Abioética não nasceu de algum acidente ou da iluminação repentina de um pensador clarividente. Seu surgimento pode ser explicado por fatores históricos, científicos e sociais. Nos últimos 50 anos, o progresso espetacular da medicina abriu possibilidades imprevistas para a investigação científica e trouxe melhoras irrefutáveis na saúde pública ao levantar desafios inesperados em termos éticos e morais.

Cada avanço da biologia e das ciências da saúde – como transplantes de órgãos (que já salvaram inúmeras vidas), ou técnicas de reprodução assistida (que podem resolver problemas de fertilidade de casais) – enfrenta obstáculos sociais e psicológicos, além de levantar questões religiosas e éticas.

*Salvador Bergel (Argentina), formado em direito, é especialista em bioética. Ocupa a Cátedra da Unesco de Bioética na Universidade de Buenos Aires.

O mesmo ocorre na pesquisa sobre embriões humanos, um tema muito sensível, pois trata das origens da vida e envolve conceitos morais, bem como interesses científicos e financeiros – a partir do diagnóstico genético de pré-implantação. Essa técnica permite libertar bebês ainda por nascer de doenças hereditárias incuráveis mediante o uso de células-tronco que podem se transformar em células especializadas, cruciais para o futuro da medicina regenerativa.

A genética capacitou a humanidade para intervir em sua própria natureza biológica – uma perspectiva perturbadora

Essas não são descobertas isoladas ou limitadas. Estamos testemunhando uma genuína revolução biológica. Em apenas algumas décadas, os cientistas decodificaram a base química da hereditariedade, o código genético compartilhado por todos os seres vivos e lançaram as bases para a biologia molecular e uma nova genética.

Esses avanços levaram à engenharia genética, capaz de manipular e trocar genes entre os membros de uma única espécie e entre espécies diferentes.

A humanidade pode agora alterar a informação genética para fins práticos e pode até mesmo intervir em sua própria natureza biológica, como espécie – certamente o aspecto mais perturbador em termos bioéticos.

 A bioética é cada vez mais importante na medicina, na produção de alimentos e no acesso a serviços de saúde e água potável

Fronteiras móveis

Esse progresso repercute no próprio conceito de “ser humano” e levanta questões éticas, sociais e legais que vão além da ciência. Esse é o ponto em que a bioética é chamada para se conquistar um equilíbrio justo e criterioso entre o progresso da medicina e o respeito à vida humana.

A bioética deve reconhecer os benefícios dos avanços científicos, enquanto se mantém constantemente alerta para os riscos e perigos que eles apresentam. Embora possa levar a novas e promissoras formas de erradicar doenças que há muito tempo afetam o homem, esse progresso também levanta temores justificáveis sobre efeitos indesejáveis e uso indevido, como a manipulação genética e suas aplicações, a volta de doutrinas eugênicas (que agora têm um gama de ferramentas sofisticadas à sua disposição) ou experiências com genes em populações vulneráveis.

O surgimento da bioética coincidiu com o clamor generalizado levantado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, reação que culminou com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. O objetivo primordial da bioética se baseia no princípio humanista de afirmar a primazia do ser humano e defender a dignidade e a liberdade inerentes ao mero fato de pertencer à espécie, diante de um contexto mutante e em constante evolução das ciências da vida.

A bioética, assim, é um baluarte do humanismo tanto em termos de metas como na sua natureza multidisciplinar. A fim de fornecer soluções adequadas aos novos desafios científicos, para os quais a ética tradicional tem-se revelado insuficiente, tivemos de encontrar formas de as ciências naturais e sociais se comunicarem entre si, cada qual com suas metodologias e pontos de vista específicos, e unir diferentes campos de conhecimento, desde medicina, filosofia e biologia até sociologia, direito e antropologia.

 

Consenso, diálogo, tolerância

A bioética integra os valores do humanismo em seus métodos e práticas a fim de atingir um consenso por meio de um diálogo construtivo e inteligente com todos os setores envolvidos. A sociedade não se contenta mais em olhar passivamente quando confrontada com escolhas que ameaçam sua sobrevivência e comprometem sua responsabilidade moral. Portanto, a bioética tem de impor uma atitude de abertura e tolerância, voltada para a adoção de normas e leis que respeitem a realidade das comunidades multiculturais, com suas próprias tradições e crenças.

Esses valores humanistas vão mais longe do que apenas incentivar o pensamento teórico e também se aplicam a questões específicas da vida cotidiana, como levantadas pelas práticas hospitalares. O campo também tem se expandido para incluir as dimensões sociais da saúde, tais como produção e consumo de alimentos, pobreza e acesso a serviços de saúde, remédios e água potável.

A bioética deflagrou uma militância global que está ajudando a transformar os ideais de justiça mundial em realidade, através das iniciativas dos comitês de ética nacionais e de comitês hospitalares, além de ensino e pesquisa. Também deve-se notar que, quase sem exceção, as escolas médicas passaram a incluir a disciplina em seus programas de ensino, demonstrando seu papel essencial na prática médica.

Comitês de bioética hospitalares foram criados em praticamente todos os serviços de saúde. Não há um único país sem uma comissão nacional de bioética ou um grupo equivalente de especialistas. Códigos, normas e protocolos relativos à bioética foram adotados em todos os lugares, e a Unesco considerou-os essenciais para criar um fórum de reflexão e debate – o Comitê Internacional de Bioética –, visando reforçar a disciplina através da elaboração de diretrizes baseadas nos direitos humanos, tal como definido em três Declarações Universais.

A aliança entre bioética e direitos humanos anuncia uma nova forma de humanismo, em sintonia com as expectativas e os desafios do nosso tempo. Esse renovado humanismo reconhece os componentes biológicos e éticos da natureza humana, cuja dignidade deve ser preservada aqui e agora, assumindo a responsabilidade e o dever de proteger a vida em todas as suas manifestações para as gerações vindouras e, por fim, garantir a sobrevivência da espécie.