Sentada na casa de sua família, na cidade indiana de Gokak, Kavita Kurbati, de 18 anos, aguarda um cliente numa tarde de quinta-feira. Suas filhas, Rakshita, de 3 anos, e Chaitra, de 1, dormem tranquilamente a seus pés. Quando Kavita chegou à puberdade, sua mãe, recorrendo a uma antiga tradição ligada à deusa hindu Yellamma, designou a filha para tornar- se uma devadasi, ou “serva da deusa”. Isso significa que Kavita não pode desposar um mortal. Em vez disso, como uma forma de agradar Yellamma e trazer mais sorte para sua família, ela serve como uma “prostituta do templo”, satisfazendo as necessidades sexuais dos homens de sua comunidade.

Embora sua posição como “prostituta do templo” tenha raízes numa complexa tradição religiosa praticada na Índia desde o século 9, Kavita, como uma moderna devadasi, é basicamente uma trabalhadora sexual comum. Com seus ganhos de cerca de 300 rúpias (pouco mais de US$ 6), ela sustenta a mãe, o pai, três irmãs, dois irmãos e as filhas.

Acima, Kavita Kurbati, com suas filhas, aguarda um cliente.

Seu ritual de consagração – realizado em sua própria casa e pouco parecido com os enfeitados ritos das devadasis do passado – foi uma espécie de cerimônia de casamento curta, durante a qual um muttu (colar de contas vermelhas e brancas) foi colocado ao redor de seu pescoço, simbolizando seu status de serva de Yellamma. O sacerdote que celebrou a cerimônia foi pago com presentes e dinheiro. Ele, por seu lado, usou parte do que recebeu para recompensar a intermediária que recrutou Kavita

O sacerdote teve seu pagamento, a intermediária também, a família de Kavita ganhou uma fonte de renda garantida e os homens da comunidade conseguiram acesso sexual a uma bela jovem. Mary Malappvgol, amiga de Kavita, também foi tornada devadasi e, conforme acerto com o sacerdote do templo, levada para Puna, uma cidade ao sul de Mumbai, onde ela trabalhou num bordel. A experiência de Mary é a mais recente encarnação do sistema devadasi, que agora canaliza garotas de famílias de castas mais baixas para a lucrativa indústria do sexo nas cidades indianas.

A prática de oferecer meninas a divindidades na esperança de conseguir fertilidade e prosperidade não é exclusiva da Índia. Na Itália, por exemplo, era costume oferecer uma “vestal virgem” durante a época da colheita de uvas, e as civilizações da Mesopotâmia, Babilônia, Egito, Síria e Grécia usavam moças para aplacar os deuses.

O poder da sexualidade e suas conexões com a fertilidade da terra são encontrados em muitos mitos pagãos e drávidas (o povo drávida foi um dos primeiros a habitar a Índia), e há relatos antigos sobre práticas parecidas com as das devadasis em templos budistas e jainistas. Além disso, sacerdotes de templos que se diziam representantes de divindades masculinas ocupavam lugar central no ritual de consagração das devadasis e, com freqüência, eram os primeiros a iniciar sexualmente as meninas, num rito que imitaria um “encontro sexual divino”.

 

 

Acima, uma devadasi rende culto a Yellamma.

No passado, apenas as jovens mais bonitas eram escolhidas como devadasis e trabalhavam no templo, ajudando o sacerdote no culto à deusa. Assim como as gueixas japonesas, elas cantavam e dançavam, e eram sustentadas pelos homens mais ricos da comunidade, a quem serviam como parceiras sexuais. Elas frequentemente ganhavam lotes de terra de reis ou homens de castas superiores, e a elite as convidava para casamentos e outros eventos importantes. As devadasis eram reverenciadas e ocupavam uma posição de respeito na comunidade.

Quando chegaram à Índia, os britânicos, com seu olhar cristão, se horrorizaram com o sistema devadasi. Assim, durante seu domínio, a posição das devadasis foi depreciada. Embora seu simbolismo religioso e sua função sexual na sociedade permanecessem, elas não tinham mais o sustento econômico do passado.

No passado, as devadasis eram reverenciadas e ocupavam lugar de destaque na comunidade. Após a chegada dos britânicos, porém, sua posição se degradou até chegar à da prostituta sagrada

 

Acima, duas meninas fazem suas orações matinais na escola da Vimochana Sangha, para filhas de devadasis.

Com o tempo, sua posição se degradou até chegar à da prostituta sagrada cujos ganhos beneficiam o templo, os sacerdotes que nele trabalham e, de alguma forma, sua própria família. Uma nova versão do sistema devadasi começou a emergir, no qual a devadasi virou a engrenagem central na bemazeitada máquina econômica de Yellamma. Para esse sistema se perpetuar, suas crenças religiosas têm de ser reafirmadas sempre. Os devotos de vilas, pequenas cidades e até áreas distantes – em geral, gente pobre e inculta – têm sido encorajados a visitar o templo para cumprir os rituais de culto a Yellamma.

Os fiéis ouvem que um único dia sem novos seguidores no templo de Yellamma atrairia a ira da deusa e traria desgraças à terra. Dias auspiciosos (terças e sextas- feiras), épocas de lua cheia e festivais anuais atraem grandes levas de adeptos. Durante esses dias, as lendas ganham dramatizações que reforçam a necessidade constante de os fiéis cultuarem a deusa e lhe fazerem doações.

Uma garota pode virar devadasi por várias razões. Cabelo embaraçado (em geral consequência de má higiene), doença de pele e deficiências físicas como a cegueira são considerados cartões de visita de Yellamma. Famílias sem dinheiro para o dote da filha também tendem a fazer dela uma devadasi como meio de se livrar de seu sustento; outras, sem filhos homens, com frequência escolhem uma filha como devadasi, tornando-a o “filho” que vai sustentar a família.

 

 

Acima, jovem se banha numa área de banho comunitária durante o Yellamma Yatra, em Saundatti.

Atualmente, estima-se que haja cerca de 250 mil devadasis nas províncias de Karnataka e Maharashtra, no oeste da Índia. Assim como Kavita Kurbati, muitas sustentam famílias numerosas. Sheela Kallimani, de 18 anos, foi dedicada à deusa quando tinha 4 anos e, ao atingir a puberdade, começou a trabalhar com sexo, na casa de sua família. Jovem e bonita, ela ganha mais de US$ 20 por freguês – uma quantia obscena se comparada aos poucos dólares que a maioria das prostitutas cobra. Embora tenha chegado ao 7º ano do ensino básico e, diversamente da maioria das devadasis, seja alfabetizada, Sheela aceita sua situação. “Não quero fazer esse trabalho, mas minha família precisa de mim para isso”, ela se resigna. “Eu sempre uso preservativo”, avisa.

O principal evento ligado ao culto é o Yellamma Yatra, festival anual realizado em Saundatti (no norte de Karnataka) no qual meninas são ritualmente oferecidas à deusa. O Yatra começa na lua cheia no mês indiano de Magh (janeiro/fevereiro) e atrai cerca de 500 mil peregrinos.Segundo a lenda, após três meses de abstinência sexual, Yellamma tem de ser redespertada sexualmente. Mas seu marido, Yamadagni, é assassinado.

No alto, adeptos chegam para o festival. A maior parte dos fiéis da deusa tem origens sociais modestas.

Se não houver uma divindade masculina para despertá-la sexualmente, ela ficará infértil. De algum modo, porém, Yamadagni é ressuscitado e o despertar sexual de Yellamma acontece. Com seus poderes sexuais

restaurados, sua capacidade de abençoar os adeptos fica mais potencializada e deve ser aprimorada.

As devadasis, suas contrapartes sexuais humanas, são dedicadas a ela em grande número e seu defloramento simboliza a reunificação de Yellamma com Yamadagni Durante o festival, os adeptos fazem promessas à deusa, que incluem doar renda, produtos agrícolas ou gado, desfilar nu, prostrar-se ou – o mais relevante – doar uma devadasi. Essa última doação implica uma complexa série de ações, tais como banho ritual, esfregar açafrão na testa da menina, pôr pulseiras verdes em seus pulsos e um muttu em seu pescoço.

Muitas devadasis de mais de 44 anos (quando são consideradas velhas para o trabalho sexual) assumem o papel de jogathi (“voluntárias”), figuras importantes na perpetuação do culto, em especial durante o festival. Elas em geral vivem no templo e ouvem as queixas e desejos dos fiéis, que depois descrevem à deusa. Também podem visitar lares de adeptos, ouvir suas necessidades e, em certos casos, agir como médiuns por meio das quais Yellamma se manifesta. Algumas devadasis mais idosas, porém, mendigam perto da entrada dos templos. Com frequência, os adeptos de Yellamma mais escolarizados tendem a achar as práticas e superstições de sua fé questionáveis. Mas romper com sua família e comunidade e converter-se a outra religião é difícil, pois, na cultura indiana, a coesão familiar é colocada acima de tudo.

Festivais anuais dedicados a Yellamma atraem grande número de adeptos, cada qual com sua promessa

Desde os anos 1940 têm sido feitas tentativas para romper o sistema devadasi, com poucos resultados positivos. Uma lei de 1982 do governo de Karnataka, que pune com multa e até cinco anos de cadeia o responsável pela conversão de uma mulher a devadasi, é de difícil aplicação, pois o processo exige evidência fotográfica do ritual de consagração. Essas cerimônias continuam a ser feitas sem problemas, à noite, nos festivais, ou nos lares das famílias das devadasis. Em 1985, o advogado B.L. Patil fundou uma organização, a Vimochana Sangha, dedicada a erradicar o sistema devadasi. Ele foi fortemente influenciado por um professor que preparava sua tese de doutorado sobre o sistema. “Visitamos o distrito de prostituição em Mumbai e lá havia uma alta porcentagem de devadasis de nossa área (norte de Karnataka), o que me causou uma profunda impressão”, explica o advogado.

 

 

A Vimochana iniciou um programa de conscientização nas comunidades devadasis. Assistentes sociais visitaram esses locais e tentaram convencer as mulheres de que outros prosperavam à sua custa. Os adeptos da deusa, porém, não foram receptivos e proibiram a presença das devadasis nos encontros. Em 1990, a Vimochana fundou a primeira escola para filhos de mulheres devadasis. No primeiro ano, 50 alunos viveram e tiveram aulas na casa de Patil, na vila de Malabad.

No segundo ano, o número de crianças dobrou, e, no ano seguinte, a organização teve de alugar outras duas casas para alojar mais alunos. Por fim, graças a doações de parceiros e de um lote de terra cedido por sua esposa, Patil ergueu um edifício escolar com quartos para os alunos. As matrículas chegaram a 450, incluindo crianças de castas baixas cujas mães não eram devadasis. “Um dos impedimentos das crianças devadasis é que elas recebem apenas o sobrenome da mãe”, explica o professor e conselheiro Girish Chandra. Com isso, podem ser discriminadas até mesmo ao pleitear empregos. A escola tem-se esforçado para incluir o nome do pai quando é possível identificá-lo.

Muitos dos formados na escola se tornaram enfermeiros por meio de uma escola de enfermagem fundada pela Vimochana. Outros seguiram carreira como professores, engenheiros e profissionais da computação, entre outras atividades. “O mais importante é que mais de 300 garotas estão casadas e vivendo no seio da sociedade”, orgulha-se Patil. Apesar do êxito da escola, muitas famílias de alunos têm reservas sobre deixar suas filhas estudar além de certa idade. “Algumas garotas têm de se casar aos 12, 13 anos, mesmo sendo excelentes alunas”, lamenta Chandra.

A Vimochana e outras organizações criaram programas para educar e reabilitar devadasis e outras trabalhadoras sexuais em Karnataka. Um dos objetivos centrais é prepará-las sobre temas de saúde, em especial a Aids. Os programas oferecem treinamento em profissões como editoração eletrônica, montagem e administração de salão de beleza, fabricação de incenso, conserto de TVs e celulares. Embora tenham relativo sucesso, esses programas enfrentam um obstáculo: em vários casos, as devadasis ganhariam mais fazendo sexo do que atuando na nova profissão.

Pesquisa: Equipe Planeta Fotos: Julia Cumes/Zuma Press/ Keystone