No barco lotado de passageiros, durante os sete dias da viagem que me leva de Belém do Pará para Manaus, música tecnobrega ensurdecedora, pessoas que falam línguas distintas e a selva de redes coloridas penduradas no convés me fazem pensar que as embarcações amazônicas tradicionais são, desde os tempos mais antigos, a mais forte maneira de se relacionar do homem caboclo. Será que os índios tinham grandes embarcações e faziam essas longas viagens pelos rios? O rio Amazonas, com mais de seis mil quilômetros, e seus afluentes escondem em suas margens mistérios incontáveis, segredos de um passado pouco estudado e conhecido. Estou prestes a tomar contato com alguns deles, recém- descobertos por arqueólogos na região do município de Iranduba.

De Manaus, sigo por 55 quilômetros de rio até Iranduba, à beira dos rios Negro e Solimões. Lá, durante vários dias, acompanho o trabalho dos pesquisadores do Projeto Amazônia Central (PAC), criado pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo e iniciativa pioneira no campo da arqueologia brasileira. O objetivo da pesquisa é compreender o processo de ocupação de uma área de 900 quilômetros quadrados situada na confluência desses rios, datando sua antigüidade e descobrindo as interações dos seus habitantes pré-históricos com o meio natural circundante.

NO CENTRO DE Iranduba está a Casa dos Arqueólogos, como foi apelidado o escritório/moradia do projeto. Todos os dias, às 6 horas da manhã, as redes de dormir se agitam e cerca de 30 arqueólogos se levantam. Preparam botas, chapéus e recipientes de água – coisa mais do que essencial para o dia quente e úmido que se seguirá. Depois, organizam seus objetos clássicos de arqueólogos: pás, pincéis, manuais e espátulas, régua estratigráfica, além de equipamento fotográfico e até uma impressora.

Por que tantos estudiosos no local? Porque se trata de um “sítio-escola”. Estudantes de várias partes do Brasil e do mundo ali se encontram e se revezam nas várias tarefas, com o propósito de promover a troca de informações e a interdisciplinaridade.

Em sentido horário, a partir de cima: dona Domingas, de Parauá (PA), acredita que as peças arqueológicas foram deixadas pelos índios para que soubéssemos que eles viveram lá; seu Valentino, de Lauro Sodré, mostra uma peça de pelo menos 800 anos achada perto de sua casa; José Luís, de Urucurituba, no Baixo Amazonas, criou um “museu” com 1.700 peças e fragmentos; e exemplares seculares encontrados na região.

Hatahara, Dona Estela, Laguinho, Paricatuba… Somente no município de Iranduba e região há quase cem sítios identificados. Possivelmente, o sítio Hatahara é um antigo cemitério indígena e lugar de rituais. Pelo menos 22 esqueletos já foram encontrados, em diferentes formas de sepultamento.

Julian Gaugier, argentino estudioso de química do solo, aponta um deles e brinca: “Um ritual Neanderthal!” Um esqueleto encontrado em agosto de 2006, com o crânio fraturado e a mandíbula torta, provável resultado de uma luta, fez com que os arqueólogos pensassem de início estar diante da ossada de um grande macaco. Mas datações, exames de DNA e outras análises, embora ainda não conclusivas, fazem pensar em um indígena. Um dia e mais dez centímetros de terra escavados depois do achado, encontrou-se o outro pedaço do maxilar da ossada. Juntando as duas, e graças à dentição admiravelmente bem conservada, esse esqueleto ganhou um apelido: “Sorrisonildo”.

O estudo da sua bela arcada dentária revelou-se determinante: o milho, muito utilizado nos Andes, possui sílica, que deteriora os dentes. Se nosso amigo tinha dentes tão perfeitos, é porque sua alimentação era à base de mandioca. Como é ainda hoje a alimentação do caboclo amazonense.

Não só esqueletos humanos encontrados no sítio ficam na mira dos pesquisadores. Há também urnas funerárias, artefatos de cerâmica, ossos de animais, restos de comida. A terra do sítio é cuidadosamente escavada e, enquanto um pesquisador vai desentranhando objetos e outro peneira a terra retirada, um terceiro fica na “secretaria”: separa e cuidadosamente embala o que sobrou na peneira. São pedaços de carvão, cacos de cerâmica e restos de fauna (ossos de animais como tracajá, jabuti, pássaros, peixes, roedores e até cachorro-do-mato). Cada detalhe pode trazer informações preciosas e ajudar a compreender o dia-a-dia desses nossos antepassados desconhecidos.

Já se sabe, por exemplo, que há cerca de cinco mil anos esses indígenas tinham domesticado plantas nativas como a própria mandioca e, sobretudo, o palmito pupunha. Sabe-se também que as aldeias não eram pequenas e isoladas umas das outras. Vestígios indicam que se tratava de grupos numerosos e com intenso intercâmbio, tanto cultural quanto comercial, com outros grupos às vezes muito distantes.

No seu livro 1491 – Novas revelações das Américas antes de Colombo, Charles Mann, correspondente da revista norte-americana Science, descreve um diálogo que teve com o pesquisador norte-americano James Petersen: “Eu perguntei a Petersen, especialista em cerâmicas, quantos pratos, tigelas, apliques de urnas e xícaras havia nos montes (…). Ele pegou um papel qualquer de embrulho, fez cálculos matemáticos, concentrado. Aquele único monte onde estávamos poderia conter mais de 14 milhões de fragmentos, disse.”

Além de trocar seus excedentes agrícolas, esses indígenas também podiam permutar objetos, como os próprios utilitários de cerâmica ou as pontas de flecha de sílex. Uma delas, encontrada por James Petersen no sítio Dona Estela, deve ter vindo de longe. A técnica usada para sua confecção, bem como o material, não pertencem à região. Manuel Arroyo, arqueólogo chileno e colaborador do PAC, há oito anos residindo em Londres (Inglaterra), afirma que “fica bem clara a existência de relações a longa distância. A paisagem foi transformada pela ocupação humana”.

ENTRE ESSAS transformações está o que hoje moradores e arqueólogos chamam de “terra preta de índio”. Depois das densas ocupações, o acúmulo de dejetos orgânicos e restos de carvão deixados pelas fogueiras acabou transformando certas partes do solo em manchas escuras que podem chegar a vários hectares.

Muito férteis e com pH quase neutro, essas terras pretas acabam atraindo novos moradores. Por sua vez, eles vão deixando mais material, tornandoas ainda mais férteis, numa longa sucessão através dos séculos. A presença dessa terra escura, portanto, é indicativa de locais onde houve permanência prolongada de grupos sedentários e agrícolas que as encheram de sinais indispensáveis para se compreender os hábitos dessas populações.

A descoberta de ocupações humanas tão antigas e numerosas faz lembrar que a conservação de uma área natural depende da harmonia entre a presença humana e o ambiente. Para a maior parte dos ecologistas, esse é um pensamento assustador. Acostumados com a idéia de que se trata de um santuário intocado, eles acham que concordar que já houve muita gente morando na Amazônia, sem que isso significasse sua destruição, parece pôr a floresta sob ameaça.

Para Eduardo Góes Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e coordenador do sítio-escola, a Amazônia não pode ser vista como um invólucro intocado pelo homem, tampouco como lugar de exploração comercial. E ele aprofunda o pensamento: “Somente a intensa pesquisa de campo pode realmente trazer à tona verdades sobre a pré-história amazônica.”

Curioso é notar que, onde houve gente morando ontem, há gente morando hoje. Muitos hábitos desses povos extintos ainda fazem parte do cotidiano dos habitantes atuais, como a pesca, as viagens fluviais, a agricultura de subsistência e o consumo dos mesmos vegetais. Mas, na maioria das vezes, os atuais moradores se mantêm alheios a essa repetição incansável do passado.

OS MAIORES SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS

DA AMÉRICA DO SUL

Em 1541, o cronista frei Gaspar de Carvajal, integrante da primeira expedição espanhola na Amazônia, comentou, com algum exagero e um pouco de poesia: “Todo este rio, nas margens e terra adentro, está povoado de índios e tantos em números que, para dar uma idéia de sua multidão, que se do ar deixassem cair uma agulha, há de dar em cabeça de índio e não no solo.”

Marajoara, maracá, aristé, guarita, paredão, konduri, tapajó, santarém… Fora do meio acadêmico, pouca gente sabe, mas o número de povoados e de nações indígenas existentes na Amazônia antes da chegada dos europeus era imenso. Do Alto Amazonas até sua foz, na Ilha de Marajó, pesquisadores esbarram em vestígios da presença humana em toda parte, alguns com mais de dez mil anos. São aterros produzidos por mãos humanas,

artefatos feitos de pedra, esqueletos, restos de fogueiras, pinturas rupestres. E muita cerâmica! Com datas que podem chegar a cinco mil anos antes de Cristo. Tais peças vão desde elaboradas urnas funerárias, como as marajós, e requintados vasos cerimoniais, como os tapajós, até tigelas de uso diário. Figuras inspiradas na fauna amazônica representam seu imaginário sagrado, expresso em desenhos e em apliques zoomorfos. Tais objetos intrigam os pesquisadores, que tentam descobrir quem foram esses povos que gostavam tanto de cerâmica.

Talvez os cronistas dos tempos coloniais tenham exagerado ao descrever o número de índios que encontraram, mas já não há dúvidas de que se tratava de muita gente, reunida em agrupamentos estabelecidos há milhares de anos. Mantinham contato entre si e até com povos de outros países, como Colômbia, Equador e Peru. A região chega a ser considerada um berço de inovações culturais no continente, podendo até ter influenciado os vizinhos. A chegada do branco, com sua agressividade e doenças desconhecidas, alterou totalmente essa paisagem humana, tanto no que diz respeito ao número de pessoas quanto em termos de integridade cultural. Nesse sentido, pode-se afirmar que os grupos atuais não servem de referência para se definir esses ancestrais.

Enquanto o mundo assiste a debates sobre civilizações andinas ou descobertas de novos ancestrais humanos, permanece esquecida de nós mesmos a arqueologia na Amazônia brasileira. E lá estão os maiores sítios arqueológicos de toda a América do Sul.

Na hora de partir, no pequeno cais do porto de Cacau Pirera – localidade situada entre os sítios arqueológicos e Manaus –, a agitação das pessoas me traz de volta à realidade urbana. Na luz do crepúsculo, balsas chegam e partem. No cais, filas imensas de pessoas que esperam para viajar em pé, carregando sacolas e mil bugigangas. Muito forró e música rolando no breu da noite que chega rápido na Amazônia. Há uns cinco quilômetros de carros de veranistas que passaram o fim de semana nos balneários fluviais e agora voltam para a capital.

Depois, singrando as águas do grande rio, vem o pensamento do quão pouco se conhece sobre o passado remoto da Amazônia. E voltam à mente as palavras de Cláudio Roberto, caboclo morador do sítio Lago do Limão e que é técnico no PAC: “Achar uma peça de dois mil anos ou mais é um mistério como a vida. A arqueologia mudou o modo como vejo a natureza, a mata, como compreendo o ser humano.”

SERVIÇO

Como participar do PAC

Ainda não existem viagens organizadas para se participar de uma excursão ao sítio-escola do Projeto Amazônia Central (PAC). Os interessados podem se informar sobre a possibilidade de participar de uma expedição no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo pelo telefone (11) 3091-4977. Visitas ao sítio-escola são bem-vindas, pois ajudam a divulgar a arqueologia. Mas, normalmente, elas são em número limitado e quem aparece por lá acaba tendo de fazer trabalhos braçais, como carregar baldes e peneirar a terra. Entre os períodos de labuta arqueológica, é possível sair para um passeio de canoa ou uma pescaria com o caboclo. O local dos pernoites varia: pode ser na casa dos moradores, em casas alugadas pelo PAC em cidades próximas aos sítios ou em barracas no meio da floresta. O próximo sítio-escola deve acontecer em julho ou agosto.

COMO CHEGAR

A cidade de Iranduba, base para a visita a muitos sítios, fica a 25 quilômetros de Manaus. É preciso pegar uma balsa no cais São Raimundo ou no porto do Rodule, na praça da Igreja da Matriz. A viagem, feita em uma voadeira, custa entre R$ 3 e R$ 5. Em Manaus, o telefone do Centro de Atendimento ao Turista é (92) 3533-4400. Outro contato importante para coletar informações técnicas e de logística é o da Amazonas Turismo (www.amazonastur.am.gov.br), tel. (92) 3233-1928.