Atualmente, a maioria dos antivirais em uso tem como alvo partes de um vírus invasor. Infelizmente, o SARS-CoV-2 – o vírus que causa a covid-19 – provou ser difícil de matar. Mas os vírus dependem de mecanismos celulares nas células humanas para ajudá-las a se espalhar. Por isso, deve ser possível alterar um aspecto do corpo de uma pessoa para impedir isso e desacelerar o vírus o suficiente para permitir que o sistema imunológico lute contra o invasor.

Sou biólogo quantitativo e meu laboratório construiu um mapa de como o coronavírus usa células humanas. Usamos esse mapa para encontrar medicamentos já existentes que poderiam ser reaproveitados para combater a covid-19 e estamos trabalhando com um grupo internacional de pesquisadores chamado QBI Coronavirus Research Group para verificar se os medicamentos que identificamos mostravam alguma promessa. Muitos têm.

Por anos, os pesquisadores suspeitam que as quinases (ou cinases) – interruptores de controle biológico que os vírus usam para controlar as células – possam ser direcionadas para combater infecções. Nos últimos meses, construímos um segundo mapa mais detalhado, procurando especificamente as quinases que o coronavírus está sequestrando.

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Usando esse mapa, identificamos alguns medicamentos contra o câncer já existentes que alteram a função das quinases que o SARS-CoV-2 sequestra e começamos a testá-los em células infectadas por coronavírus. Os resultados desses testes iniciais são promissores o suficiente para trabalharmos com alguns grupos e já iniciarmos ensaios clínicos em humanos.

Mapa que mostra como o coronavírus altera a função das quinases – interruptores celulares envolvidos na maioria dos processos biológicos – e as proteínas que elas controlam. Ele guiou pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Francisco a medicamentos contra o câncer que poderiam combater a covid-19. Bouhaddou et al. © Elsevier 2020, CC BY-ND
Quinases na doença e como alvos de remédios

As quinases são proteínas encontradas em todas as células do nosso corpo. Existem 518 quinases humanas. Elas atuam como os principais centros de controle para praticamente todos os processos do corpo. Elas conseguem adicionar um pequeno marcador – um processo chamado fosforilação – a outras proteínas e, assim, mudar como, se e quando uma proteína fosforilada pode fazer seu trabalho.

Por exemplo, se uma célula estiver se preparando para crescer – digamos, para curar um corte no seu dedo –, as quinases específicas serão ativadas e começarão a dizer às proteínas envolvidas no crescimento celular o que fazer. Muitos cânceres são causados ​​por quinases hiperativas que levam ao crescimento descontrolado das células, e os medicamentos que desaceleram as quinases podem ser altamente eficazes no tratamento do câncer.

As quinases são atores centrais na função celular e na maioria das doenças. Portanto, pesquisadores e empresas farmacêuticas as têm estudado em grande detalhe.

Mecanismo avariado

As quinases também são bastante fáceis de atingir com medicamentos devido à maneira como adicionam marcadores de fosforilação às proteínas. Pesquisadores desenvolveram um grande número de remédios, particularmente medicamentos contra o câncer, que funcionam essencialmente jogando uma chave na mecânica de quinases específicas, a fim de interromper o crescimento celular.

Então, o que isso tem a ver com o coronavírus? Bem, o vírus e o câncer têm mais em comum do que você imagina. O câncer é essencialmente um mau funcionamento do maquinário celular que causa crescimento celular descontrolado.

Os vírus também alteram a função do maquinário celular – ainda que de propósito – mas, em vez de causar crescimento celular, o maquinário é redirecionado para produzir mais vírus. Não surpreende que os vírus controlem muitas quinases para fazer isso.

Imagem de microscópio mostra uma célula infectada com incrementos de SARS-CoV-2 e filopodia (em branco) que se estendem para fora da superfície celular contendo partículas virais (em vermelho). Crédito: Robert Grosse, CIBSS, Universidade de Freiburg/Bouhaddou et al. © Elsevier 2020, CC BY-ND
Coronavírus nos controles

Essa ideia – que o SARS-CoV-2 está usando quinases para sequestrar máquinas celulares – é o motivo pelo qual desejamos construir um mapa de todas as quinases que são controladas pelo coronavírus. Qualquer interação vírus-quinase pode ser um alvo potencial para medicamentos.

Para fazer isso, primeiramente infectamos células de macacos-verdes (Chlorocebus sabaeus) – que são substitutos razoavelmente bons para células humanas quando se trata de infecção por vírus – com SARS-CoV-2. Em seguida, trituramos essas células infectadas e usamos um dispositivo chamado espectrômetro de massa para ver quais proteínas foram fosforiladas nessas células infectadas. Fizemos o mesmo com células saudáveis.

É realmente impossível ver quais quinases são ativadas a qualquer momento. Mas como cada quinase pode anexar marcadores de fosforilação a apenas algumas proteínas específicas, os pesquisadores podem observar as proteínas fosforiladas para determinar quais quinases estão ativas a qualquer momento.

Fizemos duas listas: uma de proteínas fosforiladas em células saudáveis ​​e uma de proteínas fosforiladas em células infectadas. Em seguida, comparamos as duas. Observando as diferenças entre as listas infectadas e não infectadas, conseguimos determinar quais quinases o coronavírus usa para reproduzir.

Alvos promissores

Como os pesquisadores ainda não entendem completamente o que todas as 518 quinases humanas fazem, fomos capazes de procurar efeitos em apenas 97 das que mais conhecemos. Mas isso acabou sendo mais do que suficiente. Dessas 97 quinases, encontramos 49 que o vírus afeta.

Alguns dos mais interessantes incluem a caseína quinase 2 (CK2), que está envolvida no controle de como uma célula é formada. Também identificamos várias quinases que trabalham juntas na chamada via de sinalização p38/MAPK. Essa via responde por e controla a reação inflamatória do nosso corpo. É possível que essas quinases possam estar envolvidas na tempestade de citocinas – uma reação exagerada do sistema imunológico – que alguns pacientes graves de covid-19 experimentam.

Ao identificarmos as quinases envolvidas na replicação do SARS-CoV-2, também pudemos aprender muito sobre como o vírus altera nosso corpo. Por exemplo, a CK2 se torna muito mais ativa durante o curso da infecção por coronavírus e causa o crescimento de pequenos tubos que se estendem a partir da superfície da célula. Sob um microscópio, parece que a célula tem uma cabeça cheia de cabelos. Acreditamos que o SARS-CoV-2 possa estar usando essas longas projeções celulares – chamadas filopodia – como rotas virais para aproximar novos vírus das células vizinhas, facilitando a infecção.

Testar os medicamentos contra o câncer promissores no laboratório foi o primeiro passo e, após dezenas de promessas, iniciamos o processo de deflagrar os ensaios clínicos. Crédito: QBI UCSF, CC BY-ND
Inibidores de quinases no laboratório e em ensaios clínicos

Aprender mais sobre a função do vírus é interessante para um biólogo como eu e pode ser útil no futuro, mas o objetivo final do nosso projeto era encontrar medicamentos para tratar a covid-19.

Depois que soubemos quais quinases o SARS-CoV-2 usa para se replicar e as proteínas que ele altera, examinamos um banco de dados de cerca de 250 medicamentos inibidores de quinases para ver se algum deles atingia as quinases usadas pelo vírus. Para aumentar nossas chances, também procuramos medicamentos que atingem algumas das proteínas nas quais as quinases atuam. E com certeza encontramos alguns.

Oitenta e sete medicamentos já existentes alteram as vias controladas por quinase usadas pelo coronavírus. A maioria desses medicamentos já está aprovada para uso humano ou está atualmente em ensaios clínicos para tratar o câncer e pode ser rapidamente redirecionada para o tratamento de pacientes com covid-19.

Com essas indicações, nossos colaboradores em Nova York e Paris testaram o efeito de 68 desses medicamentos em células infectadas com SARS-CoV-2. Vários deles foram eficazes em matar o vírus nas células. Alguns deles, com os quais estamos especialmente animados – silmitasertibe, gilteritinibe, ralimetinibe, apilimode e dinaciclibe – são aprovados para tratamento, em testes clínicos ou em desenvolvimento pré-clínico para várias doenças.

Medicamentos adicionados

O silmitasertibe interrompe a caseína quinase 2, a quinase que faz com que as células cresçam os vírus que espalham os tubos de filopodia. Assim que a empresa que fabrica o silmitasertibe ouviu essa notícia, anunciou que queriam testar o medicamento contra a covid-19 na clínica.

As drogas que atingem as vias de sinalização da quinase estão no radar dos pesquisadores como potenciais antivirais poderosos há anos, mas nenhuma chegou a ser concretizada. Ao olhar para essa nova área de aplicações de medicamentos e usar nossa nova abordagem de mapeamento, nossa equipe adicionou dezenas de medicamentos à crescente lista de ferramentas possíveis para ajudar a combater essa pandemia.

Ainda é muito cedo para dizer se algum desses medicamentos funcionará para tratar a covid-19 em pacientes. Mas quanto mais chances tivermos, melhor.

 

* Nevan Krogan é professor e diretor do Quantitative Biosciences Institute e pesquisador sênior do Gladstone Institutes, da Universidade da Califórnia em San Francisco (EUA).

** Este artigo foi republicado do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original aqui.