A passagem do mundo analógico para o digital criou um abismo inédito entre a forma de pensar das gerações. A “geração do milênio” não é responsável por tudo o que é ruim, alerta a autora do livro The Millenial Mind

Individualistas, hiperconectados, desfocados, preguiçosos e perturbadores do sistema. Essas são as características mais repetidas para definir a “geração Y” ou “geração do milênio” – pessoas nascidas entre 1980 e meados de 1990. Mas a brasileira Paula Limena Cury não concorda com nada disso. Usando da sua formação em psicanálise e marketing, a especialista em projetos de branding, inovação e estratégia desconstrói esses rótulos em seu livro The Millennial Mind (“A Mente Millennial”, em tradução livre), lançado em março pela XLibris nos Estados Unidos, onde Paula mora atualmente, e ainda sem data prevista para a versão em português. A autora chama à responsabilidade todas as gerações que convivem atualmente no planeta, principalmente as gerações anteriores, que parecem não entender seu papel na nova dinâmica do mundo digital.

PLANETA – Quem se enquadra na “mente millennial” – baby boomers (pós-Segunda Guerra Mundial), geração X (anos 60 e 70), Y (80 e metade de 90), Z (parte de 90 e 2000) e alfa (após 2010)?
PAULA – A mente millennial é mais importante que o grupo geracional na forma como sempre fizemos, estabelecendo grupos por idade ou determinada época. Mas aglutina mais as gerações Y e Z. O que marca quem são os millennials é como se passou pelo bug do milênio, ou seja, como se passou do analógico para o digital. Foi quando a internet passou de um meio para um fim. Os que lidam até hoje com uma certa resistência frente ao pensamento digital não são millennials. A grande limitação de um grupo analógico é achar que a verdade é o que está escrito num livro e ponto. Se não se tem essa resistência, já se tem uma mente millennial. Os millennials podem encontrar informações em diferentes lugares e, dentro de um caleidoscópio de ideias, fazer um filtro e construir um pensamento. Ter milhões de informações conflitantes não dói em quem tem a mente millennial. E há mais: a mente pode ser muito anterior ao bug do milênio. Para mim, Walt Disney é uma das maiores mentes millennial.

As “esculturas do ângulo mágico” de John Muntean são uma metáfora do livro de Paula: a diferença entre o pensamento analógico e o digital. Peças sólidas de madeira – analogia ao analógico – só oferecem informação quando recebem luz, formando três ou quatro imagens diferentes. “A luz, para mim, é a ideia, é a capacidade de produzir conhecimento da mente digital”, diz Paula (Fotos: Divulgação)

PLANETA – Uma das maiores críticas em relação aos millennials é a falta de empatia deles. O que dizer a respeito disso?
PAULA – Quando você conversa com jovens de 15 a 30 anos, vê que a capacidade de sensibilização em relação ao outro é muito maior do que na minha geração, a X. Pesquisei a enorme quantidade de novas ONGs e crowdfundings para ajudar pessoas e apoiar causas por meio das redes sociais. Isso não existia antes, a gente não tinha esse meio. A pesquisa que me fez escrever o livro foi justamente fazer um comparativo: este é um momento tão ou mais frutífero que o Iluminismo, no qual certos intelectuais e pensadores conseguiram de alguma forma construir um novo pensamento, uma nova perspectiva. Mas as maneiras de divulgar isso na época eram muito limitadas. Agora, qualquer um pode falar o que quer na hora em que quer. Essa é uma geração que quer desconstruir. Esse é o código cultural dos millennials. Eles querem destruir todo e qualquer conceito construído até então por gerações e gerações que pensaram de uma forma só. Isso em relação tanto a processos ligados a educação e hierarquia de trabalho quanto a questões que normatizam a vida em sociedade.

PLANETA – Mas eles estão construindo alguma coisa ou são destrutivos em série?
PAULA – Temos uma visão muito maniqueísta de mundo. Construir é bom e destruir é ruim. Parece que destruir é uma coisa negativa, é tirar alguma coisa e deixar um vazio no meio. Mas, se pararmos para pensar, destruir significa preparar para uma reconstrução, de alguma forma. É uma nova perspectiva.

PLANETA – Qual é a característica mais forte dos millennials que encontrou na sua pesquisa?
PAULA – A visão crítica do millennial é uma das coisas mais legais desse grupo. Isso é maravilhoso, porque por muito tempo as gerações foram educadas a não criticar o sistema. O que a minha geração X aprendeu foi: “Concorde ou não, faça o que seu chefe quiser, porque você quer ter uma carreira, certo?” A gente aprendeu tanto a se frustrar que se frustra e não fala nada. Mas se você trabalha com um millennial e ele não o critica, é porque ele está ignorando você, e isso nunca é bom. É porque está pensando: “Não tem nem o que mudar na cabeça dessa pessoa. Não dá nem para conversar”. O que eles mais pedem no ambiente de trabalho é uma liderança. Não um chefe limando suas iniciativas e ideias por medo de perder seu valor dentro da empresa. Os millennials são confrontadores, questionam porque trazem naturalmente a questão dentro de si, mas não sabem bem como questionar. É responsabilidade da minha geração – a geração X –, como grupo geracional, como pais, como liderança em ambiente de trabalho e dentro das escolas, moldar no millennial como fazer isso de forma respeitosa, como analisar, como construir evidências e construir um pensamento.

Uma das ilustrações de Cláudia Liz produzidas especialmente para o livro de Paula,The Millennial Mind (Fotos: Divulgação)

PLANETA – As gerações anteriores têm muita dificuldade de dialogar com os millennials e reclamam muito da falta de foco desses jovens.
PAULA – Mais uma vez, isso não é uma questão dos millennials. Os pais reclamam: “Ele não consegue se focar numa coisa só”. O cara está acostumado a assistir à TV, jogar o joguinho e falar ao telefone, e faz tudo isso bem. Clinicando como psicanalista, vi que em mais da metade das vezes isso é uma questão de protocolo de comunicação. Quem tem o transtorno somos nós, que não conseguimos fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Os pais não conseguem entender, aceitar e acompanhar o ritmo dos filhos. E querem o dispositivo mágico para resolver isso: um remédio. O millennial acaba tendo de tomar Ritalina para acalmar, para manter o foco no “A maiúsculo, a minúsculo” que a professora explica como há 100 anos. E nós – os pais – não os preparamos para as frustrações da vida. No que isso resulta? Num adulto frustrado, sem poder se frustrar, porque senão é um “perdedor”, e que não consegue se entender como uma pessoa dentro da normalidade porque tomou remédio a vida inteira. Será que eles não são só uma geração e somos nós que instauramos uma dinâmica de relacionamento em que eles sempre têm de ser diferentes e problemáticos, adolescentes sem causa?

PLANETA – Você se considera uma defensora dos millennials?
PAULA – Não é que eu defenda os millennials. Quando comecei a pesquisar a mente desses jovens, percebi que a maior parte dos textos sobre eles foi escrita por não millennials. Muito do que entendemos como verdade são pesquisas – ou seja, a incidência de algo dentro de um dado período. Mas os indicadores de pesquisa foram criados por quem? Pelos boomers ou gerações anteriores. Por exemplo, uma pesquisa quis medir até que ponto o millennial é patriota. Patriotismo é algo definido há muitos séculos. Hoje se fala de cidadania planetária, de um mundo sem barreiras. Muda o significado e o simbólico disso. E isso não é questionado no indicador.

PLANETA – Mas não foi sempre assim? As gerações novas são analisadas pelas anteriores.
PAULA – Sim, a lente sempre é das gerações anteriores. Mas nesse meio-tempo houve uma ruptura enorme na percepção de tempo e espaço. Acho injusto atribuir aos millennials a responsabilidade por tudo o que é ruim, assim como o futuro ou fracasso de um modelo social. Nossa responsabilidade é moldar o senso crítico deles. A responsabilidade de construir algo que de fato mova a sociedade rumo a uma evolução cultural e histórica não é de uma, mas de todas as gerações que estão simultaneamente neste planeta. E há outra questão: vamos viver cada vez mais, e seremos mais grupos geracionais ao mesmo tempo no planeta. Longevidade não quer dizer só custos para o governo. São dez anos a mais na vida de uma pessoa e ela não vai aprender mais nada? Só vai criar embates? É uma questão ética: por que manter uma perspectiva de rotular grupos geracionais, se a ideia é fazer convergir o pensamento?