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Entre 2 milhões e 8 milhões de espécies animais existiriam na Terra, de acordo com diversas estimativas. Apesar da grande variação nos números, a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) considera que cerca de metade dessas espécies corre risco de extinção nas próximas décadas, em consequência de perdas de hábitat, mudanças climáticas e comércio ilegal. A velocidade de desaparecimento é maior que a capacidade dos cientistas de descobrir novos bichos, principalmente nos ambientes marinhos, ainda menos explorados que o solo da Lua.

Dentre tantos animais carismáticos ameaçados, poucos ilustram tanto o imaginário popular sobre a fauna dos oceanos quanto os cavalos-marinhos. Em todo o litoral brasileiro, por exemplo, restaurantes, hotéis e praças exibem pinturas, esculturas e inúmeras representações das mais criativas desse animal. Conhecido por sua cabeça parecida com a de um cavalo, cauda preênsil (capaz de segurar ou prender) semelhante à do macaco e olhos que se movem de forma independente, como os do camaleão, ele é um peixe ósseo pertencente à família Syngnathidae, que inclui os peixes-cachimbo, pouco conhecidos e que também habitam as águas brasileiras.

O aspecto mais divulgado e incrível desses animais provavelmente é a gravidez masculina. Os singnatídeos machos (cavalos-marinhos e peixes-cachimbo) possuem uma bolsa incubadora para receber os ovos da fêmea, os quais são fertilizados e nutridos até o nascimento. Algumas espécies chegam a abrigar até 2 mil embriões de uma vez. No fim da gestação, o pai inicia movimentos de contração repetitivos para liberar os pequenos filhotes na água. Daí para a frente, a ninhada não receberá qualquer outro cuidado paterno, ficando à mercê de predadores e do ambiente. Estima-se que apenas 10% deles cheguem à idade adulta.

Monogamia

Durante muito tempo, acreditou-se que todos os cavalos-marinhos e seus parentes eram monogâmicos, ou seja, formavam casais para toda a vida. Hoje, já sabemos que apenas algumas espécies se comportam de tal forma. Um exemplo das complexas relações que podem ocorrer nesse grupo de peixes está no estudo sobre o peixe-cachimbo do Golfo do México (Syngnathus scovelli) publicado na revista Nature em 2010.

Os pesquisadores americanos Kimberly Paczolt e Adam Jones mostraram que são as fêmeas que procuram os machos para acasalar, e várias delas podem depositar seus ovos no mesmo indivíduo. Ele, então, controla a quantidade de nutrientes ofertados à prole na sua bolsa, favorecendo os ovos que vieram de fêmeas que consi­derou mais atraentes, ou absorvê-los, caso sofra restrição de alimentos.

Apesar de serem animais carismáticos, os singnatídeos ainda são objeto de poucos estudos científicos se comparados a outros peixes marinhos. Há dezenas de espécies descritas mundialmente, mas a falta de dados sobre elas gera inúmeras confusões e lacunas nas classificações. No Brasil já foram relatadas três espécies de cavalos-marinhos, com inúmeros questionamentos em relação às características taxonômicas de cada uma delas.

Certo é que, desde 1996, quase todas estão listadas como “vulneráveis” pela IUCN. Em mais de 80 países, incontáveis cavalos-marinhos e outros singnatídeos são recolhidos do seu habitat, todos os dias, tanto para abastecer o mercado de aquarismo, como para a confecção de medicamentos “populares” e sem comprovação científica. Estatísticas das Filipinas apontam, desde 1987, a exportação anual de mais de 1 milhão de animais secos, tendo a China como seu maior comprador.

O grande sucesso econômico chinês criou uma população rica e sedenta por produtos supostamente medicinais, que, em 1992, consumiu mais de 20 toneladas de cavalos-marinhos, segundo os poucos registros governamentais existentes sobre o assunto. Em alguns lugares, os animais são cruelmente mortos por estrangulamento, com pequenos barbantes, para que suas caudas fiquem esticadas, o que melhora o preço da unidade.

Vários países ocidentais também exportam animais vivos ou secos. Como a demanda excede a oferta, novas fronteiras são abertas para atender o comércio global. Desde o ano 2000, o Brasil está entre os dez maiores fornecedores de peixes ornamentais do mundo e entre um dos quatro maiores exportadores de cavalos-marinhos. Considerando que não se pode importar tais animais no país e não existindo criadores nacionais registrados junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), todo cavalo-marinho comercializado em território nacional é fruto de coleta ilegal.

Ambientalistas e pesquisadores alertam também para a ameaça da pesca de arrasto do camarão. Além de as redes devastarem o fundo marinho, essa prática é responsável pela coleta acidental e morte de uma grande variedade de animais, incluindo os cavalos-marinhos, descartados por não terem valor comercial ou por sua pesca ser proibida. Segundo a ONU, uma média de 27 toneladas de fauna acompanhante é rejeitada no mundo a cada ano, em decorrência da pesca de arrasto.

Projeto voluntário

Há poucas estatísticas sobre as populações brasileiras de singnatídeos, o que mascara ainda mais os problemas sofridos por eles. A carência de dados e a fragilidade desses peixes impulsionaram a pesquisadora Suzana Ramineli, mestre em ciência ambiental pela Universidade Federal Fluminense, a criar o Projeto Cavalos do Mar, em 2014. Para tanto, ela contou com o voluntariado de biólogos, mergulhadores e outros profissionais.

Mediante recursos próprios e ajuda de amigos, eles percorrem o litoral do país, desenvolvendo pesquisas científicas e fazendo atividades de educação ambiental. O objetivo é reunir e difundir informações referentes à conservação marinha, com destaque para os singnatídeos. Em 2016, o projeto inaugurou uma sede em Paraty (RJ), que serve como base operacional para os trabalhos em campo e espaço para ações educativas e de divulgação científica.

Por várias vezes, os pesquisadores flagram a coleta clandestina e a venda ilegal de cavalos-marinhos (vivos ou mortos) em feiras, lojas de artigos religiosos e de aquarismo. Outros fatores preocupantes são a pesca predatória e a destruição de habitats, por meio do turismo desordenado, da urbanização excessiva e da modificação de áreas costeiras.

Esses impactos promovem a degradação de manguezais, estuários, ambientes de recifes e a poluição de praias e rios. “Tenho quase certeza de que existem espécies de cavalos-marinhos e peixes-cachimbo que ainda não foram classificadas”, avalia Suzana. “Mas, se essas ameaças continuarem a crescer, podemos perder espécies antes mesmo de conhecê-las.”

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Primazia da preservação

No Brasil, cerca de 20 organizações ambientais e científicas iniciaram este ano uma campanha em prol da Lista Oficial Nacional de Animais Aquáticos Ameaçados de Extinção. Criada pelo Ministério do Meio Ambiente em 2014, por meio da portaria 445, essa relação permaneceu suspensa por um ano, através de uma liminar da Justiça Federal, em 2015, movida por entidades ligadas à pesca comercial e à aquicultura.

A lista, que demorou quatro anos para ser elaborada, engloba mais de 400 espécies de extrema importância ecológica e orienta programas de proteção e conservação. Essas características influenciaram a juíza Lidiane Vasconcelos, do Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília: em sua decisão, publicada em junho de 2016, ela julgou improcedente a revogação da portaria 445. Na sentença, Lidiane destacou que a pressão econômica do setor pesqueiro não pode prevalecer sobre o interesse comum de preservação de espécies da fauna em risco de extinção.