Hematologista da USP mobiliza o instituto paulista no combate à pandemia e quer transformá-lo em um dos maiores produtores de vacinas e soros do mundo

Paulista de Batatais, interior paulista, o médico Dimas Tadeu Covas deixou temporariamente o cargo de professor na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto em 2017 para assumir a direção do Instituto Butantan, na capital. No início de 2020, quando começou a pandemia, ele suspendeu os planos de reorganização institucional e começou a ganhar visibilidade pública ao tornar o instituto paulista, que neste mês de fevereiro completa 120 anos de fundação, um dos centros do combate à covid-19 no Brasil.

Aos 64 anos, casado, com um casal de filhos, de 17 e 23 anos, católico, admirador da obra do frade italiano Tomás de Aquino (1225-1274), Covas (sem parentesco com o prefeito paulistano) está à frente da CoronaVac, vacina contra a covid-19 produzida pela empresa chinesa Sinovac, aprovada para uso emergencial no Brasil no dia 17 de janeiro, após ensaios clínicos fase 3 coordenados pelo Butantan. No começo de janeiro ele concedeu a entrevista a seguir por videoconferência.

Como o Butantan participa do desenvolvimento da CoronaVac?

A associação com a Sinovac foi feita para agilizar o desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19. O primeiro fator que justificou esse acordo é que a CoronaVac já estava pronta em abril de 2020. Foi uma adaptação de uma vacina anterior contra outro coronavírus, o SARS-CoV-1, causador da Sars [Síndrome Respiratória Aguda Grave]. Ela era feita com uma tecnologia de produção que dominamos, a de vírus inativado, muito parecida com a usada na fabricação da vacina contra a dengue.

O segundo fator foi a possibilidade de trazer uma vacina rapidamente para o Brasil. O acordo envolvia o fornecimento de matéria-prima pela Sinovac. O Butantan já trouxe para o país o equivalente a 10 milhões de doses até dezembro de 2020, e teremos volumes adicionais até o final de 2021. Hoje, cuidamos apenas do envase e de uma mudança de formulação. Na China, as ampolas têm dose única. Já no Butantan, produzimos 10 doses por frasco, que é o habitual.

Para incorporar a tecnologia de produção, estamos construindo uma fábrica multipropósito. Ali, produziremos a vacina contra a covid-19 e outras com base em cultivo viral em células Vero [linhagem comumente usada em culturas microbiológicas, sintetizadas a partir de células isoladas dos rins de macacos]. A transferência que nos interessa é exatamente a do banco de células Vero, pois conhecemos a tecnologia de produção. Utilizamos o cultivo do coronavírus na produção de soro anticoronavírus [vacinas induzem a produção de anticorpos, enquanto soros são os próprios anticorpos]. As células usadas pela Sinovac, na produção da vacina, são as mais adequadas para o crescimento do vírus. O acordo prevê o repasse, se for de nosso interesse.

O interesse depende de quê?

O que precisamos avaliar é a conveniência de produzirmos a vacina no Brasil. Isso depende do ritmo da pandemia e do desenvolvimento de outras vacinas. A Sinovac tem uma grande capacidade de produção. A partir de outubro de 2021, quando a fábrica estiver operacional, é que vamos decidir sobre a incorporação dos bancos e a possibilidade de produção da vacina no instituto.

As vacinas contra a covid-19 foram desenvolvidas rapidamente, em menos de um ano, em vez dos 10 habituais. Como foi possível?

O processo de produção da CoronaVac estava pronto, o que é novo é o vírus. O vírus em si pode ser mudado a qualquer momento. A questão mais importante é termos uma linhagem definida para a produção de uma vacina. As mutações são esperadas, à medida que o vírus convive com o organismo humano. Até o momento, não apareceu nenhuma mutação que prejudique a produção de anticorpos neutralizantes. O mundo está preparado para acompanhar essa evolução viral e aperfeiçoar as vacinas caso seja necessário. As formulações iniciais são feitas rapidamente para atender as emergências, como acontece nesta pandemia. Com o passar do tempo, teremos condições de aperfeiçoar e produzir vacinas melhores. Vacinas de vírus inativados são tradicionais e seguras. Já as realizadas com outras tecnologias, como as RNA e de adenovírus, terão ainda que demonstrar sua segurança no longo prazo.

Como está o trabalho do instituto na vacina contra a dengue?

A inclusão de voluntários na fase 3 de testes já acabou e agora estamos na etapa de acompanhamento, para avaliar os casos e eventuais efeitos colaterais da vacina. Após dois anos, os casos de dengue voltaram a crescer. Esse crescimento nos permite estudar a ação da vacina sobre quatro subtipos de vírus da dengue.  Imagino que ainda em 2021 teremos as conclusões e poderemos pedir o registro na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para uso dessa vacina na população.

Atualmente o Butantan só produz uma vacina integralmente, contra influenza, e importa e embala outras seis…

Na realidade, produzimos integralmente, em escala, duas vacinas. Uma contra a gripe e, em escala-piloto, contra a dengue. A vacina mais tradicional do Butantan, a DTP [contra difteria, tétano e pertussis ou coqueluche], de fato não é mais produzida aqui. A da hepatite B é produzida por meio de uma parceria com a Coreia. Houve uma mudança na forma de entender como funciona a cadeia mundial de vacinas. Muitas vezes se contrata a produção em outros países, a chamada CMO [contract manufacturing organization ou organização de manufatura por contrato]. Aliás, estamos no processo de fazer com que uma das nossas fábricas seja usada como CMO por outra produtora de vacinas.

Os acordos de complementação de cadeia produtiva apontam para um novo futuro nessa área. Não é necessário estar presente em todas as etapas do processo de realização de uma vacina, mas ter a capacidade de nos associarmos a outros parceiros para realizar essas complementações. A associação com a Sinovac é nossa primeira experiência nesse campo.

Não é arriscado depender de importações para quase tudo?

Não dependemos de importação e não estamos importando. O que existe são acordos comerciais de produção com empresas, o que é habitual para o Butantan. Um exemplo disso é a contratação de uma empresa chinesa para fabricar o seu iPhone. O importante é o desenvolvimento de biotecnologia. Hoje temos independência em apenas três processos biotecnológicos, os das vacinas contra raiva, dengue e gripe. Na área de soros, temos independência total, o Butantan não perdeu a tradição nessa área; pelo contrário, está ampliando a capacidade produtiva. Estamos fornecendo para outros países e brevemente vai entrar em operação mais uma unidade de produção de soros. Pretendemos mandar soros para o mundo inteiro.

Como o senhor está lidando com a contínua perda de pesquisadores do instituto, que se aposentam e não são repostos, já que não há concursos públicos? 

O Butantan não tem contratado pessoas para a carreira de pesquisador, criada muito tempo atrás. No entanto, a Fundação Butantan tem mais autonomia, contrata pesquisadores e traz oportunidade para muitos profissionais. Um quadro em expansão.  Nos últimos anos, o ritmo de contratação foi muito grande. Quando um pesquisador vai embora, por exemplo, não significa que haverá uma reposição naquela área, pois estamos realizando a estruturação da instituição em direção ao seu verdadeiro propósito, que é investir em pessoas que nos ajudem a combater os problemas que podemos de fato enfrentar. Tínhamos aqui um setor que estudava zoologia de pássaros. Um trabalho bacana, mas que não faz parte da missão do instituto. Assim como o setor que estudava insetos. As atividades que não são próprias do instituto tendem a desaparecer, o que é absolutamente normal em um processo de reestruturação.

Como estava o Butantan antes da pandemia e como está agora?

Quando cheguei e assumi meu cargo, há quase quatro anos, encontrei um Butantan meio adormecido, com problemas de gestão e de falta de foco, com atividades dispersas e sem entender sua missão principal. Isso pode ser normal em uma instituição centenária. Eu vivia outra realidade, pensava de outra forma e estava focado nas áreas médicas e de biotecnologia. Quis trazer para o Butantan o entusiasmo para enxergar o grande potencial desse instituto.

A pandemia chegou em um momento importante, quando nos preparávamos para dar um grande salto.  Esse salto ocorreu no ano passado. Tínhamos a nova fábrica para a vacina contra gripe, uma das maiores do mundo, com capacidade para produzir quase 160 milhões de doses por ano. Esse fato mudou completamente a face do Butantan. Acho que consegui infundir o entusiasmo e a vontade de acertar.

Hoje o Butantan é uma instituição com um propósito bem definido, uma instituição de pesquisa, sim, mas fazer pesquisa não é a sua finalidade principal. Somos também uma instituição de ensino e de cultura. No entanto, nosso foco é a produção de soros, de vacinas e de soluções tecnológicas a favor da saúde das pessoas. Fomos abalroados por esta pandemia e atuamos em várias frentes. Fizemos uma rede de laboratórios e testes de coronavírus em todo o estado de São Paulo. Realizamos trabalhos de modelagem epidemiológica e saímos a campo para fazer testes. Nossa equipe foi até as comunidades, testamos por meio de drive-thru, enfim, muitas atividades que não eram habituais.

Quais os planos para depois da pandemia?

O Butantan será um dos maiores produtores de vacinas e soros do mundo. Fomos interrompidos pela pandemia, mas já há um esforço enorme nessa direção, inclusive com um projeto de sete novas fábricas, que queremos retomar assim que possível. Em nossos planos está a construção também de uma fábrica de anticorpos monoclonais, que logo deve entrar em operação. Nossa área de soros está sendo totalmente reformada.

O que o senhor aprendeu nesta pandemia?

Primeiramente, aprendi que o esforço humano não tem limite. Sempre que você acha que chegou no limite, descobre que não foi o seu limite e ainda tem muito a dar. A pandemia tem sido um desafio para o qual ninguém estava preparado, mas que, por um lado, criou uma janela enorme de oportunidades. Por outro lado, mostrou de forma clara nossas deficiências. Nunca ficaram tão estampadas para o cientista brasileiro as deficiências que temos de recuperar, as necessidades a sanar.

Que deficiências?

Temos deficiências profundas, como a de formação, de educação, de objetivo de país, de política industrial, assuntos que todos já ouvimos falar. Uma crise como essa mostra que temos muito ainda a planejar e construir, como país, como nação. Somos pouco treinados em filosofia e lógica, que ajudam a entender a realidade. Penso que uma de minhas tarefas, como professor universitário, é ajudar os outros a olhar para o ambiente propício ao desenvolvimento do pensamento estruturado, o pensamento profundo da lógica, e constantemente se perguntar se está de fato olhando para a realidade ou se está perdido em simulacros da realidade.

Gosto muito de ler também sobre filosofia da ciência. Não abandonei a obra de Tomás de Aquino. Ele anda comigo, é meu refúgio e me ajuda a questionar sobre o que preciso nesses momentos de crise. Não me interessa o pensamento teológico de Tomás de Aquino, mas o pensamento do filósofo realista, que fala como é o mundo.

O senhor ainda faz pesquisa?

Sou coordenador do Centro de Terapia Celular [um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão apoiados pela Fapesp] e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Células-Tronco e Terapia Celular, ambos na USP de Ribeirão Preto. Minha área de pesquisa sempre foi biotecnologia e células-tronco também, sempre procurando resolver problemas práticos (verPesquisa Fapespnº 286). Diminuí muito o número de alunos e de orientações, mas mantenho contato com meu grupo de pesquisa, que funciona muito bem, com pouca conversa e muito trabalho.

Há meses o senhor tem sido constantemente solicitado para entrevistas. Como está lidando com a mídia?

Quer dizer, como estou aprendendo a lidar? Tenho sobrevivido à mídia desde o início da pandemia porque sou absolutamente sincero e tenho opiniões coerentes. Gosto de levar transparência e verdade sobre o que penso nas entrevistas. Tenho sido convidado com frequência para a bancada do Jornal da Cultura e é um grande aprendizado. No começo, percebo que eu era absolutamente incompreensível. Falava em RT, taxa de progressão, mas essa linguagem era a mesma que usava para os colegas da universidade e percebi que não atingiria o grande público. Com o tempo descobri que, em vez de ficar falando em RT, tenho que dizer que a epidemia está explodindo ou o número de casos está subindo numa velocidade que nunca vimos antes. Aí as pessoas começam a prestar atenção. Ainda estou aprendendo a linguagem de comunicação com o grande público. Às vezes, é difícil.

O senhor faz algum midia training?

Minha midia training é a minha filha Giulia, de 17 anos, que fala: “Pai, hoje o senhor foi bem”. Ou então: “Hoje o senhor não agradou não, viu? Hoje o senhor falou umas coisas aí…”. Por um tempo ela pensou em seguir a carreira médica, mas avisei: “Não pense que sou um modelo para você, está certo? Vou ficar bravo se você escolher ser médica só porque sou médico. Você vai ter que me convencer de que tem vocação e vai se dar bem”. Hoje acho que ela nem pensa mais nisso.

 

Dimas Covas em perfil

Idade 64 anos

Especialidade Hematologia, biotecnologia, células-tronco

Instituição Universidade de São Paulo (USP)

Formação Graduação em medicina (1981), mestrado (1986) e doutorado (1993) na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP

Produção 305 artigos científicos, autor ou coautor