Apontado como chefe de uma certa tropa de indígenas flecheiros, o soldado Bartholomeu “Jacaré” teria tomado parte nos combates pela Independência da Bahia, ocorridos entre 1822 e 1823. Dentre as batalhas de que supostamente participou como integrante do pelotão liderado pelo tenente-coronel Joaquim Pires de Carvalho Albuquerque (1788-1848) estaria a defesa de um engenho baiano ameaçado por forças portuguesas, como mostra documento produzido durante a campanha militar. “Em feito admirável – e talvez de veracidade questionável –, o soldado Jacaré teria abatido seu oponente lusitano com a mesma bala que anteriormente – embora sem dano – este o atingira no peito”, escreve a historiadora Elisa de Moura Ribeiro, no verbete dedicado ao combatente que integra o Dicionário da Independência: História, memória e historiografia.

Com 765 verbetes e lançamento previsto para o segundo semestre, a publicação busca trazer um olhar múltiplo sobre o processo de Independência do Brasil. A começar pelo recorte temporal, que abrange o período compreendido entre 1808, data da transferência da corte portuguesa, e 1831, quando o imperador Pedro I (1798-1834) abdica do trono. “Como todo grande tema histórico, a Independência possui múltiplas dimensões, espaços e tempos, que a tornam capaz de se relacionar direta e indiretamente com muitos quadrantes da realidade social de sua época”, defendem no prefácio da obra os organizadores Cecília Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta, ambos do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Pautado pela diversidade

A publicação é fruto da parceria entre a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), da USP, e o Instituto Camões, de Portugal. A ideia nasceu no projeto “3 vezes 22”, desenvolvido desde 2017 pela BBM-USP com o intuito de refletir sobre o bicentenário da Independência do Brasil, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 e o contexto atual e estará disponível no site da BBM. Envolvidos na programação, Oliveira e Pimenta receberam em 2018 do coordenador do projeto e atual diretor da biblioteca, Alexandre Macchione Saes, a encomenda para desenvolver um dicionário sobre o período da Independência. “O resultado do trabalho organizado por Cecília e João Paulo mostra que não dá para analisar a Independência do Brasil apenas a partir do projeto vencedor ou então focar somente no que aconteceu no Rio de Janeiro e em São Paulo”, observa Saes, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP e autor do verbete “Economia política”. “É um dicionário pautado pela diversidade.”

Uma das provas disso, indicam Oliveira e Pimenta, está no time de colaboradores composto por 276 especialistas de 11 países. Além do Brasil, figuram Estados Unidos, Canadá, França, Portugal, Colômbia, Espanha, México, Uruguai, Chile e Argentina. “Um dos objetivos é situar o nosso processo de Independência no contexto mundial inscrevendo-o no amplo quadro de transformações que se inicia em meados do século 18 e atinge diversas regiões da América, da Europa, da África e, em menor escala, da Ásia”, esclarece Pimenta. O mesmo conceito norteou a escolha dos colaboradores brasileiros, espalhados por universidades de quase todos os estados do país.  “Buscamos contemplar o que aconteceu nas diversas regiões do Brasil”, diz Oliveira, professora do Museu Paulista (MP-USP) e estudiosa da temática desde a década de 1970. “Nos preocupamos em reunir várias gerações de pesquisadores, dos experientes aos mais jovens. Costumamos dizer que o dicionário se assemelha a um caleidoscópio de referências, informações e interpretações.”

Usos políticos, invenções e mitos

De acordo com Pimenta, a obra busca apresentar o enorme manancial de estudos da Independência desenvolvido a partir do século 19 assim como abrir novas perspectivas sobre o tema. O dicionário não deixa de trazer verbetes sobre episódios e personagens canônicos, como o rei João VI (1767-1826), o estadista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) e o próprio 7 de setembro de 1822. “Nesses casos buscou-se falar não apenas dos episódios e das figuras históricas propriamente ditos, mas também dos usos políticos que ganharam ao longo do tempo, bem como sobre invenções e mitos que os cercam até hoje”, destaca o pesquisador.

Por outro lado, o dicionário trata de iluminar aspectos menos conhecidos do processo de Independência. O verbete “Serra do Rodeador”, por exemplo, discorre sobre a localidade pernambucana que abrigou uma comunidade messiânica fundada em cerca de 1811 por Silvestre José dos Santos ou Silvestre César, desertor do 12º Batalhão de Milícias. Como sinaliza no texto o historiador Flavio José Gomes Cabral, da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), há quem diga que o Arraial do Rodeador chegou a reunir 200 pessoas armadas, que rejeitavam João VI e cultuavam a figura mítica de dom Sebastião (1554-1578) – rei português cuja morte em uma batalha contra os mouros foi rechaçada pelos portugueses no século 16 e gerou a crença de que o monarca voltaria como redentor do povo lusitano.

Em 25 de outubro de 1820 o exército real invadiu o local. “As casas foram destruídas e consumidas pelo fogo, ateado pelos soldados. Os corpos daqueles que morreram no combate juntamente com os feridos foram amontoados e queimados, lembrando uma grande fogueira. Com o desmonte do arraial no dia 26 de outubro de 1820, os militares arrastaram os presos que escaparam da morte até o povoado do Bonito, como se fossem troféus de guerra”, prossegue Cabral.

Independência no cinema

“O próprio formato de dicionário favorece uma ampla diversidade temática e autoral”, constata Oliveira. Nesse sentido, a especialista chama a atenção para verbetes que investigam de que forma a literatura e a fotografia, dentre outras áreas, se apropriaram da Independência. Como aponta a historiadora Ana Carolina de Moura Delfim Maciel no verbete “A Independência no cinema”, o primeiro registro na filmografia brasileira sobre o tema é o longa-metragem Grito do Ipiranga, também mencionado como Independência ou Morte. A produção paulista de 1917 foi dirigida pelo italiano Giorgio Lambertini, com argumento assinado pelo escritor e jornalista Eugênio Egas (1863-1956), autor do livro O Grito do Ipiranga (1909). “Algo pitoresco no elenco era seu caráter eminentemente familiar […] consta que a atriz que interpretava a marquesa de Santos saía de cena e ia diretamente para a cozinha preparar especialidades italianas, polpetas, para alimentar a equipe”, registra Maciel, do Programa de Pós-graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Outra peculiaridade do dicionário é trazer verbetes sobre historiadores brasileiros especialistas na temática da Independência. A lista começa no século 19, por meio de nomes como Francisco Varnhagen (1816-1878), atravessa o século 20 e chega aos dias de hoje. “A historiografia brasileira evoluiu muito nas últimas duas décadas e vem trazendo novas perspectivas para entender o período, o que inclui a participação das mulheres e dos povos indígenas no processo. Mesmo que discordemos do que foi dito ou então do que não foi dito por alguns historiadores no passado, é importante conhecer essa produção. Não podemos esquecer que as questões que podemos levantar hoje são tributárias do caminho que esses autores começaram a pavimentar lá atrás”, finaliza Oliveira.

* Este artigo foi republicado do site Revista Pesquisa Fapesp sob uma licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o artigo original aqui.