Cena desoladora na BR-356, em Campos (RJ), depois da cheia do Rio Muriaé, em janeiro passado.

 

Nem El Niño, nem La Niña, nem Zona de Convergência do Atlântico Sul. Os principais agentes causadores de “catástrofes” naturais, como as chuvas e inundações que castigam as cidades brasileiras no verão, não são forças incontroláveis da natureza, mas sim populações e governos. Com um planejamento urbano adequado e minimamente respeitado, os maiores volumes de chuvas não causariam as enchentes, os deslizamentos e os prejuízos que se repetem ano a ano. O drama tem solução.

O Censo 2010 registra 11,4 milhões de brasileiros – 6% da população, o equivalente à população da Grécia – vivendo em “aglomerados subnormais”, termo usado para definir áreas ocupadas irregularmente com carência de serviços públicos e de urbanização, como favelas, palafitas, grotas e vilas. “Não é só a mudança climática que provoca enchentes e deslizamentos de terra. O problema tem mais a ver com a falta de planejamento territorial dos governos municipal e estadual, com a ocupação irregular de terras e com a especulação imobiliária legal e ilegal”, comenta Manuel Manrique, funcionário da ONU-Habitat, presente desde 1996 no Rio de Janeiro com escritório regional para a América Latina e o Caribe.

Por causa das leis e do planejamento não cumpridos, apesar de livre da ameaça das maiores forças da natureza, como terremotos, vulcões e furacões, o “país abençoado por Deus” está em terceiro lugar no ranking mundial de catástrofes letais em 2011, devido à morte de mais de 900 pessoas neste ano. Só perdeu para o Japão, que sofreu um terremoto seguido de tsunami, e para as Filipinas, atingidas pela tempestade tropical Wash.

Por sorte, em 2012 espera-se que o país saia das primeiras posições da lista amarga. A época de chuvas está chegando ao fim e, apesar de deixar 8 mil desabrigados e 25 mil desalojados, principalmente em Minas Gerais, causou menos mortes: 29 vítimas fatais – pelo menos até o fechamento desta edição da PLANETA. Choveu menos no verão de 2012, felizmente. Mas, se tivesse chovido mais, os impactos seriam elevadíssimos, dada a falta de ações preventivas.

Mapas climáticos sendo atualizados no Inpe, em Cachoeira Paulista (SP). À direita, os desabamentos em Nova Friburgo (RJ), em janeiro de 2011, que mataram centenas de pessoas. Sem prevenção, não adianta previsão.

 

De 2000 a 2010, só com inundações, o Brasil sofreu uma perda média de 120 vidas e de US$ 250 milhões por ano, calcula a seguradora Swiss Re. A empresa afirma que os prejuízos de 2011 foram de US$ 950 milhões, acima da média. Segundo as projeções, até 2030 essa conta deve alcançar US$ 4 bilhões. Para reduzir impactos, a Swiss Re sugere a aplicação de um planejamento urbano adequado, definição de códigos para a construção civil e drenagem e estabilização de encostas, além da transferência de risco em forma de seguros.

Basta cumprir as leis e o cenário já melhora. A seguradora calcula que, hoje 33,3 milhões de brasileiros vivem em áreas de risco, número que deve chegar a 42,5 milhões em 2030, levando em conta a taxa anual média de crescimento populacional de menos de 1%.

“No Brasil vive-se a cultura do desastre, na qual se corre atrás do prejuízo. Uma vez acabada a catástrofe, a preocupação das pessoas desaparece. Não há cultura da prevenção, só de previsão”, diz Tania Maria Sausen, geógrafa e coordenadora do programa Geodesastre-Sul do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Se previsão do tempo bastasse para resolver os problemas, o Brasil já teria a situação sob controle. Os sistemas de tecnologia evoluíram nos últimos 40 anos. O satélite que passava sobre o país a cada quatro dias foi substituído por 60 satélites que passam diariamente, às vezes mais de uma vez ao dia.

“No Brasil vive-se a cultura do desastre, na qual se corre atrás do prejuízo. Uma vez acabada a catástrofe, a preocupação das pessoas desaparece. Não há cultura da prevenção, só de previsão”, diz Tania Maria Sausen, geógrafa e coordenadora do programa Geodesastre-Sul do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Se previsão do tempo bastasse para resolver os problemas, o Brasil já teria a situação sob controle. Os sistemas de tecnologia evoluíram nos últimos 40 anos. O satélite que passava sobre o país a cada quatro dias foi substituído por 60 satélites que passam diariamente, às vezes mais de uma vez ao dia.

 

“As informações geradas, combinadas com redes de plataformas e supercomputadores, permitem estudar a circulação de ventos e massas em toda a América Latina, garantindo cinco dias de previsão com até 95% de probabilidade de acerto”, afirma Tania Maria. O Brasil dispõe de capacidade tecnológica e profissionais capacitados, mas falta vontade política de enfrentar o custo de fazer cumprir a lei. “Passamos dados e relatórios à administração das cidades e Estados, mas os governos não agem”, protesta. As prefeituras encaram os sistemas de monitoramento meteorológico como salvação para áreas de risco, quando eles deveriam ser vistos como o último artifício contra as tragédias.

Atenção da ONU

Uma possível mudança nesse cenário pode acontecer com a abertura do Centro de Excelência da Estratégia Internacional para Redução de Desastres das Nações Unidas (UNISDR, na sigla em inglês), no Rio de Janeiro, ainda em 2012. “A falta de estatísticas brasileiras é um grande problema para modelar e calcular riscos”, avalia Fabio Corrias, diretor da Swiss Re para o Brasil e Cone Sul. Nesse sentido, a UNISDR vai apoiar a implementação dos objetivos definidos pelo Protocolo de Hyogo – documento assinado em 2005, na província de Hyogo, Japão, por 168 países, que estabelece uma abordagem coordenada global para a redução de riscos de desastres.

Ricardo Mena, chefe da UNISDR para a América Latina e o Caribe, ressalta que o Centro vai apoiar o desenvolvimento de políticas públicas e processos de consulta para elevar o nível de conscientização da sociedade e dos agentes governamentais sobre a gestão de risco. “As medidas públicas para mitigação de riscos e desastres competem sobretudo aos prefeitos”, afirma. Entretanto, a administração municipal costuma estar pouco preparada e assessorada para defini-las. “O tema da segurança no Brasil também tem a ver com essa questão. A população precisa de lugares seguros para morar, com critérios básicos definidos e seguidos, onde se viva sem medo de que um dia a água leve tudo”, complementa Manrique, da ONU-Habitat.

Outra preocupação pertinente são as prováveis mudanças no Código Florestal Brasileiro, em discussão na Câmara dos Deputados, que diminuem a autoridade federal, repassando às prefeituras o papel de definir parâmetros ambientais para ocupação urbana e planos diretores. “O novo Código Florestal deveria estabelecer números nacionais mínimos para ocupação de encostas, de topos de montanhas e preservação de matas ciliares de rios para nortear as prefeituras”, afirma Carlos Nobre, secretário do Ministério da Ciência e Tecnologia. “Deixar a cargo dos municípios esse tipo de definição significa associar a gestão de riscos à maior ou menor capacidade das prefeituras.”

Em novembro de 2008, 70% da cidade de Itajaí (SC) ficou debaixo d’água.

 

Politicagem

Com frequência, a politicagem desvia os recursos de ações de prevenção de risco. Foi o que se viu com os prefeitos de Nova Friburgo, Petrópolis e Teresópolis, no Estado do Rio de Janeiro, afastados dos seus cargos, no fim do ano, por denúncias de uso irregular dos milhões de reais que deveriam ter sido aplicados para reconstrução das cidades afetadas por inundações e deslizamentos em 2011.

Tania Maria Sausen também argumenta que a população, por sua vez, não pode transferir toda a responsabilidade para os governos. “Ouço na tevê os afetados pelas tragédias repetirem: ‘Nunca pensei que isso podia acontecer comigo’. Ora, eles estão instalados em área de risco, de forma ilegal, e outros continuam desmatando e jogando lixo nas ruas e entupindo bueiros.” Segundo a geóloga, é preciso que as pessoas entendam que o combate às tragédias naturais deve ser combinado entre a sociedade civil e o poder público.

Os moradores do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, já entenderam e aprenderam a usar a internet como salva-vidas. Diante das intensas chuvas de 2008, um grupo de amigos contatou conhecidos, profissionais liberais e caminhoneiros do porto de Itajaí para evitar o pior. “Começamos ajudando a salvar o que podíamos, mas logo muitos tiveram de socorrer as próprias famílias”, lembra Raciel Gonçalves Jr., que criou na ocasião a rede social Arca de Noé (www.arcadenoe.ning.com) para divulgar ações e recrutar colaboradores nos dias seguintes à inundação que pôs 70% da cidade sob a água.

Depois disso, a rede foi expandida para o Facebook e o Twitter e, hoje, possui 2 mil membros de distintas classes sociais, que alimentam a comunidade com informações e procuram se proteger por meio dela. “Continuamos cuidando da rede, porque vivemos com medo. Desde 1984 não aconteciam tragédias como a de 2008. Em 2011, tivemos outro episódio parecido, mas já pudemos reagir com uma ação mais coordenada.” As soluções não costumam cair do céu. Enquanto os eventos climáticos forem apontados como únicos culpados pelas inundações e deslizamentos a que o Brasil assiste entorpecido, as tragédias só tendem a aumentar.