Ao se olhar no espelho de manhã, você nunca está sozinho. Vivendo na boca, no nariz, nas orelhas, no intestino, nas áreas genitais e na superfície da pele há um sem-número de seres minúsculos cuja atuação tem enorme influência em nosso cotidiano. A maior parte deles nos ajuda em tarefas como alimentar nossas células, digerir os alimentos, sintetizar vitaminas e manter nosso sistema imunológico ativo. Uma parcela, porém, pode estar por trás de problemas como asma, doença inflamatória intestinal, câncer e até obesidade.

Esse segundo genoma – o microbioma (ou microbiota) – representa um desafio colossal para os pesquisadores. As cerca de dez trilhões de células humanas que cada pessoa saudável possui convivem com aproximadamente 100 trilhões de células não humanas – bactérias, vírus e fungos. Para cada gene humano há cerca de 100 genes microbianos. Mas, até recentemente, apenas cerca de 1% dos micróbios podia ser cultivado – a única maneira de estudá-los.

A evolução das técnicas de sequenciamento de DNA, porém, tornou possível detectar esses microrganismos diretamente, o que facilitou a pesquisa. Uma ideia básica passou a atrair os cientistas: se existem bactérias que nos fazem adoecer e até morrer, há outras que contribuem para a nossa saúde. “Já sabíamos há bastante tempo que essa microbiota é responsável por diversos efeitos benéfi cos para o hospedeiro”, afirma Flaviano Martins, professor do Departamento de Microbiologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Entre eles estão a maturação e modulação do sistema imune, a resistência à colonização (ou seja, a capacidade dessa microbiota de não deixar que microrganismos patogênicos se instalem) e a maturação e contribuição na fisiologia digestiva, em especial com a produção de vitaminas do complexo B e vitamina K e de ácidos graxos de cadeia curta, que servem de substratos nutricionais complementares para as células do nosso corpo.”

Mapear o conjunto de seres microscópicos que vivem em nós e entender como coexistem conosco foi o ponto de partida, em 2007, para o Projeto Microbioma Humano (HMP, na sigla em inglês), cujos primeiros resultados foram divulgados em junho. Orçado em US$ 115 milhões, o HMP foi patrocinado pelo National Institutes of Health dos Estados Unidos (NIH) e contou com a participação de 250 pesquisadores de 80 instituições internacionais. A diretriz foi retratar o microbioma de um ser humano em condições ótimas de saúde, e para isso 242 homens e mulheres americanos saudáveis, com idade entre 18 e 40 anos, tiveram amostras colhidas de cinco regiões (vias aéreas, cavidade oral, trato digestivo, órgãos sexuais e pele), três vezes ao longo de 22 meses. O material coletado (cinco mil amostras) foi submetido aos mais modernos métodos de sequenciamento de DNA e algoritmos computacionais.

Os primeiros resultados do projeto – um catálogo da fauna interior humana e descobertas adicionais sobre o tema – apareceram em junho, em dois trabalhos publicados na revista Nature e 16 veiculados na PloS One. Os perfis iniciais mostram que não há um inventário específico de microbioma associado ao ser humano saudável. “Constatamos que cada indivíduo tem uma composição microbiana única, da mesma forma que o genoma de cada indivíduo é único”, declarou o biólogo americano Curtis Huttenhower, um dos autores do estudo.

Esse genoma varia segundo a idade – durante os quase dois anos da pesquisa, foram observadas várias mudanças nas pessoas analisadas. Descobriuse também que alguns ecossistemas humanos são muito mais ricos em vida do que outros – na saliva, por exemplo, existem muito mais bactérias do que na vagina.

Início promissor

O que explica as diferenças? Por enquanto somente um aspecto está definido pelos pesquisadores: a etnia da pessoa tem relevância nessa discussão. Mas ela, isoladamente, determina as alterações ou induz os indivíduos, por meio de características do modo de vida (como alimentação, vestuário, amamentação, exposição ao ambiente, sedentarismo ou atividade física rotineira), a constituir seu microbioma específico? Acredita-se que todos esses fatores estão inter-relacionados, mas as respostas a essas perguntas virão apenas a partir de mais estudos sobre o material coletado.

Os cientistas reconhecem que o trabalho está ainda em seus estágios iniciais e têm boas expectativas quanto ao que está por vir. “Estamos apenas começando a olhar as primeiras peças do quebra-cabeça”, afirma o imunologista australiano Charles Mackay.

Para Martins, as novidades positivas devem aparecer sobretudo em tratamentos de saúde. “Diversas aplicações clínicas poderiam surgir a partir de um estudo desse porte, como no caso da doença de Crohn, em que o sistema imunológico do hospedeiro responde de forma excessiva e anormal contra a microbiota do intestino, levando à sua alteração”, avalia. “O conhecimento dos microrganismos que estão alterados (de forma positiva ou negativa) e da identidade dos genes microbianos anormalmente expressos naquele indivíduo doente poderia auxiliar numa terapia de reposição microbiana.” Outra doença que, de acordo com ele, pode se beneficiar desse conhecimento é a obesidade, já associada a mudanças no microbioma.