Os corticoides são medicamentos amplamente disponíveis no mundo, usados há décadas por causa de sua ação anti-inflamatória e imunossupressora. Também conhecidos como corticosteroides, eles simulam a atuação do cortisol, um hormônio naturalmente produzido no organismo pelas glândulas suprarrenais, e freiam a atividade do sistema de defesa. Por essa razão, costumam ser utilizados para tratar doenças em que a atividade imunológica foge ao controle e passa a agredir o próprio corpo.

Dois estudos publicados na quarta-feira, 2 de setembro, confirmam a utilidade desses fármacos na terapia de casos graves da covid-19, também marcados por uma reação inflamatória exagerada. Apresentados no “Journal of the American Medical Association (Jama)”, os resultados mostram ao menos dois benefícios desses medicamentos. Os corticoides reduziram em cerca de um terço a mortalidade de pessoas internadas com a doença, como já havia indicado uma pesquisa anterior. Além disso, diminuíram o tempo em que os doentes permanecem entubados, recebendo ventilação mecânica.

Com base nesses achados, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reviu suas orientações para o tratamento da doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que devem ser publicadas em breve no periódico científico “The BMJ”. Nas novas diretrizes, elaboradas com a participação de especialistas de duas instituições brasileiras e anunciadas também em 2 de setembro, a entidade passou a recomendar “fortemente” o uso de corticoides na terapia de pessoas internadas com covid-19 necessitando de suporte respiratório. Na versão anterior do documento, datada de 27 de maio, antes de sair o primeiro trabalho indicando a ação protetora desses medicamentos, a OMS não aconselhava o uso de corticoides. Ela sugere, no entanto, que esses fármacos não sejam adotados na terapia dos casos mais leves (eles são contraindicados como medida de prevenção à infecção).

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Resultados promissores

Os corticoides começaram a atrair a atenção de médicos e autoridades de saúde em 22 de junho, quando foram anunciados os resultados preliminares de um rigoroso estudo realizado no Reino Unido. Em um dos braços do ensaio clínico Randomized Evaluation of Covid-19 Therapy (Recovery), os pesquisadores selecionaram aleatoriamente 2,1 mil pessoas internadas com a doença para receber o corticoide dexametasona, além do tratamento convencional. Enquanto isso, outras 4,3 mil foram tratadas com a terapia-padrão. Publicados em 17 de julho no “New England Journal of Medicine”, os dados mostraram que a administração de doses baixas (6 miligramas por dia) de dexametasona diminuiu em cerca de 20% a taxa de óbito de pessoas que recebiam oxigênio por cateter ou máscara e em aproximadamente 30% a dos pacientes entubados.

Promissor, o resultado foi suficiente para os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos incorporarem em suas diretrizes a recomendação de uso da dexametasona em pacientes necessitando de suplementação de oxigênio. A OMS, no entanto, decidiu aguardar mais evidências e estabeleceu uma parceria com os coordenadores de sete ensaios clínicos que avaliavam diferentes corticoides (dexametasona, hidrocortisona ou metilprednisolona) em 12 países, entre eles o Brasil.

Essa colaboração, conhecida como React, sigla de Rapid Evidence Appraisal for Covid-19 Therapies, possibilitou a realização de uma meta-análise. Esse tipo de estudo combina os resultados de múltiplos testes clínicos e permite estimar com mais precisão o efeito de um tratamento. A OMS considerou os dados publicados agora no “Jama” suficientemente robustos para indicar o uso de corticoides no manejo clínico da covid-19.

Diferença significativa

A análise combinada avaliou a eficácia dos corticoides associados ao tratamento convencional com a da terapia-padrão. No primeiro grupo, 678 pessoas com quadro grave de covid-19 foram aleatoriamente selecionadas para receber doses de dexametasona, hidrocortisona ou metilprednisolona. Já no grupo de controle, usado para comparação, 1.025 participantes tiveram acesso apenas ao tratamento convencional ou a essa terapia mais placebo (composto sem ação farmacológica). Morreram 32,7% dos integrantes (222 pessoas) do primeiro grupo e 41,5% (425 indivíduos) do segundo. Essa diferença é significativa do ponto de vista estatístico.

“O uso de corticoides é o único tratamento que conclusivamente mostrou reduzir a mortalidade em pacientes com covid-19”, declarou Jonathan Sterne, pesquisador da Universidade de Bristol, no Reino Unido, e um dos autores da meta-análise, ao jornal “The Washington Post”. “Esses resultados reforçam a evidência de que os médicos deveriam tratar os pacientes criticamente doentes com corticoides, a menos que haja uma razão forte para não o fazer.”

A meta-análise da React revelou ainda que a hidrocortisona produziu efeitos tão bons quanto os da dexametasona, até então o único corticoide que havia salvado vidas na pandemia e estava sendo adotado por hospitais de diferentes países. A dexametasona reduziu em aproximadamente 36% o número de mortes, e a hidrocortisona, em 31%. Já a ação da metilprednisolona foi um pouco inferior: baixou em 9% a mortalidade.

Menos tempo de ventilação mecânica

Doses elevadas de dexametasona diminuíram também em 2,6 dias o tempo que os pacientes com quadro moderado ou grave da doença permaneciam sob ventilação mecânica. Essa conclusão, apresentada em um artigo separado no “Jama”, resulta de um estudo conduzido em 41 hospitais brasileiros. Nele, os pesquisadores da Coalizão Covid-19 Brasil administraram doses diárias de dexametasona a 151 pessoas, além do tratamento-padrão. O desfecho foi comparado com o de 148 participantes que receberam apenas as terapias convencionais.

Em 28 dias de internação, os integrantes do primeiro grupo respiraram, em média, 6,6 dias sem a ajuda de aparelhos. No grupo de controle, a média de tempo sem a necessidade de ventilação mecânica foi de quatro dias. A redução no tempo de suporte ventilatório diminui o risco de complicações e danos aos pulmões.

“Finalmente encontramos um tratamento que funciona e faz com que o pulmão das pessoas se recupere mais rápido, apressando a saída da ventilação mecânica”, afirmou ao jornal “O Globo” o epidemiologista Otávio Berwanger, diretor da Academic Research Organization (ARO) do Hospital Israelita Albert Einstein e um dos autores do estudo.

Em um editorial que acompanhou os dois artigos, Hallie Prescott, da Universidade de Michigan, e Todd Rice, da Universidade Vanderbilt, ambas nos Estados Unidos, afirmam que os estudos publicados agora fortalecem a confiança nos corticoides e definem melhor o benefício produzido por esses fármacos. Os novos achados representam um avanço importante no tratamento da doença, que, no entanto, permanece sem cura. “Por mais impressionantes que esses resultados sejam, isso não é uma cura”, disse Anthony Gordon, pesquisador do Imperial College de Londres e coautor da meta-análise, à imprensa. “É vital mantermos as estratégias de prevenção.” Até 2 de setembro, o novo coronavírus já havia infectado ao menos 25,6 milhões de pessoas no mundo e causado a morte de 852 mil.

 

ARTIGOS CIENTÍFICOS

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Corticosteroids for Covid-19. Living Guidance. 2 set. 2020. The WHO rapid evidence appraisal for Covid-19 therapies (React) working group. Association between administration of systemic corticosteroids and mortality among critically ill patients with Covid-19. Jama. 2 set. 2020.

TOMAZINI, B. M. et al. Effect of dexamethasone on days alive and ventilator-free in patients with moderate or severe acute respiratory distress syndrome and Covid-19 – The CoDEX randomized clinical trial. Jama. 2 set. 2020.

PRESCOTT, H. C. e RICE, T. W. Corticosteroids in Covid-19 ARDS – Evidence and hope during the pandemic. Jama. 2 set. 2020.