O desmatamento no sudeste do Acre já revelou 270 geoglifos indígenas. O tamanho dos aterros sugere que as antigas sociedades amazônicas eram mais numerosas do que se supunha.

Equipes multidisciplinares do Brasil, dos Estados Unidos, da Finlândia e do Reino Unido estão pesquisando na Amazônia o passado dos povos que habitaram a região muito antes da formação da maior floresta do planeta. Baseados em imagens aéreas, os cientistas estudam centenas de geoglifos – imensas figuras circulares, quadradas, retangulares, octogonais ou com outras formas geométricas desenhadas no solo do Acre, de Rondônia, do sul do Amazonas e do norte da Bolívia. A análise dessas colossais estruturas de terra sugere que uma civilização maior e mais desenvolvida do que se supunha já vivia na região antes do Descobrimento do Brasil.

A versão histórica predominante é de que a Amazônia era povoada por pequenas tribos de índios, que viviam em terra firme, em locais distantes dos rios. No entanto, as fotografias aéreas e as imagens de satélite desmistificam essa teoria, pois mostram que os geoglifos foram erguidos tanto em solo firme quanto em terrenos próximos aos rios. A descoberta também coloca em xeque a teoria de que os povos amazônicos viviam em sociedades simples, que nada produziam de perene além de cerâmicas.

O questionamento sobre as “limitações materiais” das culturas amazônicas começou na década de 1990, quando o geógrafo e paleontólogo Alceu Ranzi, ao sobrevoar a região, viu várias dessas estruturas. Ao constatar que estava diante de um fenômeno regional e as vastas construções eram artificiais, batizou-as com o nome de geoglifos, cujo significado quer dizer desenho na terra. Hoje, sabe-se que os geoglifos amazônicos foram erguidos a partir da escavação de um fosso. A terra escavada ia sendo colocada cuidadosamente na parte externa e formava uma mureta. Desse modo, criava-se um desenho geométrico, em alto e baixo relevo.

Trata-se de uma construção engenhosa. Os aterros geométricos desenhados na terra têm de 113 a 200 metros de largura e de 30 centímetros a 5 metros de profundidade. Em 1977, foram vistos pela primeira vez no Acre, quando o arqueólogo Ondemar Dias fez um levantamento deles no âmbito do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas na Bacia Amazônica, do qual participaram Ranzi e o arqueólogo Franklin Levy.

Na ocasião, a equipe identificou 8 geoglifos circulares, mas a pesquisa não foi divulgada. Entre 1986 e 1999, Ranzi identificou 24 novas estruturas. A descoberta só foi possível devido ao desmatamento da região nos últimos 40 anos. Até a década de 1970 os grandes projetos agropecuários não haviam invadido a Amazônia Ocidental, a floresta estava intacta e os geoglifos permaneciam escondidos pela copa de árvores, o que impossibilitava a observação.

Em 2000, as pesquisas se intensificaram, assim como os sobrevoos para a obtenção de fotos aéreas visando ao registro. Imagens de satélite e do Google Earth permitiram a localização de novos geoglifos sem a necessidade de usar aviões. Hoje, graças às novas tecnologias, já foram identificadas 270 construções. Contudo, os pesquisadores afirmam que, em razão da dificuldade de se observar a Amazônia via satélite, os geoglifos encontrados podem ser apenas 10% do total existente na região.

Rituais religiosos

Os pesquisadores ainda não sabem qual a finalidade dessas imensas obras dos antigos povos amazônicos. Alguns acreditam que tinham um significado simbólico ou religioso. Outros acham que a remoção da vegetação que realizaram pode ter tido algum tipo de função militar. De qualquer modo, descobrir quais foram as culturas amazônicas responsáveis pela construção dos geoglifos faz parte dos objetivos dos projetos multidisciplinares em andamento.

Outra incógnita é a grandiosidade das estruturas do Acre. Para Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida (EUA), os geoglifos tinham finalidades cerimoniais. Uma das razões de sua monumentalidade seria a comunicação com seres superiores. “Não temos inferências para afirmar que os geoglifos estavam alinhados ou direcionados para algum corpo celeste”, diz Denise Pahl Schaan, pesquisadora do CNPq e coordenadora do grupo de pesquisa Geoglifos da Amazônia Ocidental.

“As imensas valetas serviam para circundar um espaço aberto interno que era usado para encontros, rituais religiosos e moradia em alguns casos”, prossegue Denise. Segundo ela, os construtores dos geoglifos constituíram as primeiras sociedades sedentárias do Acre. Eles habitaram a região há mais de 2.000 anos e, possivelmente, foram povos agricultores.

Os maiores inimigos dos geoglifos são as plantações de cana, o pisoteio do gado, as máquinas agrícolas, os assentamentos de terra e as estradas.

Co-organizadora do livro Geoglifos – Paisagens da Amazônia Ocidental, Denise lembra que, em 1887, o então governador de Manaus (AM) ordenou ao coronel Antonio Labre subir o Rio Madeira e encontrar uma rota por terra em meio aos entrepostos de produção de borracha no Rio Madre de Diós e algum ponto navegável do Rio Acre. Ao seguir por terra até o Rio Acre, Labre passou por várias vilas da etnia araona (da família linguística tacana).

Na fronteira do Estado, o militar encontrou uma vila povoada por umas 200 pessoas e ficou impressionado com a sua organização social. Ali aprendeu que aqueles povos adoravam deuses de formato geométrico, esculpidos em madeira. As efígies eram mantidas em templos no meio da floresta. O pai dos deuses tinha forma elíptica e chamava-se Epymará. “Labre não descreveu os templos, mas tudo nos leva a cogitar sobre as possíveis funções religiosas dos geoglifos, encontrados não muito longe das antigas aldeias araonas”, comenta Denise.

Savana

A ocorrência de geoglifos no Acre também é um forte indicativo de ausência da floresta. Posteriormente, a mata ocupou e recobriu a paisagem cultural dos povos construtores dos aterros. Denise diz que é provável que na região existissem áreas abertas, de savana, mas os cientistas ainda não têm certeza. Por isso, coletaram amostras para realizar análises que deverão esclarecer o assunto. O material está sendo analisado no Reino Unido, na Universidade de Exeter.

Para realizar as pesquisas, os cientistas recorrem ao sensoriamento remoto, técnica que utiliza imagens de satélites, fotografias aéreas e sobrevoos com pequenos aviões, além de um georradar da Universidade Federal do Pará. “A disponibilidade de imagens de satélite tem sido fundamental para os nossos estudos, assim como softwares para cruzamento de dados culturais e geográficos, como o ArcGis. Além das imagens gratuitas do Google Earth, o governo do Acre nos fornece imagens do satélite Formosat”, afirma Denise.

Os cientistas também visitam os sítios identificados para tirar medidas, fazer coletas e registros. O estudo contribui para novas interpretações sobre como os antigos amazônidas viviam e como era a sua organização sociopolítica. “Esse conhecimento é fundamental para subsidiar programas de preservação do patrimônio arqueológico da região”, explica Denise.

Apesar de sua relevância, os geoglifos estão ameaçados. Seus maiores inimigos são as plantações de cana, o pisoteio do gado, as máquinas agrícolas, os assentamentos de terra e as estradas, que já danificaram muitos deles.

Texto: fabiola@planetanaweb.com.br

Para saber mais

Geoglifos – Paisagens da Amazônia Ocidental, organizadores Denise Pahl Schaan, Alceu Ranzi e Antonia Damasceno Barbosa, 100 págs., R$ 50. Exemplares podem ser adquiridos pelo e-mail: ppgacampos@ufpa.br.