Oficina mecânica e funilaria na cidade de Havana, próximo ao Capitólio, local de encontro de turistas do mundo todo.

“Aqui, tudo se adapta, dá-se um jeito para tudo”, diz Heriberto Vergara, referindo-se ao motor de um velho Ford 56 que consertará nos próximos dias. Enquanto me explica seu dia-adia, falando de filtros e bombas de injeção, percebo que o trabalho desse senhor de 43 anos é uma grande metáfora da vida de 12 milhões de habitantes da ilha caribenha, que preservam com orgulho a sua história de luta, mas que também almejam mudanças.

“Para ser mecânico ou funileiro em Cuba é preciso ser um artista”, afirma o funcionário de uma das centenas de pequenas oficinas mecânicas espalhadas por Havana, capital e maior cidade do país. Por conta do embargo comercial imposto pelos Estados Unidos, e de restrições da própria economia cubana, peças originais para automóveis são uma raridade, principalmente quando se trata dos mais de 60 mil carros das décadas de 40 e 50, heranças dos tempos do ditador Fulgêncio Batista.

Com engenho e arte, os mecânicos cubanos aprenderam a moldar as próprias peças, em pequenos tornos, com ferramentas e materiais improvisados. Pistões, pastilhas de freio, filtros, canos de escapamento, engrenagens de maçanetas, tudo é feito com a maestria de quem busca uma escultura perfeita. “Basta ter a medida ou um modelo que nós fazemos igualzinho. É a forma que encontramos de sobreviver, improvisando, adaptando”, completa Ociel Durán, mecânico da mesma oficina onde Heriberto trabalha.

CUBA une em suas ruas preciosidades da década de 50 a LADAS e NIVAS, carros russos, frutos da relação entre CUBA e União Soviética

“As borrachas para todas as peças, por exemplo, são feitas com pneus velhos de avião. São mais resistentes, inclusive ao líquido de freio. Com uma faca, moldamos peças de qualquer tamanho e formato”, explica, enquanto solda a porta de um Chevrolet 54, relíquia que faria brilhar os olhos de colecionadores do mundo todo.

Mas não é somente a paixão por automóveis ou a preservação da história que move esses profissionais. Na verdade, a própria presença desses carros antigos pelas ruas de Cuba já é um exemplo de como o povo cubano se adapta às contradições existentes no único país socialista da América.

Embora o país logre índices invejáveis em alguns quesitos sociais, como na saúde e na educação, esses carros, transformados em táxis, são peças fundamentais para compensar uma grande deficiência no transporte público. Disputam espaço com os “bicitáxis” (um táxi movido a pedaladas que em geral leva duas pessoas), ônibus velhos e “camellos”, caminhões com carroceria adaptada para o transporte coletivo.

Justiça seja feita, em 2007 o governo começou a trocar os veículos antigos por novos ônibus chineses, bem modernos, o que vem garantindo uma perceptível melhoria na vida dos cubanos, embora ainda esteja aquém do ideal.

Por não possuir uma indústria automobilística nacional, Cuba une em suas ruas preciosidades da década de 50 a Ladas e Nivas, carros russos, frutos da relação entre Cuba e União Soviética, que durou até a queda do bloco socialista na década de 90.

Essa deficiência também faz com que esse profissional, tão subjugado na maior parte do mundo, tenha lugar de destaque num país onde as diferenças sociais não costumam aparecer nas profissões, onde médicos e professores gozam do mesmo status social de um artista, de um desportista, de um vendedor da feira ou de um engenheiro.

Embora existam oficinas mecânicas estatais, com funcionários pagos pelo governo, a maioria dos mecânicos cubanos segue uma forte tendência do país, e opta por trabalhar por conta própria. Troca a estabilidade de um emprego estatal (onde ganharia algo em torno de US$ 15 por mês) pela possibilidade de ganhar mais como particular. Não é difícil encontrar enfermeiros, engenheiros, professores trabalhando como mecânicos. Heriberto é formado em veterinária, Ociel em administração de empresas.

NUMA CHAPISTERIA, que é como se chamam as funilarias em espanhol, encontro Ender Alvaréz, um jovem de 24 anos. No momento, ele se dedica a restaurar um carro MG de 1937, uma verdadeira relíquia, mesmo em Cuba. Cobrou o equivalente a US$ 150 por um mês e meio de trabalho, o que representa praticamente sete meses de salário na profissão em que se formou – como cozinheiro ganharia o equivalente a US$ 20 por mês, ou 500 pesos cubanos, a moeda nacional. “Isso sem contar o material, que é de responsabilidade do dono do carro. E que responsabilidade!”, exclama Ender, referindo- se à grande dificuldade em conseguir produtos para seu ofício.

Preços em dólar e o embargo também fazem disso uma luta, explícita nas cores do carro que Ender lixa, metade branco e metade bege. “Acabou a tinta branca e comecei a pintar de bege, mas o dono conseguiu outra lata “na rua” e me trouxe mais tinta branca. Agora acabo tudo por igual”, explica sorrindo.

O “na rua” a que se refere é também um eufemismo para uma espécie de mercado paralelo que há em Cuba e que inclui praticamente tudo. Uma lata de tinta pode sair pelo equivalente a US$ 30 numa loja e US$ 12 “por fora”. Uma boa caixa de charutos, outro símbolo do país, pode custar até US$ 400 nas lojas do governo, mas é oferecida nas ruas por até US$ 50. Infelizmente, esses não são os únicos produtos em falta ou com preços inacessíveis para os cubanos. Carne (principalmente a de vaca), produtos de higiene pessoal e sapatos também são luxo no país e fazem parte de um intrincado mercado paralelo.

Mas nem sempre foi assim, explica o historiador Alejandro Flores, que hoje trabalha como taxista na capital: “Antes da queda do bloco comunista, Cuba seguia bem, e suas relações diplomáticas e comerciais com os países do Leste Europeu garantiam uma ótima qualidade de vida a nós cubanos, num socialismo exemplar, com grandes conquistas e uma boa qualidade de vida.” A história é repetida por quase todos.

No entanto, com uma economia frágil, pouco desenvolvida tecnologicamente, Cuba sofreu as conseqüências de forma drástica. “Foi uma época em que faltou de tudo, de comer, de vestir, de tudo. Hoje, está um pouco melhor, depois que abriram a ilha para o turismo”, completa Flores.

Com o turismo, o ganha-pão de alguns cubanos passou a ser o aluguel de seus carros antigos a estrangeiros, que chegam à ilha loucos para desfilar em Fords, Chevrolets, Chryslers e Cadillacs, símbolos de uma época de ouro.

No sentido horário, uma funilaria improvisada na casa de um morador em Trinidad, no sul da ilha; carro da década de 50 circula pelo Malecón, ponto turístico de Havana; Ender Alvaréz restaura um carro de 1937; e Heriberto Vergara solda peças num Ford 56.

Nos finais de semana, ao lado do Capitólio, ponto de convergência de turistas do mundo inteiro, forma-se um museu a céu aberto. Enquanto turistas alugam carros em perfeito estado, os menos conservados servem de meio de transporte para a maioria da população.

O turismo, aliás, representa uma outra barreira entre os cubanos e o resto do mundo, materializada na existência de duas moedas no país. Ao chegar ao aeroporto, o dinheiro estrangeiro é obrigatoriamente trocado por CUCs, ou peso cubano convertível, que equivale ao dólar e serve para o pagamento de tudo, inclusive o aluguel dos táxis.

O CUC vale 24 vezes o peso cubano, a moeda nacional, usada exclusivamente pelos cubanos. Assim, aqueles que trabalham com turismo (ou que têm parentes no exterior que mandam dinheiro) começam a se destacar economicamente, ficando os demais à margem. Tais diferenças são perceptíveis inclusive nas ruas, na mistura de carros da década de 50 com carros novos, como BMWs e Renaults, pertencentes aos novos ricos-cubanos.

NESSE SENTIDO, duas das medidas tomadas por Raúl Castro nos últimos meses acenam para uma mudança de cenário. A partir de agora, cubanos também podem se hospedar em hotéis que antes eram destinados apenas a estrangeiros. Embora a medida tenha seu peso ideológico, o problema é que ainda poucos podem pagar o valor cobrado das diárias, cobradas em CUCs. É preciso ir mais fundo nas reformas.

Andando pelas ruas, o que se percebe claramente é que uma das grandes reivindicações do povo cubano ao irmão de Fidel Castro é justamente a equiparação das duas moedas. Ou um aumento dos salários, pagos em moeda nacional e incompatíveis com os preços dolarizados. Enquanto isso, sobrevivem graças a uma intrincada rede de adaptações cotidianas. Peças que se moldam, que se encaixam e fazem a estrutura andar, como um velho motor que insiste em funcionar.