Por Caio Araujo

 

Quinta maior cidade do Ceará, Sobral tem pouco mais de 205 mil habitantes. Seu PIB anual, de R$ 4 bilhões (IBGE, 2015), está longe do de uma cidade rica. Mas Sobral é um fenômeno em educação. Ela recebeu pela primeira vez as notas mais altas do país – 9,1 (1ª a 5ª série) e 7,2 (6ª a 9ª série) – nas duas etapas do ensino fundamental, segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2017, divulgado no fim de 2018 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC). Estão em Sobral cinco dos 10 melhores colégios públicos do Brasil nesse nível de ensino.

Rita Alcina Moreira fornece uma pista que explica o sucesso. Ela vive na Sinhá Sabóia, bairro da periferia de Sobral onde coordena 60 professores na Escola Municipal Carlos Jereissati, a 9ª melhor escola pública do Brasil da 1ª a 5ª série, com nota 9,5 no Ideb de 2017. “Vejo o quanto a escola muda a vida das pessoas. Moro no mesmo bairro dos meus alunos. A realidade deles é a minha também. Quanto mais vulnerável é a região, mais importante é a educação pública ali”, diz.

SEGUNDO O IPEA, FOI GRAÇAS À MELHORIA
NO ENSINO PÚBLICO DE SOBRAL QUE HOUVE
UM AUMENTO DE 125% NA RENDA PER CAPITA
DO MUNICÍPIO EM DUAS DÉCADAS

Entre os 100 melhores colégios da 1ª à 5ª série do país, 82 estão no Nordeste e 34 deles em Sobral (88% da rede municipal), todos com nota superior a 8,0. Entre os 100 melhores da 6ª à 9ª, 65 estão no Nordeste, 24 dos quais em Sobral, com notas acima de 7,0.

A média nacional, que inclui as redes pública e privada, foi de 5,8 e 4,7, respectivamente, nessas etapas. O Ideb é medido a cada dois anos com base nos dados de aprovação do Censo Escolar e do desempenho na Prova Brasil e no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb),­ que inclui as três esferas de governo. O ensino fundamental tem melhorado consideravelmente no Brasil, sobretudo no primeiro ciclo. Segundo o Inep, dos 5.167 municípios avaliados em 2017, 3.612 (69,9%) atingiram a meta de desempenho na etapa.

Melhora sensível

Em Sobral, essa evolução foi muito acelerada. Em 2005, ano inicial do Ideb, as notas da cidade – 4,0 (anos iniciais) e 3,3 (anos finais) – eram próximas à média nacional: 3,8 e 3,5, respectivamente. Com a pontuação de 2017 (melhora de 127% e 124%, respectivamente), Sobral saltou do 1.366º posto para o topo do ranking da educação básica brasileira.

O orçamento educacional local em 2019 é de cerca de R$ 172 milhões, para 33,8 mil alunos. Palmas (TO), com população semelhante, está destinando à educação cerca de R$ 298 milhões este ano, e seus resultados são bem inferiores aos da cidade cearense.

O grande salto nessa área em Sobral foi o Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), sancionado em 2001. Ele definiu dois grandes objetivos para a educação local: alfabetizar crianças até os 7 anos de idade e torná-las proficientes em português e matemática ao término do ensino fundamental.

Como a maioria dos municípios brasileiros, Sobral ainda não zerou a fila de espera nas creches. Os 15 Centros de Educação Infantil (CEI) atendem metade das crianças de 0 a 3 anos. Essa é a etapa mais crítica para as prefeituras, mas a oferta atual em Sobral é o dobro da média nacional. Na pré-escola, todas as 9.656 crianças de 4 e 5 anos estão matriculadas.

Segundo um programa implantado em 2001 na cidade, as crianças de até 7 anos de idade devem estar alfabetizadas e mostrar-se proficientes em matemática e português (Fotos: Divulgação)

Sobral é a cidade que oferece as melhores chances de aprendizagem aos jovens no Brasil, segundo o Índice de Oportunidades da Educação Brasileira (Ioeb). Foi também a campeã na última Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), em 2016.

Os outros eixos centrais do Paic foram o fortalecimento da gestão escolar e a valorização do magistério. Os diretores escolares são nomeados por meio de seleção interna, baseada em análise curricular e provas de conhecimento específico. Todos os 59 diretores em Sobral construíram a carreira dentro da sala de aula.

Os professores recebem gratificações de R$ 50,00 a R$ 500,00 mensais. O prêmio pode ser cortado caso novas metas não sejam atingidas.

Em termos de gestão escolar, os colégios traçam suas metas e geram os próprios recursos, oriundos do Fundo para o Desenvolvimento e Autonomia da Escola (Fundae), uma dotação vinculada ao orçamento municipal.

Os conteúdos pedagógicos são acompanhados de metas bimestrais de aprendizagem. A Secretaria de Educação municipal define o currículo básico, distribui o material didático e acompanha o desenvolvimento de cada escola.

Evolução social

Educação melhor dinamiza a economia. O Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada (Ipea) atribui à melhoria no ensino público de Sobral o aumento em 125% na renda per capita do município em duas décadas. Ele passou de R$ 198,63, em 1991, para R$ 448,89, em 2010.

A proporção de famílias pobres, cuja renda por pessoa é inferior a R$ 140,00/mês (a preços de 2010 – corrigidos pela inflação, hoje seriam R$ 227,74), despencou nesse período de 65,68% para 25,20%, e as extremamente pobres (renda per capita inferior a R$ 113,00/mês, em valores atuais), de 35,83% para 8,90%.

O Índice de Gini, que mede o grau de desigualdade econômica de uma região, caiu no mesmo período de 0,59 para 0,47, segundo o IBGE. O indicador varia de zero a um, em que quanto mais próximo de zero, menor a desigualdade.

A melhoria na educação alavancou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade. Ele passou de 0,537, em 2000, para 0,714, em 2010. Entre 2000 e 2010, Sobral saltou do oitavo para o segundo lugar no estado, atrás de Fortaleza (0,754), e de 2.719º para 1.486º no ranking nacional.

Mas o Ideb é imperfeito. Como ele só avalia português e matemática, desconfia-se que as escolas privilegiem em excesso essas disciplinas ao longo do ensino fundamental e, sobretudo, na 5ª e na 9ª séries, as chamadas “séries foco”, porque nelas é aplicada a Prova Brasil, principal indicador do índice.

Sucesso contestado

Outro senão é a série de reportagens “Educação do Mal”, veiculada no YouTube, que questiona o sucesso educacional de Sobral. O jornalista Wellington Macedo, autor dos vídeos, acusa a Secretaria de Educação local de fraudar os resultados do Ideb e do Spaece (Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará), a avaliação censitária estadual.

Macedo diz que diretores e professores temporários coagem os melhores alunos a fazer esses exames no lugar de colegas de baixo desempenho. Alguns desses últimos ainda receberiam laudos atestando déficit cognitivo para, assim, não terem suas notas contabilizadas. Segundo o jornalista, o aplicador faz “vista grossa” para a cola e há casos em que os próprios professores orientam os alunos a trocar respostas por meio de sinais pré-combinados.

O aplicador da Prova Brasil, por se tratar de um exame nacional, deveria ser ligado a uma banca examinadora externa, contratada pelo Inep. Macedo diz, porém, que muitos deles são amigos e parentes dos diretores.

Aula preparatória para o Enem: as escolas dos quatro últimos anos do ensino fundamental na cidade também tiveram uma evolução notável (Foto: Divulgação)

Colégios municipais bem avaliados nas provas externas recebem gratificações estaduais e federais, via Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), daí o intuito de manter os resultados escolares elevados. Parte do bônus é repassada aos professores, mas só os da 5ª e 9ª séries são contemplados. Segundo o jornalista, os docentes das demais séries que teriam tentado denunciar a fraude foram acuados pelos diretores.

Um professor municipal afirma que viu alunos de séries adiantadas – alguns de colégios privados – substituírem os de baixo desempenho na 5ª série. Segundo ele, há uma divisão nas salas entre estudantes “adequados”, “médios” e “críticos”, e muitos desses últimos são dispensados no dia da aplicação das provas externas.

O esquema teria começado em 2013, numa das escolas bem ranqueadas no Ideb, e foi copiado em outros colégios locais. Só em 2018, por sugestão do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), a banca examinadora do Spaece, contratada pela Secretaria Estadual de Educação, passou a exigir foto dos alunos.

Laudos médicos

Há relatos sobre alunos encaminhados para consultas médicas por recomendação de diretores escolares sem o consentimento dos pais. Atendimentos em Sobral e Coreaú (na mesma região) resultaram em atestados que excluem a nota da criança do sistema de avaliação. Ela faz a prova, mas sua nota não é computada por conta do laudo.

O secretário de Educação de Sobral, Herbert Lima, nega todas essas acusações. Para ele, os vídeos desrespeitam o trabalho dos educadores da cidade, que “transformaram Sobral na maior referência em educação básica do Brasil”. Lima diz que a Secretaria nunca recebeu queixa formal de pais de alunos e, por isso, não abriu processo administrativo para apurar a fraude apontada por Macedo.

Lima alega que o autor do vídeo age por motivação política – o material foi divulgado durante a corrida eleitoral de 2018. Macedo foi filiado ao PSD, partido de oposição ao do atual prefeito, Ivo Gomes (PDT), irmão do ex-ministro Ciro Gomes. Para o secretário, as famílias dos alunos que aparecem na reportagem receberam “benefícios” da oposição política na cidade. Ainda segundo Lima, as provas externas são aplicadas por bancas contratadas pela Spaece e pelo Inep (Prova Brasil) e compete, portanto, ao governo estadual e ao Inep fiscalizarem a lisura dos exames. Nenhum deles identificou irregularidades.

Diretores de escolas do município ouvem apresentação do secretário de Educação da cidade: gestão
escolar fortalecida (Foto: Divulgação)

A própria Secretaria tem interesse no aperfeiçoamento da fiscalização nas provas, diz Lima. Ele acrescenta que os diretores escolares são aprovados em processos seletivos independentes, e não por indicação da secretaria.

A seleção desses profissionais, porém, é controversa. Ela decorre de um chamamento público não licitatório e os cargos preenchidos são comissionados, sem vínculo efetivo com a administração municipal. Os aprovados assinam um contrato temporário. A última seleção foi organizada pela Esfapege, a mesma organização social que oferece cursos de especialização aos professores municipais.

Ações multiplicadas

Outro dado que chama atenção sobre o caso são os processos movidos por 57 diretores escolares de Sobral contra Macedo por calúnia e difamação. Segundo o jornalista, as ações são uma retaliação do prefeito. Diretoras teriam assinado uma petição acreditando que seriam testemunhas, e não requerentes, nos processos. Macedo diz que vai processá-las.

Embora não tenha constatado irregularidades nos resultados de Sobral, o Inep encaminhou um ofício à Polícia Federal, que abriu inquérito para apurar o caso. Macedo afirma ter sofrido ameaças de morte e pediu à PF para ser incluído no programa de proteção a testemunhas.

EXISTEM REGISTROS DE CASOS EM QUE OUTROS ALUNOS
FIZERAM A PROVA SPAECE NO LUGAR DE COLEGAS
DE BAIXO RENDIMENTO E QUE HOUVE TROCA DE RESPOSTAS

O MPCE confirma que ao menos três alunos da rede municipal de Sobral fizeram a prova Spaece no lugar de colegas de baixo rendimento e que, durante o exame, os aplicadores não coibiram a escancarada troca de respostas. O órgão constatou ainda que, nas semanas que antecedem essa avaliação, português e matemática são as únicas disciplinas lecionadas. Mas o MPCE não identificou adulteração nos índices do Censo Escolar ou nas notas do Sistema de Gestão Escolar em Sobral.

O Ministério Público Federal (MPF) investiga o suposto esquema no âmbito da Prova Brasil, bem como a emissão dos laudos médicos. Até o momento, porém, não foram confirmadas irregularidades e ninguém foi denunciado.

A ONG Repórteres Sem Fronteiras e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) condenaram as ações contra Macedo. O governo estadual ingressou com um pedido na Justiça para retirar do ar o conteúdo dos vídeos, que foi indeferido.

Controvérsias à parte, é inegável que uma melhora concreta ocorreu na educação de Sobral. As escolas da cidade conquistaram 133 medalhas na 21ª Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica (OBA). Quatro delas foram premiadas na 14ª Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP). A cidade ajudou o Ceará a conquistar o maior número de medalhas (25) na 10ª Olimpíada Nacional de História do Brasil (ONHB) em 2018. Nessas competições, observa o secretário Lima, não pairam suspeitas de fraude. E as vitórias obtidas indicam que a transformação via educação veio para ficar.