” publicou resultados de medições de cientistas brasileiros na ilha Seymour, na ponta leste da Península Antártica, segundo as quais a temperatura no último dia 9 bateu escaldantes (para padrões antárticos) 20,75 °C. Isso ocorreu dois dias depois de os argentinos terem medido a noroeste dali, na base Esperanza, 18,3 °C, até então a temperatura mais alta já registrada no continente – ahan – gelado.

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Os recordes vêm na esteira do mês de janeiro mais quente no mundo dos últimos 140 anos, segundo dados da NOAA (Agência Nacional de Oceanos e Atmosfera dos EUA), e do segundo ano mais quente desde o início das medições.

Espanto

O engenheiro agrônomo Márcio Francelino, da Universidade Federal de Viçosa, líder da equipe que fez a medição, está na Antártida e relatou ao Observatório do Clima (OC) como o registro foi feito. “No dia 9 de fevereiro eu estava na estação [brasileira] Comandante Ferraz e soube que tinham registrado a temperatura de 19,38 °C. Fiquei pasmo. Fui então verificar as temperaturas dos nossos sítios que possuem sistema de envio de dados via satélite e, quando observei os registros da ilha Seymour, o espanto foi ainda maior.”

Francelino ressalta que sua equipe estuda o permafrost (solos congelados) e não a meteorologia, e que o método de coleta de dados de temperatura de seu equipamento – a 1,5 m do solo e não a 2 m, como nas estações meteorológicas – não permite que o recorde seja computado como registro oficial pela Organização Meteorológica Mundial, diferentemente da medição feita na base Esperanza.

“Mas o mero registro de temperaturas tão anômalas é algo que deve ser melhor estudado”, afirmou. Aquela região da Antártida tem temperaturas médias de 0,5 °C em fevereiro. Neste mês as médias foram de 3,9 °C. “Em 17 anos vindo para cá eu nunca tinha experimentado temperaturas tão elevadas.”

“Estamos numa onda de calor inédita. Nós não temos nenhum registro disso desde que se começou a medir temperaturas na Antártida, na primeira metade do século 20”, afirmou ao OC o glaciologista Jefferson Simões, também da UFRGS, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera.

Anomalia nos ventos

Olhando os mapas de ventos do hemisfério sul nas últimas semanas, Francisco Aquino notou desde meados de janeiro uma anomalia nos ventos a 5 mil metros de altitude que favorecem a formação de ondas de calor. Os fortes ventos que sopram em volta da Antártida estão mais lentos neste verão. Isso faz com que a chamada corrente de jato, uma espécie de corredeira aérea que sopra em alta velocidade ao redor da parte meridional do hemisfério sul, comece a fazer meandros, como um desses rios preguiçosos da planície amazônica.

Esses meandros favorecem a entrada e a permanência de ar quente principalmente na Península Antártica, porção do continente antártico mais próxima dos outros continentes. Mas também têm outro efeito: o de exportar massas de ar frio antártico para as latitudes mais baixas. No caso, para o Atlântico Sul. Na animação abaixo, da NOAA, é possível ver o casamento quase perfeito entre a chegada de ventos quentes (vermelho) na Península e o envio de frentes frias (azul) para o litoral sul-americano.

Animação mostra o casamento perfeito entre a chegada de ventos quentes (vermelho) na Península e o envio de frentes frias (azul) para o litoral sul-americano. Crédito: NOAA

“Nas últimas três, quatro semanas, no sul do Brasil vêm passando frentes frias. Estou vendo que o ar do mar de Weddell [na Antártida] está se deslocando”, afirmou Aquino.

Essas frentes frias encontram a chamada Zona de Convergência Intertropical, o fenômeno meteorológico culpado pelas chuvas no Sudeste, e transformam as tempestades, que são normais para esta época do ano, em monstros bombadões capazes de parar uma cidade (São Paulo) e de matar dezenas (Belo Horizonte). “A culpa não é só do Atlântico Tropical e da Amazônia”, afirma o pesquisador gaúcho.

Ozônio

A causa dessa perturbação no regime de ventos ainda precisa ser estudada. Mas Aquino, especialista em conexões climáticas entre Antártida e América do Sul, diz que a diminuição no buraco na camada de ozônio na última primavera pode ter relação com isso.

Um dos efeitos do buraco é manter o interior da Antártida muito frio, criando uma diferença brusca de temperatura com os arredores que favorecem ventos mais fortes. O forte aquecimento da Terra, que aumenta a evaporação dos oceanos, pode ter injetado vapor d’água na estratosfera antártica em setembro do ano passado, inibindo a reação química que destrói a camada de ozônio.

“Em setembro e outubro tivemos o menor buraco no ozônio da história de nossas vidas”, diz Aquino. “Os ventos diminuíram de velocidade e ondularam.”

O efeito é contraintuitivo: os cientistas até agora achavam que o buraco na camada de ozônio, ao “engarrafar” o frio no interior da Antártida, favorecesse o aquecimento da Península. À medida que a camada de ozônio se recupera, o real efeito do aquecimento global poderá ser visto em todo o continente austral. A julgar por fevereiro de 2020, os auspícios são os piores possíveis.