Dubai, um pedaço de terra incrustado nos Emirados Árabes, parece um lugar mágico. Seus luxuosos arranha- céus estão deslumbrando o mundo e não há quem já não tenha parado boquiaberto diante da imagem do Burj Al Arab, o único hotel sete-estrelas do mundo, construído no formato de vela de um grande barco às margens do Golfo Pérsico. Foi lá, na terra comandada pelo xeique Mohammed Al Maktoum, que eu desembarquei, no início de maio, cheia de expectativas em conhecer uma região que está reinventando o conceito de luxo, impulsionada pelos dólares do petróleo. Dubai, em minha imaginação, brilhava como uma espécie de Nova York renovada que cresce na velocidade de duas Chinas.

Ao sentir o primeiro bafo do deserto, depois de passar pela porta do aeroporto, levei o primeiro baque cultural de outros tantos que ainda estavam por vir: pequenos cercados com placas de sinalização indicavam área restrita para mulheres locais à espera de parentes que chegavam de todas as partes do mundo. Em outra área, o espaço reservado só para os homens. Apesar de a lei não servir aos estrangeiros, jamais a segregação de gênero havia se apresentado de forma tão dura e direta a mim, uma jornalista brasileira de 33 anos acostumada à independência financeira e de decisões. Não ser etnocêntrica e tentar entender os porquês daquela distinção tão declarada foi um desafio que enfrentei durante os cinco dias seguintes.

Ao sair do aeroporto em um táxi pintado com faixas cor-de-rosa – indicando que aquela condução era dirigida por uma mulher que não poderia transportar homens desacompanhados -, decidimos, eu e mais três jornalistas, deixar nossas malas no hotel e conhecer a cidade. Era uma sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos. Já no hotel nos avisaram que os shopping centers – grande atração turística pelo luxo e pelos preços convidativos (Dubai é uma área livre de imposto) – estariam fechados. Tentamos passear a pé, mas o calor de 37ºC nos empurrou de volta para dentro do hotel. Para piorar, caminhar naquela semana seria complicado: chegamos junto com o shamal, uma tempestade de areia que invade o céu, cobrindo o sol com uma poeira fina e desconfortável.

Pegamos um táxi e seguimos para o Old Souk, um bairro tradicional que concentra o mercado de tecidos e de informática. A cidade estava vazia e, no caminho, foi surgindo pelas janelas do carro a Dubai dos arranha-céus, com construções de linhas ultramodernas. A despeito do calor infernal, flores muito bem cuidadas – sabe-se lá a que custo – enfeitavam rodovias perfeitas por onde uma série de Ferraris, Maseratis, Alfa Romeos e Porsches desfilavam.

O Burj Al Arab apareceu no horizonte meio encoberto pela poeira. Simplesmente lindo. O luxo é tanto que parece um mundo de faz-de-conta. Entre alguns enormes prédios já prontos, a indicação de que em cinco anos tudo será diferente: a cidade é um canteiro de obras. Cerca de 30% das gruas do mundo estão ali e, durante a semana, aquelas construções assemelham-se ao garimpo de Serra Pelada, com operários subindo e descendo freneticamente pelas instalações.

Chegamos ao Old Souk. Uma mesquita nos recebeu de portas abertas, mas com entrada proibida para as mulheres. Na porta, os calçados dos homens que lá dentro oravam. Fora, uma ou outra turista que visitava um museu próximo, nenhuma mulher árabe. Fomos andando. A poucos metros dali, resolvemos entrar em um beco repleto de portas de madeira fechadas. Cruzamos por uns três ou quatro grupos de indianos. Todos homens. Todos calados. Todos de mãos dadas.

No alto, cena de um dos resorts próximos à capital, com sua pista de esqui artificial; Avenida central do emirado de Dubai; jovens árabes, trajados de forma tradicional, apreciam seu café na loja Starbucks de um centro comercial.

uma nativa prepara comida regional

ESTRANHO, MAS LÁ os indianos andam se acariciando e os árabes se cumprimentam esfregando um nariz com o outro. Enquanto isso, o beijo em público entre um homem e uma mulher dá cadeia. Ou advertência, para os estrangeiros. Caminhamos, passando por becos apertados. Uma ou outra loja aberta mostrava tecidos coloridos de todos os tipos. Entra aqui, vira ali e, de repente, nos deparamos com um imenso corredor de uns três metros de largura, repleto de lojas de ambos os lados, e no meio uma multidão… todos homens.

Se o meu constrangimento no aeroporto ao ver áreas separadas para homens e mulheres já foi enorme, imagine ao chegar àquele centro escondido de Dubai. Não havia árabe ali. Não havia mulher. Somente paquistaneses, indianos, filipinos. Um contingente que sai de sua terra natal para trabalhar como operário da construção civil em Dubai. Hoje, dos 4,9 milhões de residentes do emirado, 3,8 milhões são estrangeiros e apenas 27% são mulheres. Seus salários não passam de US$ 300.

Foi ali, naquele momento, que a diferença cultural ficou evidente. Sou morena, cabelos lisos e castanhos e olhos grandes. Meus traços de árabe e minha roupa de ocidental – calça, camiseta sem decote e tênis – pareciam não combinar. Enquanto eu caminhava pelo Old Souk, os homens me encaravam ostensivamente. Não falavam comigo, não se aproximavam. Simplesmente olhavam, encaravam. Tentei fingir que não era nada demais. Não dava. Mais um passo e outros olhares. Ficava parada e todos olhavam.

Burj Dubai, a torre-cidade

Burj Dubai, a Torre de Dubai, ainda em construção, será o arranha-céu mais alto do mundo. A altura exata após a conclusão ainda é desconhecida, mas acreditase que estará entre 700 e 800 metros. O término da construção está previsto para 2009, a um custo estimado de US$ 8 bilhões. O Burj Dubai foi desenhado pelos arquitetos Skidmore, Owings, e Merrill, que também desenharam a Sears Tower, em Chicago, e a Freedom Tower, em Nova York, entre outros edifícios famosos.

O interior será decorado por Giorgio Armani. Um Hotel Armani (o primeiro desse tipo) vai ocupar os primeiros 37 andares. Do 45º ao 108º andar haverá cerca de 700 apartamentos privados (que, segundo o responsável, foram vendidos em oito horas). Corporações e suítes completarão a maior parte dos andares restantes. A obra também terá o elevador mais rápido do mundo (65 km/h). Quando completo, o empreendimento deverá incluir 30 mil residências, 9 hotéis, 19 torres residenciais e 12 hectares ao redor, cobrindo uma área total de 2 milhões de metros quadrados.

Vai-se o petróleo, chegam os hotéis

Dubai é o segundo maior entre os Emirados Árabes Unidos. Sua capital tem o mesmo nome e cerca de 1.570.000 habitantes. Possessão de Abu Dhabi até 1833, Dubai teria hoje 30% dos guindastes de construção do mundo.

Em 2007, o setor do petróleo representava pouco mais de 5% da economia do emirado, enquanto o turismo, o setor mais atuante, respondia por cerca de 33%. Seu PIB cresce em torno de 19% (mais que o dobro do da China). Prevendo que suas reservas de petróleo vão acabar em alguns anos, o governo desenvolve uma estratégia para transformar o emirado em grande pólo de turismo e negócios.

A origem da capital é uma secular aldeia de pescadores e coletores às margens da baía da Dubai. A cidade moderna data dos anos 1830. Sua população nativa é minoritária; mais de 75% dos moradores vêm de outros países, sobretudo do sul da Ásia e das Filipinas. O idioma oficial é o árabe. O inglês é ensinado nas escolas e largamente utilizado. A religião oficial é o islamismo, havendo também templos hindus e cristãos.

O porto de Dubai é o 13° mais movimentado do mundo. A cidade abriga ainda empresas multinacionais, que gozam de isenções comerciais e fiscais.

Não havia mulheres locais ali. Uma ou outra turista circulava, acompanhada por namorados ou maridos. Ainda assim, elas passavam pela mesma situação. Olhares curiosos, quase inquisidores. Para tentar disfarçar, comprei um lenço, algo colorido, muito longe das abayas – a vestimenta negra que as mulheres locais usam -, e cobri o cabelo. Não adiantou. Eu era uma estrangeira e ponto.

Alguns dias depois, conversando com a brasileira Márcia Santos, 52 anos, que se mudou para lá há 12, descobri que a segregação já foi maior. Com traços também muito próximos aos árabes, Márcia chegou a passar pelo constrangimento de ser abordada pela polícia para explicar o uso de roupas inapropriadas, por não estar vestida com a abaya. Naquele tempo – antes da decisão do xeique de transformar o emirado em um pólo turístico e flexibilizar as leis islâmicas, tomada há seis anos -, as mulheres (e Márcia passou por isso) precisavam apresentar autorização por escrito do marido para cumprir tarefas rotineiras para nós, ocidentais, como abrir conta em banco ou dirigir.

À esquerda , Lana Pinheiro com seu lenço colorido comprado em Dubai. À direita, o Gold Souk (Mercado de Ouro), com sua incrível profusão de produtos à mostra, é um dos pontos nos quais a presença das mulheres locais é mais notada.

NOS ÚLTIMOS SEIS anos, a vida para as mulheres ficou mais fácil por lá e deve sofrer ainda grandes transformações, já que a meta é atrair 15 milhões de turistas por ano para a região até 2015 – hoje, são 6 milhões. Abrir conta em banco já é permitido, ainda que a mulher não tenha atendimento preferencial. Dirigir também já é tarefa comum, embora a maioria das motoristas nas ruas seja estrangeira.

A Dubai de hoje é mais evoluída. Apesar dos olhares que inibem e me fizeram constrangida no Old Souk, não há violência. Fora de hotéis, táxis, lojas e restaurantes, os homens evitam contato verbal com mulheres estrangeiras. A aproximação física também não existe, pelo menos em público. No Gold Souk, o Mercado do Ouro, onde jóias são expostas como carne em açougue, a presença das mulheres locais é mais intensa. Vão em busca de acessórios. Todas de abaya.

Uma ilha em forma de palmeira

Arquipélago artificial no formato de palmeira, Palm Island é um audacioso projeto da Al Nakheel e uma das grandes atrações da cidade. Seu objetivo é aumentar o turismo em Dubai. Mesmo sendo artificial, o arquipélago foi construído apenas com o uso de materiais naturais (areia e pedras), em vez de concreto e aço, mais aconselhados para o tipo de estrutura.

Uma segunda ilha artificial já se encontra em estágio avançado de construção. Os planos dos criadores de Palm Island prevêem ainda uma terceira ilha artificial no formato de palmeira. Em cada braço dessa palmeira estão sendo construídos elegantes hotéis e grandes residências. Os endinheirados moradores do lugar podem ter o direito de atracar sua lancha na frente de algumas dessas construções..

Mostrar pernas, braços e cabelos é proibido. Em alguns casos, somente os olhos ficam descobertos. Por lá descobri também que, em algumas famílias, o grau de exposição do corpo é definido pela própria mulher. Em outras, mais conservadoras, a decisão cabe ao pai ou ao marido. E por debaixo daquela vestimenta preta, nas famílias mais ricas, estão finas roupas de marcas, como Versace, Christian Dior, Gucci e Prada. Além de muito ouro e pérola. Tudo para os maridos. Por isso, os shoppings são uma atração à parte. Em um deles, existe até uma pista de esqui artificial. Lojas de marca são tantas que cansam.

Melhor, como turista ocidental, foi conhecer essa Dubai clandestina que pouco aparece na mídia. Um lado de um emirado de religião muçulmana que está tentando aprender a lidar com a mulher ocidental, mas que ainda não sabe como. Uma região de contradições onde, no lado rico, européias andam de minissaias sem problemas, enquanto nos bairros tradicionais as raras mulheres que aparecem são observadas atentamente.

Um país onde beijos entre casais são motivo para prisão, enquanto homens se cumprimentam com carícias públicas. Uma Dubai de arranha-céus ultramodernos e hotéis superestrelados, mas também de mercados populares de seda, ouro e especiarias, onde dinheiro algum é capaz de pagar as cores e cheiros das favas de baunilha misturadas às pimentas secas e açafrão. Uma Dubai na qual se esconde a cultura de um povo que enfrenta o desafio de atender turistas ocidentais ao mesmo tempo que mantém sua religião.