Além dos símbolos da supremacia branca, muitos dos manifestantes no Capitólio em 6 de janeiro carregavam cartazes com mensagens religiosas, como “Jesus salva” e “Em Deus nós confiamos”, enquanto outros gritavam “Jesus é meu salvador e Trump é meu presidente”. Em uma entrevista em vídeo, um dos que invadiram o plenário do Senado descreve uma oração para “consagrá-lo a Jesus” logo após entrar.

Muitos líderes evangélicos brancos forneceram justificativa religiosa e apoio eterno para a presidência de Trump, incluindo sua retórica e políticas racialmente incendiárias. Mas como estudioso da religião, afirmo que um segmento particular do evangelismo branco que meu colega Richard Flory e eu chamamos de Independent Network Charismatic Christianity (Rede do Cristianismo Carismático Independente, em tradução livre), ou INC, desempenhou um papel único no fornecimento de uma justificativa espiritual ao movimento para derrubar a eleição que resultou na invasão do Capitólio.

O Cristianismo INC é um grupo de líderes independentes de alto perfil que são desconectados de qualquer denominação formal e cooperam uns com os outros em redes abertas.

Donald Trump: na visão do cristianismo apregoado pela INC, o presidente ungido por Deus. Crédito: Gage Skidmore/Wikimedia Commons
Marchas de oração

Nos dias e horas que antecederam a invasão do Capitólio dos EUA, o grupo Jericho March organizou marchas ao redor do Capitólio e do prédio da Suprema Corte, orando a Deus para derrotar as forças “obscuras e corruptas” que, conforme alegavam sem evidências, roubaram a eleição do presidente ungido por Deus – Donald Trump.

O Jericho March é uma coalizão frouxa de nacionalistas cristãos formada após a eleição presidencial de 2020 com o objetivo de anular seus resultados. Antes e depois da violência no Capitólio, o site deles declarou: “Estamos orgulhosos do sistema americano de governança estabelecido por nossos fundadores e não vamos deixar que globalistas, socialistas e comunistas destruam nossa bela nação esquivando-se de nossas leis e suprimindo a vontade do povo americano por meio de suas atividades fraudulentas e ilegais nesta eleição”. Essa declaração e outras foram removidas algum tempo após o motim do Capitólio.

A principal atividade do Jericho March tem sido organizar marchas de oração em torno dos edifícios do Capitólio em todo o país após a eleição, imitando a “batalha de Jericó” na Bíblia. Nessa batalha bíblica, Deus comandou o exército de seu povo escolhido, a nação de Israel, para tocar trombetas e então marchar ao redor dos muros da cidade até que Deus derrubou os muros e permitiu que Israel invadisse e conquistasse a cidade. De acordo com a Bíblia, essa foi a primeira batalha que a nação venceu na conquista de Canaã, a “terra prometida” que ocupou posteriormente.

Motivação religiosa

As atividades do Jericho March culminaram em um grande comício de oração em 12 de dezembro em Washington, a capital americana, que incluiu marchas de oração e discursos no Mall (parque da cidade) do ex-conselheiro de Segurança Nacional Michael Flynn, da ex-deputada americana Michele Bachmann, do fundador da empresa de travesseiros My Pillow e apoiador de Trump Mike Lindell e do fundador da milícia de extrema direita Oathkeepers Stewart Rhodes.

Michael Flynn, ex-conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump, entre outros palestrantes em um comício do grupo Jericho March

Eles também realizaram marchas de oração e vigílias em torno da Suprema Corte e do Capitólio em torno da certificação eleitoral de 6 de janeiro. Os membros do Jericho March acreditam que suas marchas de oração ajudarão a derrotar as forças corruptas que, eles afirmam sem base em nenhuma evidência, “roubaram” a eleição, e que Deus instalaria Trump em seu lugar de direito como presidente em 20 de janeiro.

Sua estratégia são marchas pacíficas de oração, no entanto. Após a violência no Capitólio, eles divulgaram esta declaração: “O Jericho March denuncia todo e qualquer ato de violência e destruição, incluindo qualquer um que tenha ocorrido no Capitólio dos Estados Unidos.”

Não há evidências de que alguém afiliado à organização Jericho March tenha participado da violação do Capitólio. No entanto, seus líderes, afirmo, estão fornecendo a motivação religiosa para a luta para derrubar a eleição. Aqui está o porquê.

“Profetas” e cristianismo carismático

Uma parte importante dos eventos do Jericho March foi um grupo de cristãos da INC que afirmam ser “profetas” modernos, incluindo Lance Wallnau, Cindy Jacobs e Jonathan Cahn.

O cristianismo carismático, semelhante ao cristianismo pentecostal, enfatiza os “dons do Espírito Santo”, que incluem cura, exorcismo, falar em línguas espirituais e profecia – definida como ouvir palavras diretas de Deus que revelam seus planos para o futuro e direções para seu povo seguir.

Lance Wallnau, um dos chamados “profetas” carismáticos. Crédito: Twitter/Reprodução

Os estudiosos usam o termo carismático para descrever os cristãos nas igrejas tradicionais ou independentes que enfatizam os dons do espírito em oposição aos cristãos pentecostais, que são filiados a denominações pentecostais oficiais. Cristãos carismáticos independentes tendem a ser menos ortodoxos em suas práticas, pois estão menos ligados a organizações formais.

Em nossa pesquisa, descobrimos que, na maioria das igrejas carismáticas, aqueles os quais recebem visões ou palavras diretas de Deus que fazem previsões mais tarde correspondentes a eventos ou têm percepções misteriosas sobre a vida das pessoas são vistos como possuidores do “dom da profecia”. Alguns “profetas” particularmente talentosos são vistos como capazes de predizer eventos mundiais e obter orientações de Deus em relação a nações inteiras.

Embora a maioria das igrejas carismáticas não se envolva nesse tipo de profecia de predição de eventos mundiais, alguns líderes independentes e de alto nível que o fazem se tornaram cada vez mais importantes no cristianismo da INC.

Teologia heterodoxa

Antes da eleição de 2016, um grupo de “profetas” da INC proclamou Trump como o candidato escolhido por Deus, semelhante ao rei Ciro na Bíblia, a quem Deus usou para restaurar a nação de Israel. Depois que suas profecias sobre a vitória de Trump na eleição se tornaram realidade, esses “profetas” se tornaram enormemente populares no cristianismo da INC.

Em nosso livro, The Rise of Network Christianity (Oxford University Press), mostramos que o cristianismo da INC está mudando significativamente a paisagem religiosa na América – e a política do país – ao fornecer uma teologia heterodoxa para promover a ascensão de cristãos conservadores ao poder em todas as esferas da sociedade. É o grupo cristão de crescimento mais rápido nos Estados Unidos.

Entre 1970 e 2010, o número de frequentadores regulares das igrejas protestantes dos Estados Unidos como um todo encolheu em média 0,05% ao ano. Ao mesmo tempo, as igrejas carismáticas independentes, uma categoria na qual os grupos da INC residem, aumentaram em frequência em uma média de 3,24% ao ano. De acordo com o World Christian Database, há mais de 36 milhões de pessoas frequentando igrejas carismáticas independentes dos EUA – isto é, aquelas não filiadas a denominações.

“Sete montanhas de influência”

As crenças da INC são diferentes daquelas da maioria dos grupos cristãos tradicionais, incluindo aqueles afiliados a denominações pentecostais oficiais. A INC promove uma forma de nacionalismo cristão, cujo objetivo principal não é construir congregações ou converter indivíduos, mas trazer o céu ou a sociedade perfeita pretendida por Deus para a Terra, colocando “pessoas que pensam no reino” em posições de poder no topo de todos os setores da sociedade, as chamadas “sete montanhas de influência”, compreendendo governo, negócios, família, religião, mídia, educação e artes/entretenimento.

Um líder da INC que entrevistamos em 2015 explicou: “Se os cristãos penetrassem em cada montanha e subissem ao topo de todas as sete montanhas (…), a sociedade teria moralidade bíblica, as pessoas viveriam em harmonia, haveria paz e não guerra, não haveria pobreza”. Eles veem Trump como cumprindo o plano de Deus de colocar líderes “voltados para o reino” nos principais cargos do governo, incluindo membros do Gabinete e nomeações para a Suprema Corte.

Trump como presidente escolhido por Deus

Muitos dos referidos como profetas no cristianismo da INC previram outra vitória de Trump em 2020. Após sua derrota em 3 de novembro, muitos dos que estudamos não se retrataram de suas profecias e adotaram a retórica conspiratória de Trump de que a eleição foi fraudulenta. Muitos acreditam que as forças demoníacas que roubaram a eleição ainda podem ser derrotadas por meio da oração.

Para os “profetas” do cristianismo da INC, Trump é o candidato escolhido por Deus para fazer avançar o reino de Deus nos Estados Unidos. Então, qualquer outro candidato, não importa o que o total de votos mostre, é ilegítimo.

 

* Brad Christerson é professor de sociologia na Universidade Biola (EUA).

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.