Criança kayabi sendo vacinada no Parque Indígena do Xingu. Hélio

Nossa medicina, cada vez mais dependente da tecnologia e fragmentada em especialidades, vê a doença como um fato apenas biológico, que acontece em um corpo também fragmentado. Ao contrário, para muitos povos indígenas a origem da doença pode estar fora do corpo, ligada a forças invisíveis, humanas ou da natureza. Assim, as práticas de cura devem dar conta dos problemas físicos e também espirituais.

O improvável diálogo entre essas duas visões de mundo, tão diferentes, vem sendo travado há quase 50 anos no Parque Indígena do Xingu (PIX), que acaba de comemorar meio século de criação. Desde que começaram a prestar assistência à saúde dos índios do parque, em 1965, os médicos da então Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), construíram um convívio de respeito às práticas tradicionais de cura dos pajés, rezadores e raizeiros. O resultado dessa colaboração pode ser medido por bons dados de saúde que atestam o aumento da população das aldeias e o controle das doenças.

Diagnóstico e tratamento são sempre discutidos no parque

indígena do xingu entre o médico e o pajé

“A receita do sucesso se baseia no respeito e na valorização da cultura centenária dos indígenas e seus sistemas de cura”, observa Douglas Rodrigues, médico sanitarista e um dos responsáveis pelo Projeto Xingu, no qual se engajou ainda estudante. “Dessa convivência, ancorada na troca de saberes, acabou surgindo um diálogo entre as medicinas e os profissionais, pois havia consciência de que só seria possível interferir em determinados processos de saúde e de doença a partir do entendimento e respeito à cultura indígena.”

Diagnóstico e tratamento foram sempre discutidos entre o médico e o pajé, resultando daí a flexibilização do médico – que pode, por exemplo, instalar o soro no doente em sua rede, na maloca mesmo, com uma lanterna, quando o pajé e a família se recusam a levá-lo ao posto de saúde ou hospital – ou uma alteração radical dos hábitos do pajé – que, nos casos críticos, pode acompanhar o doente até o hospital, na capital paulista. “No Hospital São Paulo se faz pajelança, quando necessário”, conta Douglas.

Diálogo e negociação se mostraram importantes também no trabalho dos enfermeiros. Por exemplo, quando os pais dos recém-nascidos não apareciam para participar da pesagem das crianças, por acreditar que as crianças são muito suscetíveis a doenças espirituais até um mês de idade e não devem sair de casa, onde recebem proteção. “Daí a necessidade de nos dispormos a ouvir, não só ouvir, mas escutar e exercer nosso papel de interlocutores”, observa Sofia Mendonça, médica sanitarista e mestre em antropologia, também engajada no projeto desde os tempos de estudante.

Há 46 anos médicos da Universidade de São Paulo cuidam da saúde no Parque do Xingu, respeitando as práticas da medicina indígena.

História

Claudio Villas Bôas e o médico Roberto Baruzzi a bordo de um DC-3 da FAB, em voo para o Parque do Xingu em 1971.

O programa nasceu do idealismo dos irmãos indigenistas Orlando, Claudio e Leonardo Villas Bôas e do médico Roberto Baruzzi, da cadeira de Medicina Preventiva da Unifesp. “Quis o destino que o doutor Roberto Baruzzi, que participava de um grupo que prestava assistência médica às populações ribeirinhas do Araguaia e a comunidades indígenas da Ilha do Bananal, viesse parar no Xingu. Entusiasta como sempre, ele logo se empolgou com o parque”, conta Orlando no livro Parque Indígena do Xingu: Saúde, Cultura e História, (Editora Terra Virgem, São Paulo, 2005).

Estávamos no início dos anos 1960. Villas Bôas convidou Baruzzi e seus companheiros da Unifesp para avaliar as condições de saúde da população do parque, dando a partida para o projeto – que Baruzzi coordenaria por 30 anos. O programa vem prestando assistência, ininterruptamente, a cerca de 60 aldeias de 14 etnias da região do Alto e Médio Xingu: aweti, kalapalo, kuikuro, matipu, mehinako, nahukuá, naruvotu, wauja, yawalapiti, kaiabi, ikpeng, kisêdjê, yudjá e parte da tribo tapayuna. Hoje professor titular aposentado, Baruzzi continua ativo no projeto, como consultor científico.

A assistência de saúde aos índios do parque contribuiu para a sua população passar de 1.135 pessoas, em 1965, para 5.630, em 2009.

 

O médico Douglas Rodrigues tomando as medidas de uma criança indígena.

A doença é uma experiência subjetiva que só adquire sentido num contexto, ainda que o conhecimento médico seja universal

Nesses quase 50 anos, equipes multidisciplinares – de profissionais e de estudantes de medicina, enfermagem, odontologia, antropologia – foram enviadas ao PIX ao menos quatro vezes por ano para vacinação, atendimento e cadastramento médico dos índios, ou ainda em situações de epidemia. O Hospital São Paulo, ligado à Unifesp, assegurou a retaguarda para casos que exigiam cuidados clínicos ou cirúrgicos especializados e se tornou referência nacional em saúde indígena. Desde 1992 possui o Ambulatório do Índio, específico para o atendimento dos pacientes indígenas – cerca de 1.500, anualmente, de todo o país. Outro desdobramento foi o início, em 1990, do programa de Formação de Recursos Humanos para ministrar aos índios cursos de agente de saúde, auxiliar de enfermagem e de gestão em saúde. Hoje, 70% da equipe de 100 pessoas do projeto é composta por indígenas.

Visão indígena

No artigo “Por que aprender com índios”, o jornalista Washington Novaes, autor da série de tevê Xingu – A Terra Mágica (1984), conta um fato revelador da visão indígena sobre a saúde e a doença

“Num sábado de manhã, chegou à casa onde estávamos um índio que pediu que todas as portas fossem vedadas e permanecêssemos em silêncio absoluto, como em todas as demais casas. O chefe e pajé Malakuyawá queria ‘ouvir os pássaros’ para saber por que uma jovem, na casa vizinha, estava em trabalho de parto havia 36 horas, mas não conseguia parir. Duas horas depois, o mesmo índio autorizou que se descerrassem as portas. Malakuyawá já soubera pelos pássaros que o ‘espírito dono da mandioca’, por alguma razão, estava muito insatisfeito e não deixava a jovem parir. Chamou então outros 12 pajés e foram para a Casa dos Homens, no centro da aldeia, onde passaram a fumar os charutos de ervas que os transportam ao mundo dos espíritos. Um dos pajés saiu, reuniu todas as mulheres e crianças da aldeia e foi com elas arrancar ramos de mandioca. Num só grupo, cada um agitando ramos de mandioca, começaram a ir de porta em porta, cantando em homenagem ao espírito. A certa altura, 12 pajés foram para a casa da jovem, que, na penumbra, gemia muito, ao lado do marido. De dois em dois, os pajés iam à rede e, enquanto um entoava cânticos sagrados, o outro, com a boca, chupava a barriga da índia – até que, em certo momento, tapou a boca com as mãos e correu para a mata, ao lado, onde cuspiu o que retirara. Ao final de quase quatro horas, nasceu Tilá-Tilá, hoje uma jovem sadia, mãe de cinco filhos.”

 

Na página ao lado, vista aérea do Posto Pavuru, à beira do Rio Xingu, um dos três centros administrativos do PIX.

Parque Indígena do Xingu: 50 anos

O Parque Indígena do Xingu comemorou, em abril, meio século de criação. Hoje, ele abrange uma área de 2,8 milhões de hectares no nordeste de Mato Grosso, sul da Amazônia brasileira. Nessa região, de grande biodiversidade, convivem pacificamente 16 etnias, nove delas originárias daquelas terras, desde 1884, segundo os trabalhos do etnólogo alemão Karl von den Steinem. Com a intensificação do uso do solo na região, o parque é hoje uma ilha verde cercada por fazendas, desmatamentos e cidades, e as águas do Xingu encontramse ameaçadas pela poluição de suas nascentes e pela construção de hidrelétricas.

A ideia da criação do PIX surgiu na década de 1940, quando o governo Getúlio Vargas deu início à chamada “conquista do Oeste”, com o objetivo de povoar o que se imaginava serem os espaços vazios do Brasil Central. Foi, então, organizada a expedição Roncador-Xingu, na qual se engajaram três jovens irmãos, paulistas de Botucatu, que logo se tornariam seus líderes: Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas. Quase duas décadas depois, seu trabalho resultaria na criação do Parque Indígena do Xingu, do qual Orlando foi o primeiro diretor, em 1961.

O objetivo principal da expedição era definir os lugares para futuros núcleos de povoamento nos chamados “brancos geográficos” do país. Ao invés de vazios, porém, os 40 homens que compunham o grupo foram se deparando com trilhas e aldeias indígenas. Uma carta enviada por Orlando Villas Bôas ao Marechal Rondon, que chefiava o então Conselho Nacional de Proteção aos Índios – e cuja filosofia humanista era “morrer, se preciso for, matar, nunca” -, evitou que a expedição criasse uma frente militar para atravessar a barreira dos índios xavantes na região do Rio das Mortes.

“Os xavantes hostilizavam a tropa e espantavam os burros. Nós tivemos 18 escaramuças com os xavantes, que eram os mais bravos que havia. Nos livramos bem, não demos um tiro em índio”, lembra Orlando em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em 9 de março de 1993. “Quando estávamos no Xingu, o lema da expedição, de marcar pontos ideais para futuros núcleos de povoamento, caiu por terra, porque aquilo era uma área indígena.” Nasceu aí a ideia de demarcar a reserva.

No anteprojeto inicial, apresentado ao Congresso Nacional em 1952, a área do parque era bem maior e havia uma zona de proteção às nascentes da bacia do Rio Xingu. Mas o decreto que o criou, assinado em 14 de abril de 1961 pelo presidente Jânio Quadros, reduziu a reserva a um quarto dessa área. Mudanças posteriores acabaram por dar ao PIX, em 1978, sua dimensão atual. Mas ficaram fora dele, infelizmente, as cabeceiras dos formadores do Xingu, sujeitos ao assoreamento e à contaminação de suas águas.

Corpo indígena

Desde os anos 1970, antropólogos de vários países vêm construindo uma visão de doença diferente da que tem a biomedicina. Articulando o biológico e o cultural, ensinam que a doença é uma experiência subjetiva que só adquire sentido dentro de determinado contexto – ainda que os conhecimentos sobre a anatomia e a fisiologia humanas possam ser aplicados universalmente.

“Para as culturas indígenas, o corpo é construído social e espiritualmente através de dietas especiais, ritos de passagem e outras práticas que constroem a pessoa social. Não é surpreendente, então, que sinais da doença e suas causas sejam frequentemente procurados fora do corpo”, afirma Jean Langdon, titular da cadeira de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, no mesmo livro, lançado em comemoração aos 40 anos do Projeto Xingu.

“Para muitos povos indígenas, as doenças que acometem as crianças, principalmente as menores de um ano, são causadas porque os pais romperam algum tabu, alguma regra social relacionada à alimentação do casal ou ao comportamento social ou ainda ao tipo de trabalho que realizam nessa fase de maior vulnerabilidade das crianças”, explica Sofia. “Esse pensamento nos mostra como é diferente a própria concepção de corpo: o corpo da criança não é tido como um organismo individualizado, como aprendemos na biologia, um corpo separado dos pais e seus parentes mais próximos. Para eles, pai, mãe e filho permanecem como uma unidade psíquica e física, compartilhando substâncias corporais e alimentos.”

Sofia explica ainda que, embora vejam as doenças de modo tão diferente do nosso, os índios buscam os serviços de saúde para aliviar e tratar os sintomas, sem com isso deixar de procurar seus próprios especialistas. “As abordagens terapêuticas não são necessariamente excludentes, elas devem ser complementares. Os recursos médicos ocidentais são reconhecidos como parte do tratamento e mais uma alternativa terapêutica disponível e não implicam necessariamente uma mudança sobre a explicação das causas da doença.”

 

Indicadores de vida

Em quatro décadas, a população do PIX foi multiplicada por cinco, enquanto a população brasileira cresceu 2,3 vezes

População do Parque Indígena do Xingu

1965 a 2009

Ano

População Xingu

População Brasil

1965

1.135

82.222.000

1975

1.605

101.145.200

1985

2.555

135.105.916

1999

3.705

167.909.738

2009

5.630

189.909.983

Fonte: dados primários do arquivo Usma/Unifesp, censos e projeções populacionais, IBGE (disponível em www.ibge.gov.br)

Mortalidade infantil, mortalidade geral e mortalidade materna

1999 a 2010

Ano

CMI*/1.000

CMG**/1.000

CMM***/1.000

1999

5,9

14,7

2001

45,4

5,4

5,0

2003

38,4

3,9

4,8

2008

36,7

3,2

0

2010

25,7

3,8

0

Fonte: dados primários do arquivo Usma/Unifesp

*CMI = Coeficiente de mortalidade infantil

**CMG = Coeficiente de mortalidade geral

***CMM = Coeficiente de mortalidade materna

Número dos casos e taxa de incidência da tuberculose

2004 a 2010

Ano

Número de casos

Taxa de incidência de tuberculose/100.000

2004

7

325,7

2005

2

86,9

2006

1

41,8

2007

1

40,6

2008

2

81,5

2009

0

0,0

2010

1

38,7

Família do pajé Kayabi Prepori (no centro da foto com o braço levantado), com os médicos Baruzzi, Sofia, Douglas e Marcos Pelegrino, em 1984.

 

 

Atualmente, 70 dos 100 membros da

equipe de saúde do parque do xingu são índios

 

 

 

 

“O índio, ao nos colocar numa situação extrema, nos obriga a refletir e a tratar gente como gente”, afirma Douglas Rodrigues.

Lição de humanidade

Consciente dos limites do modelo biomédico, focado na doença e no médico, que domina a prática da nossa medicina, foi instituída no país a figura do “médico generalista” e criada uma política nacional de humanização da assistência à saúde. O objetivo é valorizar o trabalho em equipe, o diálogo entre os profissionais de saúde, a subjetividade do paciente, a relação do médico com seu paciente e sua comunidade – entre outras questões.

“O índio, ao nos colocar numa situação extrema, nos obriga a refletir e a tratar gente como gente”, observa Douglas. “O pajé não sai do lado do paciente enquanto durar a doença, dure uma semana ou um mês. A gente dá uma passadinha e vai para outro emprego, e no dia seguinte passa um outro médico. No entanto, estudos mostram que, se o paciente está tranquilo, isso aumenta a imunidade. Por isso, para nossos alunos, residentes e pós-graduandos ensinamos a revalorização do toque e da relação com o paciente. Apalpar um baço, por exemplo, exige treinamento. Mas a tendência, hoje, é colocar o paciente no ultrassom e basear-se em exames, sem olhar para a pessoa e interagir com ela. Isso um computador faz!”

A experiência da Unifesp com os povos nativos brasileiros tem algo a contribuir sobre isso. “A concepção do modelo de atenção à saúde indígena, embora gestada a partir de outras premissas, se aproxima da Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde em sua perspectiva de ‘escuta e conversa’, de ‘questionar e reconstruir’ os conceitos relacionados a saúde, adoecimento e cura”, afirma Sofia. “Devemos nos conduzir com a mais íntima disposição de apresentar as possibilidades que conhecemos sem desprezar as possibilidades e conhecimentos do outro; esclarecer o que sabemos sem qualquer barreira para ouvir e respeitar o que desconhecemos; informar o que podemos sem considerar que podemos tudo.”