Mais de 3 milhões de destroços de barcos, de diferentes épocas, estão submersos no fundo do mar. Centenas de grutas ornamentadas, de cidades e de monumentos soterrados ainda esperam ser descobertos. Proteger esse patrimônio frágil e precioso e tirar proveito dos conhecimentos adquiridos a partir de tais vestígios são tarefas hercúleas, mas um acontecimento no início do ano promete torná-las mais fáceis: a entrada em vigor da Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático da Unesco.

Adotada em 2001, a Convenção é o primeiro instrumento legal que visa à preservação dos sítios arqueológicos submersos. Seu objetivo não é regulamentar a propriedade do patrimônio ou modificar as zonas de soberania marítima, mas lutar contra os saqueadores de tesouros soterrados sob a água e estender a proteção – já reconhecida aos sítios em terra firme – ao patrimônio subaquático. Ao manifestar satisfação pela promulgação, o diretor-geral da Unesco, Koïchiro Matsuura, afirmou: “Daqui em diante, será possível não só preservar, do ponto de vista legal, a memória da humanidade submersa no fundo dos oceanos, lagos e rios, mas também desmantelar o tráfico ilícito, infelizmente bastante próspero, alimentado pelos saqueadores desses sítios.”

O leito marinho abriga incontáveis destroços resultantes da atividade humana, desde embarcações e seu conteúdo até vestígios de povoados cobertos pelas águas. Os eventuais tesouros contidos nesses sítios atraem cada vez mais empresas com fins comerciais.

Há muito tempo esse texto era aguardado pelos arqueólogos. “A Convenção de 2001 é uma dádiva do céu para a arqueologia subaquática”, diz Robert Grenier, arqueólogo submarino canadense. Esse novo instrumento deve permitir também que o público em geral se aproprie desse patrimônio mal conhecido e que, contrariamente a uma crença persistente, não se resume a alguns destroços submersos: nos fundos subaquáticos, estão depositados (em relação a determinados sítios, há milênios) tesouros insuspeitos. O fato de que a Atlântida seja, sem dúvida, um mito não impede que, no decorrer do tempo, sítios inteiros da Idade da Pedra, cavernas adornadas e espaços sacrificiais continuem revelando seus surpreendentes mistérios. No México, por exemplo, há os cenotes do Yucatán, poços naturais que conservam vestígios de sacrifícios entre os maias: o de Chichén Itzá contém 120 corpos de vítimas imoladas.

Sob as águas, a Idade da Pedra dinamarquesa

A arqueologia marítima tem trazido resultados expressivos para a história da Idade da Pedra na Dinamarca. Iniciadas nos anos 1970, essas escavações são favorecidas pelas condições peculiares do Mar Báltico e dos rios do país – uma superfície aquática recortada e bem protegida graças à fraqueza das ondas e correntes e à quase inexistência da maré. Essa geografia cria condições ideais de conservação para as ocupações humanas do Paleolítico, pois os materiais orgânicos, há muito desaparecidos dos sítios terrestres, foram preservados sob os sedimentos marinhos. As expedições têm permitido descerrar o dia a dia daquela região entre 6 mil e 9 mil anos. Cerca de 2 mil sítios paleolíticos submersos já foram catalogados, mas os especialistas acreditam que haja mais de 20 mil.

Os achados arqueológicos mostram que os dinamarqueses do Paleolítico eram em geral altos e bem nutridos. Sua alimentação vinha basicamente do mar, embora houvesse também grande diversidade na fauna terrestre. A pesca era bem desenvolvida e exemplares de grande porte, como atum e esturjão, já eram capturados naquela época.

Os sítios são testemunhas das mudanças climáticas ocorridas no norte da Europa desde o fim da era glacial, há 20 mil anos, passando pela elevação do nível do mar e pela ligação do Báltico com o Mar do Norte, há 9 mil anos. As ocupações humanas, em geral litorâneas, foram submersas nessa época. Agora, porém, novas alterações do clima, como mudanças na orientação dos ventos e o aumento no número de tempestades, ameaçam esse patrimônio cultural.

atraídos pelo lucro, aventureiros e empresas comerciais tendem a passar das escavações terrestres para a arqueologia subaquática. interessamlhes os valores transportados em caravelas e outras embarcações

Ao empenhar-se na proteção dessa frágil herança, a Convenção da Unesco percorre um terreno minado: com efeito, enquanto o patrimônio terrestre se beneficiou de uma proteção cada vez mais sofisticada, o saque do patrimônio subaquático desenvolveu-se em proporções alarmantes. Além disso, no plano nacional, a legislação ainda tem muitas lacunas nesse setor. Atraídos pela ganância do lucro, os aventureiros e as empresas comerciais tendem a abandonar as escavações terrestres em favor da arqueologia dos fundos subaquáticos; vem daí seu interesse pelo grande valor dos carregamentos das caravelas e outras embarcações, as mais genuínas representantes da frota portuguesa que fazia a rota das Índias, no século 17. A exploração comercial de tais destroços ao largo de Moçambique, por exemplo, ameaça a preservação dos últimos testemunhos históricos sobre sua formação – a maior parte dos documentos dessa época foi destruída em 1755, por ocasião do terremoto de Lisboa.

Os restos de um barco viking, como o da foto à esquerda, pertencente ao acervo de um museu em Roskilde (Dinamarca), contêm informações valiosas para os historiadores. Hoje em dia, porém, os pesquisadores conseguem extrair dados relevantes até mesmo de itens antes considerados sem importância, como talheres ou navios do século passado.

Diante da resistência manifestada pelos arqueólogos e da desconfiança dos governos, cuja autorização é necessária para as prospecções, as empresas privadas de busca de destroços não cessam de enfatizar o interesse científico de suas pesquisas. No entanto, é praticamente impossível que alguém possa fazer arqueologia se sua motivação é o lucro, na medida em que tem de prestar contas a acionistas e não a um público culto. Tal situação foi perfeitamente denunciada por Francisco Alves, renomado arqueólogo português: “A arqueologia assemelha-se, frequentemente, ao trabalho de detetive. Mas o que pensar de um detetive que vende o relógio da vítima para financiar suas investigações?”

Para enfrentar destruições e saques, a Convenção da Unesco incluiu, em seu anexo, uma série de regras relativas às expedições arqueológicas destinadas a servir de referência aos Estados; ao impor normas éticas de proteção, tais orientações deveriam levar à erradicação de qualquer operação puramente comercial.

turistas inconscientes em busca de suvenires, o desenvolvimento de portos e oleodutos, a prospecção de jazidas minerais e a pesca com rede de arrasto também ameaçam os vestígios submersos

Outro objetivo da Convenção consiste em garantir a proteção legal e o monitoramento da proteção dos sítios, o que constitui sua vertente mais delicada. Nas águas internacionais, os Estados têm apenas, salvo em determinadas circunstâncias, uma jurisdição restrita que, muitas vezes, se limita à aplicação da regulamentação nacional aos próprios cidadãos e aos navios que portam sua bandeira. Sempre que uma empresa comercial de determinado país fixa sua escolha em um bem considerado precioso por outro, a cooperação internacional torna-se crucial para garantir sua proteção; vem daí a importância da Convenção, que visa regulamentar e aprimorar as condições dessa ajuda.

Além das escavações com finalidade comercial, existem outros perigos que ameaçam os vestígios conservados pelos fundos subaquáticos: os turistas inconscientes à procura de suvenires; o desenvolvimento de portos e oleodutos; a prospecção de jazidas minerais; e a pesca com rede de arrasto.

História do cotidiano à mostra

Em Forton Lake, braço de mar na frente de Portsmouth (importante cidade portuária inglesa), embarcações naufragadas estão longe de ser raridade. Ali estava o Mary Rose, navio preferido do rei Henrique VIII, afundado em 1545; seus restos, encontrados no fim dos anos 1960, foram levados para um museu em Portsmouth, em 1982, e são visitados anualmente por 600 mil pessoas. O passado dos 27 barcos atualmente naufragados na área é bem mais modesto, mas ainda assim importante: a partir deles podem-se resgatar partes da história da região e do país. Três deles são visíveis quando a maré baixa: Vadne, barcaça da linha Gosport-Portsmouth, dos anos 1950; M293, draga de minas de 1939/1945; e uma balsa da ilha de Wight, afundada por desgaste de serviço.

Uma ação conjunta de especialistas e voluntários tornou-os alvos de um projeto arqueológico trienal concluído em 2008. “Não há nada de revolucionário em tais descobertas”, diz Mark Beattie- Edwards, diretor do programa na Sociedade de Arqueologia Náutica (NAS), “e nenhuma merece ser preservada ou restaurada como seria o caso de um monumento tombado. Pelo contrário, elas mostram que o patrimônio cultural pode estar bem perto de nós. Se, para algumas pessoas, tais objetos são vistos como lixo, para outras, eles têm interesse histórico”.

 

Apesar disso, por vezes surgem soluções satisfatórias. A empresa Nord Stream AG, construtora de um gasoduto no Mar Báltico, recentemente teve de abrir caminho através de uma antiga barreira de destroços de embarcações suecas conservada na baía de Greifswald, no norte da Alemanha. Esse acervo data da Grande Guerra do Norte, em 1715, quando a Marinha sueca afundou 20 embarcações, cada qual com cerca de 15 metros de comprimento, a fim de proteger a baía. A Nord Stream, no entanto, assumiu o custo da pesquisa e preservação arqueológicas, mostrando assim que é possível encontrar um equilíbrio entre a necessidade de salvaguardar o passado e as urgências do presente. A Convenção da Unesco tem o mérito de convidar seus Estados-partes a encontrar soluções que limitem as degradações do patrimônio subaquático.

Ainda falta abordar as ameaças da natureza que são inevitáveis: erosão, marés, ciclones, tsunamis… A Convenção de 2001 convida os governos a tomar providências para evitar ou atenuar os estragos – por exemplo, erguendo barreiras, construindo caixas de proteção ou cobrindo os sítios ameaçados com areia.

Vários estudos relativos aos efeitos da mudança climática sobre o patrimônio cultural têm sido promovidos pela Unesco e pela União Europeia. No âmbito da Convenção, e em colaboração com a Sovrintendenza del Mare, na Sicília (Itália), foi lançado este ano um projeto para analisar a possibilidade de prevenir a destruição dos sítios litorâneos e submarinos pelos sismos. Se a tarefa é imensa, a Convenção tem todo um futuro à sua frente.

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