Em Havana Velha, o belo Ford 53, constantemente alugado para turistas, circula pelas mesmas ruas onde caminhões são adaptados para o transporte coletivo.

“Fidel é a principal força da revolução, mas também sua principal debilidade”, diz Gabriel García Márquez. Para muitos, a herança que Fidel Castro deixa depois de 49 anos é terrível e ponto. Alguns se servem de estatísticas da Cuba republicana para demonstrar o fracasso: em 1959, com uma população de seis milhões de pessoas, a ilha possuía mais eletrodomésticos que qualquer outro país da América Latina e tinha mais quilômetros em linhas férreas e melhor infra-estrutura que qualquer um dos países vizinhos. Em 1958, a produção de açúcar superou quatro vezes a alcançada em 2007. Isso sem falar dos direitos políticos e civis e da reforma agrária, já que hoje praticamente metade das terras está nas mãos do Estado, improdutivas, o que força a uma importação de 80% dos alimentos consumidos.

Para os defensores do sistema, os dados que contam são outros: além da infra- estrutura sanitária e dos índices de saúde em nível de Primeiro Mundo, a revolução deixa um país com 800 mil graduados universitários, 1,5 milhão de pessoas com formação de técnico profissional e nove mil cientistas. Esse capital humano é o principal orgulho de Cuba, ao lado de outros intangíveis, como o sentido de independência e soberania, que tornam muito difícil a volta do “imperialismo ianque” contra o qual Castro lutou durante toda a vida.

Uma volta por Havana acaba por atestar todos os paradoxos de Cuba. Milhares de edifícios na capital parecem ter sido bombardeados na noite anterior, uma imagem que será a fatura mais alta que a história cobrará dos 49 anos de governo de Fidel Castro. O desastre é bem visível. Havana Velha, Centro Havana, Cerro e 10 de Outubro têm mais de 72 mil casas em estado precário. Até os turistas mais militantes ficam impressionados com a visão e voltam para casa mais chocados por isso do que por qualquer consideração política.

Da mesma forma, o processo que congelou o desenvolvimento de Havana durante 50 anos conservou milagrosamente bairros como o Vedado, que passou incólume à especulação imobiliária e aos arranha-céus. A situação arquitetônica é um bom modelo para se entender o legado de Fidel Castro. E as contradições podem ser aplicadas a outros aspectos, sucessivamente. O escritor espanhol Manuel Vásquez Montalbán observou que a revolução cubana possibilitou a Cuba ter mais bailarinos clássicos por habitante do que qualquer outro país do mundo. Mas esse mesmo país não conseguia impedir que bailarinos, percussionistas, neurocirurgiões e técnicos em informática fugissem de Cuba assim que percebiam que ali não haveria emprego.

No mesmo passeio por Havana ou qualquer cidade do interior de Cuba, uma observação salta aos olhos. Cadeiras de balanço nas portas das casas, gente disposta a discutir assuntos variados e uma aptidão para a arte, que parece nata a quem nasceu ali.

Cubana veste-se a caráter para posar para turistas no centro histórico de Havana; Yenni Mendoza, 11 anos, uma das milhões de crianças que recebem o apoio do Estado para estudar. O centro histórico de Baracoa. Nas feiras os produtos são vendidos em peso cubano, não disponível para turistas. Imagens de Che Guevara estão em toda parte.

NO CAMPO DA EDUCAÇÃO, Cuba mantinha três universidades antes de 1959, concentradas em Havana. Hoje são 67 faculdades espalhadas pela ilha, 98% da população estuda até a universidade e o analfabetismo é mínimo. A escola é um patrimônio nacional, pais que não mandam filhos para a escola são punidos. Os livros são traduzidos em edições populares e o nível de leitura é muito alto. Um brasileiro não deve estranhar se algum cubano lhe perguntar – com bom conhecimento de causa – por Gilberto Freyre, Jorge Amado ou Guimarães Rosa.

Cuba tem um médico para cada 160 cubanos e aplica como nenhum país da América Latina a prática da medicina preventiva. A taxa de mortalidade infantil é de cinco crianças para cada mil que nascem, índice equivalente a qualquer país de Primeiro Mundo. Além da presença em todas as principais competições internacionais, Cuba incentiva a prática esportiva desde a infância, com “olheiros” do Ministério dos Esportes que buscam atletas com potencial a ser desenvolvido pelos quatro cantos da Ilha.

Contudo, a imagem dos caranguejos que insistem em atravessar a via asfaltada entre a capital e as praias do extremo leste de Cuba supõe uma metáfora que leva a pensar o que pode ser a vida dos cubanos daqui em diante. Há apostas de avanços, de regresso ou da manutenção do status quo. Alguns caranguejos completam a travessia e chegam ao mangue, outros são atropelados no caminho. O barulho em torno da renúncia de Fidel Castro depois de 49 anos no poder não é para menos. O único e último líder carismático socialista da América Latina deixou no governo seu irmão Raúl Castro e uma série de dúvidas sobre a situação real dos quase 12 milhões de habitantes do único país que implantou o socialismo no continente.

Menos agitados do que durante a Guerra Fria, os Estados Unidos, que mantêm um embargo econômico à ilha desde a década de 1960, quando Fidel chegou ao poder, se mantiveram expectadores da mudança histórica. Os líderes mundiais se manifestaram em prol da democracia e de maior liberdade de expressão – os dois gargalos mais prementes -, mas não se fala mais em interferência externa.

AFINAL, QUE LEGADO recebe Raúl Castro? O mesmo país com invejáveis estatísticas de analfabetismo, próximo do zero, saúde preventiva e vigor cultural sofre com moradias decadentes, falta de alimentos, transporte precário e empregos limitados.

Casarões do centro histórico de Havana são os poucos que se encontram restaurados e habitados. Aula de boxe na periferia da capital une excelentes professores (muitos campeões mundiais e olímpicos) à falta de estrutura para quem está começando.

Os cubanos buscarão seu próprio caminho – essa é a voz de defensores do regime que viveram algum tempo lá, como o ex-embaixador do Brasil em Cuba, Tilden Santiago. “O passado de Cuba nunca será seu futuro”, declara o ex-diplomata. O contexto alinhado à esquerda dos países latino-americanos anima a discussão. Santiago acredita em mudanças graduais, sob o eixo do socialismo. Em pouco tempo no poder, Raúl liberou a venda de celulares (antes restritos a funcionários públicos e estrangeiros), computadores e DVDs em Cuba e declarou que a meta será atender às “necessidades materiais e espirituais das pessoas”.

Santiago aposta em soluções internas, a exemplo do que vem ocorrendo com vizinhos latino-americanos, que viram a ascensão de líderes representantes das classes populares e têm buscado seus próprios caminhos, a despeito dos acordos diplomáticos.

Uma abertura desordenada poderia exterminar os cubanos, alerta Javier Vadell, professor da PUC-Minas e especialista em América Latina. “Na União Soviética, a abertura causou morte em massa por falta de alimentos e saúde”, lembra. Novos pontos de vista começam a aparecer agora, com o afastamento de Fidel, o que permite mudanças graduais, na opinião de Vadell. “Mas não haverá nada radical.”

Além de incrementar alternativas à escassez provocada pelo embargo econômico dos EUA, Raúl terá de lidar com a decadência urbanística de Havana. A capital cubana tem uma imensa área em decomposição e o ritmo de reconstrução, apoiado por países europeus e pela ONU, não acompanha a velocidade do tempo. Havana Velha e seus casarios parecem cair a qualquer momento e, na maioria das ruas da região, o esgoto corre pelas calçadas.

Morar em Havana é um problema. Quando um casal contrai matrimônio, conta o ex-embaixador Tilden Santiago, a primeira coisa a decidir é se vão morar com os pais da noiva ou do noivo. Não há moradia disponível.

O transporte na capital e entre as cidades cubanas também é extremamente precário. O governo fez acordos recentes com países asiáticos para a compra de ônibus novos, mas ainda em número insuficiente. Os famosos carros dos anos 1950 circulam em Havana como táxi, cobrando na moeda nacional, o peso cubano, outra contradição local. Turistas usam o peso conversível, o CUC, de valor equivalente ao dólar. Já os cubanos recebem e gastam em peso cubano, que vale algumas dezenas de vezes menos. A existência de duas moedas permite aos turistas acesso ao que existe em qualquer lugar do mundo e afasta definitivamente os cubanos desse universo.

PERCIVAL PUGGINA, autor de Cuba, a Tragédia da Utopia (Editora Literalis, 2004), faz críticas contundentes ao regime: “Não existe qualquer milagre nos indicadores cubanos de educação. A taxa de analfabetismo, em 1959, era de apenas 20%. E tampouco existe mérito nos índices de ‘educação’ de um povo em que os graduados em cursos superiores – médicos e engenheiros – abordam turistas nas portas dos hotéis para se oferecer como guias para visitas à cidade. O tipo de educação proporcionado aos cubanos não gera iniciativas numa economia que não produz oportunidades. Como me disse um casal idoso com quem conversei num fim de tarde, junto à mureta do Malecón: ‘Dizem que esses indicadores são bons, mas quando a gente não está doente nem estudando, o resto é uma porcaria.’ Para assegurar uma educação doutrinadora, constitucionalmente obrigada a servir ao comunismo, e uma oferta de serviços de saúde quantitativamente satisfatória, mas sem qualidade alguma (nem técnica nem clínica), o governo cubano se apropria da totalidade da renda nacional e transforma o conjunto da população em escravos remunerados com um salário infamante de US$ 10 mensais.”