Para quem vê de fora, é difícil entender por que os militares birmaneses tomaram o poder, já que tinham ascendência sobre o governo civil. A explicação é menos lógica, remontando a anos de desconfiança mútua.Na madrugada desta segunda-feira (01/02), as Forças Armadas de Mianmar assumiram sozinhas o poder até então dividido com a conselheira de Estado Aung San Suu Kyi e sua Liga Nacional pela Democracia (NLD). A legenda informa que diversos membros da liderança partidária foram detidos, e a chefe de governo e o presidente Win Myint estão sob prisão domiciliar.

Tim Schröder, da firma internacional de consultoria Covenant Consult, descreve a situação na cidade de Yangon como de “calma tensa”: “Na segunda-feira havia filas enormes diante das lojas e engarrafamentos por toda parte, mas nenhum sinal de polícia. Também os nossos funcionários relatam que há poucos militares nas ruas.”

Foi bem diferente em 2007, durante os protestos dos monges budistas conhecidos como “Revolução Açafrão”, recorda Schröder, falando à DW: na época havia caminhões com soldados por toda parte. Agora a cólera de muitos birmaneses, sobretudo dos mais jovens, se descarrega de preferência nas redes sociais, onde paralelamente ocorre uma avalanche de teorias de conspiração, e “não se sabe mais o que é real ou não”.

Isso se aplica também à suposta conclamação de Aung San Suu Kyi a protestos e resistência, numa conta da NLD no Facebook, sobre a qual o jornal Irrawaddy também noticiou detalhadamente. Contudo, segundo o cientista político polonês e especialista em Mianmar Michał Lubina, da Universidade Jagiellonen, em Cracóvia, “a conclamação contradiz tudo por que Aung San Suu Kyi luta há anos”.

Para Forças Armadas, “dever indiscutível”

Numerosos peritos e observadores, mas também a maioria da população birmanesa, se surpreenderam com a iniciativa dos militares. Poucas horas antes, eles havia declarado que, ao advertir sobre um possível golpe, as embaixadas estrangeiras estavam equivocadas e “não entenderam corretamente o contexto”.

Do ponto de vista dos militares, a medida é legal. Em seus artigos 417 e 418, a Constituição aprovada por eles em 2008 permite ao presidente declarar estado de emergência por um ano, após consultar-se com o Conselho Nacional de Defesa e Segurança, caso a unidade, a solidariedade ou a soberania nacionais estejam ameaçadas.

Não está claro, entretanto, se quem impôs o estado de emergência foi o presidente Win Myint, nomeado pela NLD, ou seu vice, Myint Swe, empossado pelos militares. Estes justificam a medida com o fato de a Comissão Eleitoral convocada pelo governo civil não ter investigado as suspeitas, manifestadas também por alguns partidos de oposição, de fraude nas eleições de 8 de novembro de 2020, vencidas pela NLD com 83% dos votos.

As Forças Armadas questionam principalmente as listas eleitorais, alegando a existência de pelo menos 8 milhões de votos irregulares. O golpe foi dado no dia em que o governo pretendia reunir o novo parlamento, apesar das acusações de manipulações eleitorais.

Num comunicado do Gabinete Presidencial, assinado pelo vice-presidente Myint Swe, a tomada de poder é justificada assim: “Como o governo e a Comissão Eleitoral não foram capazes de tratar do problema, é dever indiscutível do Tatmacaw [Exército] invocar o Artigo 417 da Constituição e declarar o estado de emergência.”

Má comunicação e orgulho ferido

O cientista político Lubina considera improcedente a acusação de irregularidades no pleito legislativo: “Acho que não houve muita fraude ou imprecisões nas eleições. No geral, elas foram livres e justas.”

O especialista Hans-Bernd Zöllner, que está elaborando uma análise sobre a eleição em Mianmar, explica: “A questão para os militares não foi tanto questionar a vitória da NLD nas urnas, mas sim o partido não ter investigado cuidadosamente as irregularidades.” Isso não corresponderia aos parâmetros de uma “democracia disciplinada”, como os generais denominam o sistema político criado por eles em 2008.

Assim, o golpe se atribui, por um lado, à má comunicação: devido a anos de desconfiança entre a NLD e as Forças Armadas, só existem poucos canais comunicativos entre as duas facções políticas decisivas no país.

Quando em 2015 os militares e seu Partido da União, Solidariedade e Desenvolvimento (USDP) tiveram que engolir uma pesada derrota, Aung San Suu Kyi ainda tentou o diálogo com o então presidente, o ex-general Thein Sein, e com o comandante em chefe das Forças Armadas, Min Aung Hlaing.

Agora, contudo, em vez de aceder aos militares, a NLD ignorou inteiramente suas críticas ao processo eleitoral. Isso pode ter ferido o orgulho daqueles que se entendem como guardiães do sistema político que criaram. “Desde a independência, os militares enfatizam sua integridade como protetores do povo e da nação. O desprezo a suas queixas foi um tapa na cara”, diz Zöllner.

Orgulho ferido, a nova derrota de seu USDP e a falta de canais de comunicação acabaram redundando no golpe militar, deduz Lubina. A NLD poderia ter agido com maior perspicácia, mas do modo como correu a situação, os generais não viram outra opção para preservar sua reputação e influência, senão tomar o Executivo. Agora anunciam que vão se encarregar da investigação das acusações de irregularidades eleitorais e providenciar um novo pleito.

Descaso pelo Ocidente, chance para a China

Visto de fora, contudo, é difícil compreender o passo dado pelas Forças Armadas birmanesas. Pois com a Constituição de 2008 elas criaram um sistema que basicamente lhes assegura o controle sobre a política nacional.

“Na verdade, bastaria eles esperarem a NLD perder sua popularidade, em decorrência da covid-19 e da economia em crise. Seu sistema lhes garante todas as possibilidades econômicas e políticas, sem terem que assumir responsabilidade”, analisa o especialista Michał Lubina.

Com o golpe, pelo contrário, os generais fortaleceram a reputação de Aung San Suu Kyi no país. Pois, o que quer que aconteça nos próximos anos, a população sempre dirá que, se os militares não tivessem tomado o poder, tudo estaria ótimo. Além disso, o golpe comprometerá as relações internacionais de Mianmar, como já prenunciam as reações da Europa e as ameaças de sanções dos Estados Unidos.

No entanto, “os militares não têm medo nem dos europeus, nem dos americanos”, ressalva Zöllner: as relações internacionais já eram mesmo deploráveis, desde a expulsão da minoria muçulmana rohingya; e por décadas a fio as Forças Armadas têm vivido bem com as sanções da Europa e dos EUA. Mais importante agora é como se posicionarão a Índia e o Japão. Sobretudo este último, que nos últimos anos tem investido fortemente em Mianmar.

Até agora, a China, a poderosa vizinha ao norte, tem se contido em avaliar as ocorrências em Mianmar. A agência estatal de notícias Xinhua descreveu o golpe como “grande reestruturação de gabinete”. Ainda três semanas atrás, o chefe das Forças Armadas birmanesas, Min Aung, recebeu o ministro chinês do Exterior, Wang Yi, para conversas de consolidação da “relação fraternal” entre os dois Estados.

Michał Lubina está seguro que Pequim protegerá Mianmar no Conselho de Segurança da ONU: “Tudo o que a China precisa fazer agora é esperar, enquanto a situação em Mianmar piora devido à pressão internacional crescente. Quanto maior a pressão, mais Mianmar terá que se curvar diante da potência protetora.”