Nada como uma revolução tecnológica para virar o mundo de cabeça para baixo e obrigar cientistas e governos a revisar os conceitos e as previsões. Quem diria que os Estados Unidos, o maior consumidor de energia do mundo, poderiam se tornar autossuficientes em 2035? Pois esse foi o prognóstico da Agência Internacional de Energia (IEA, em inglês) no seu relatório de 2012, o World Energy Outlook, ao analisar as transformações por que o país vem passando desde que uma rocha – o xisto – e um polêmico meio de extrair petróleo e gás – o fraturamento hidráulico, mais conhecido como fracking – ganharam peso na produção energética americana.

A extração do gás contribui para a recuperação econômica dos EUA, mas abre perspectivas sinistras ao meio ambiente, alarmando os ecologistas. Para eles, o “x” da equação do xisto é uma incógnita perigosa, sobretudo pelas emissões de gás carbônico, 20% superiores à da queima do poluente carvão. O primeiro leilão para exploração do gás no Brasil está marcado para novembro.

Os norte-americanos possuem enormes reservas do mineral, mas até 2006 os métodos disponíveis para extrair combustível da rocha eram muito caros. Naquele ano, porém, empresas de petróleo e gás começaram a usar o fracking. O resultado não tardou: já existem mais de 20 mil poços em operação no país, e o gás natural, que até 2000 representava 1% da produção de energia no país, saltou para 30% em 2010 e poderá chegar a 50% em 2035.

Embora especialistas afirmem que o tempo de produção de cada poço não supere 15 ou 20 anos, a dimensão das reservas americanas de xisto garante longevidade ao setor. “Os suprimentos de gás natural agora economicamente recuperáveis do xisto nos EUA poderiam acomodar a demanda doméstica do país por gás natural nos níveis atuais de consumo por mais de 100 anos”, anunciam os pesquisadores Michael McElroy e Xi Lu, da Universidade Harvard, no artigo “Fracking’s Future”, publicado na edição de fevereiro de 2013 da Harvard Magazine.

 

Preços baixos

Embora favorável à energia renovável, o governo do presidente Barack Obama apóia a produção do gás de xisto, mesmo com a controvérsia ambiental que cerca a questão. Por três motivos. Em primeiro lugar, o gás natural é o menos poluente dos combustíveis fósseis, uma vantagem para um país que usa carvão e petróleo para gerar energia. A Agência Ambiental Americana (EPA, na sigla em inglês) credita a melhora geral da poluição atmosférica no país nos últimos anos ao aumento no uso do gás de xisto.

Em segundo lugar, há vantagens econômicas indiscutíveis. O gás de xisto fez o preço do insumo cair nos EUA de US$12 para US$3 por milhão de BTU (sigla para british termal unit, “unidade térmica britânica”, medida para gás). Para comparar, o preço do gás convencional no Brasil custa entre US$ 12 e US$ 16 por milhão de BTU. A queda de preços faz os EUA importarem menos petróleo, explica o físico José Goldemberg, “uma vez que o gás vem substituindo derivados do petróleo tanto na indústria quanto no transporte”. Os americanos passaram até a exportar gás de xisto.

A terceira razão é geopolítica: a autossuficiência energética livraria os EUA da dependência de fornecedores problemáticos e/ou potencialmente hostis, como os países árabes e a Venezuela. Como efeito colateral, a saída do mercado do megacomprador norte-americano baixaria os preços do petróleo e até poderia inviabilizar alguns projetos de produção, salienta Goldemberg. “Até a exploração do pré-sal no Brasil poderia ser afetada pela queda dos preços produzida pelo gás do xisto”, adverte o físico.

Na avaliação da IEA, o Brasil é o décimo colocado em reservas de gás de xisto recuperáveis, com 6,3 trilhões de metros cúbicos de jazidas, volumosas no Centro-Sul. Para a diretora-geral da ANP, Magda Chambriard, porém, as reservas em terra podem superar as do pré-sal e chegar a 14,16 trilhões de metros cúbicos. “Isso precisa ser comprovado”, diz ela. “Temos de investir e saber o potencial do país.”

O Brasil não tende a se atirar ao gás de xisto, pois recém começou a exploração do pré-sal, mas a nova riqueza não escapa aos olhos do governo. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) marcou para novembro o primeiro leilão de blocos de gás, separado dos leilões para exploração de petróleo, oferecendo áreas nas bacias de xisto do Paraná, Parecis, Parnaíba, Recôncavo Baiano, Acre e São Francisco. Empresas como Petrobras, HRT, OGX, Orteng, Cemig e Petra já demonstram interesse na extração do gás de xisto.

 

Gargalo brasileiro

A polêmica sobre o fracking ainda não representa problema, de acordo com as autoridades. Mas a ANP reconhece que faltam estudos sobre os impactos ambientais do método. Um comunicado à imprensa, de 13 de abril passado, afirma que “o tema do fraturamento hidráulico tem causado alvoroço na imprensa mundial, pois seus riscos não foram esclarecidos plenamente”. Mas a agência prevê que o leilão de outubro seguirá os trâmites habituais, com as áreas “previamente analisadas quanto à sensibilidade ambiental pelo Ibama e pelos órgãos estaduais competentes”.

O secretário de Minas e Energia, Marco Antônio Almeida, considera que bastam algumas adaptações para dar conta das variáveis envolvidas. “Teremos algumas exigências adicionais (em relação aos leilões habituais), como fraturamento com poço revestido, cimentação mais adequada e projeto aprovado pela ANP”, afirma. Por seu lado, o Ministério do Meio Ambiente informa – olimpicamente –, que não tem relação com o tema.

No campo ambientalista, porém, a dupla fracking-gás de xisto causa engulhos. “O único argumento por trás da exploração é o econômico”, diz Carlos Rittl, coordenador do programa Mudanças Climáticas e Energia da organização ambientalista WWF-Brasil, que critica a falta de discussão sobre os aspectos sociais e ambientais da questão e a guinada rumo aos combustíveis fósseis, na contramão do que recomenda o aquecimento global.

“Há uma clara vontade política para viabilizar a exploração por meio de fracking, especialmente após as recentes avaliações otimistas sobre o potencial de gás de xisto em terra, no Brasil”, afirma Antoine Simon, da divisão europeia dos Amigos da Terra. “Até agora, não existe nada específico em estudo no Ibama, no Ministério do Meio Ambiente ou na Agência Nacional de Águas”, lamenta o ex-deputado ambientalista Fabio Feldmann.

Não custa pensar como São Tomé e aguardar para ver. Afinal, no pré-sal os combustíveis já estão prontos para extração, enquanto o gás de xisto ainda está indefinido. “No Brasil não temos legislação específica para o gás não convencional nem incentivos fiscais ou financeiros que aumentem a atratividade do investimento”, diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. “As reservas nós temos. Se a produção vai se dar em dois ou dez anos, depende da vontade do governo de enfrentar os gargalos que prejudicam o mercado de gás no Brasil.”  [FIM]

 

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Recurso abundante

Em 2011 as reservas provadas de petróleo da Arábia Saudita, maior produtor mundial, eram de 265 bilhões de barris. No mesmo ano, as reservas globais de gás de xisto eram estimadas em 187 trilhões de metros cúbicos, o equivalente a 1,17 Poço de gás de xisto em trilhão de barris. Nome popular do Kivioli, na Estônia. Os países folhelho, o xisto tem uma variação – o xisto betuminoso – que contém querogênio nos poros, uma mistura de compostos químicos orgânicos a partir da qual também se produzem hidrocarbonetos como óleo e metano. Os depósitos de xisto betuminoso poderiam produzir ainda entre 2,8 trilhões e 3,3 trilhões de barris de óleo recuperável. Para economias carentes de energia, a pedra negra pode valer ouro.

 

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Xisto paranaense

O Brasil explora o xisto em escala industrial desde 1972, quando a Petrobras abriu uma refinaria de Industrialização do Xisto, a SIX, em São Mateus do Sul (PR). A cada dia, cerca de 7 mil toneladas da rocha são retiradas do solo por técnicas de mineração, moídas e submetidas a altas temperaturas. Desse processo são obtidos diariamente quatro mil barris de petróleo, além de derivados como o enxofre.

A atividade apresenta dois impactos ambientais salientes. O primeiro, ligado ao processo de abertura das minas, implica a retirada da vegetação e do solo. O segundo, relacionado ao processamento e refino, emite gases-estufa. A Petrobras afirma que controla as emissões e recupera em escala industrial as áreas exploradas desde 1979. Um estudo da Universidade Federal do Paraná feito em 2009 reforça essa tese, ao mostrar que o solo original e o recuperado tinham composição química bem parecida.

Por outro lado, uma pesquisa do Instituto Ambiental do Paraná, órgão fiscalizador do Estado, revela que a SIX foi multada em 2004 e 2006 por descumprir normas de qualidade de água. Outro estudo, do geólogo Helvio Rech, da Universidade Federal do Pampa (RS), detectou que a exploração do xisto está diretamente relacionada à incidência de problemas respiratórios na população de São Mateus do Sul.

 

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Impactos ambientais

O fraturamento hidráulico, ou fracking, é conhecido desde os anos 1940, mas nos últimos anos o aumento nos custos da exploração de petróleo e gás viabilizou economicamente seu uso. Os poços abertos para trazer à superfície os combustíveis do xisto são inicialmente perfurados no sentido vertical, em geral até 3 mil metros de profundidade. Quando se atinge a camada desejada, entra em cena a perfuração horizontal, numa extensão entre 300 e 2.000 metros.

Por um duto horizontal se injeta água, a uma pressão bastante elevada, misturada com areia e produtos químicos. A manobra causa fraturas nas rochas, por onde é liberado o combustível. Este sobe com a água para tanques, onde os produtos são separados.

O fracking está longe de ser unanimidade. Na Europa, ele é permitido no Reino Unido e na Polônia, mas foi proibido na França e na Bulgária. Nos EUA, os Estados de Nova York, Pensilvânia e Texas aprovaram regulamentações exigentes para o método. Veja os problemas:

1 VAZAMENTO
Muitos depósitos de xisto estão abaixo de aquíferos. Se a vedação do poço for falha, produtos químicos usados no fracking poderão ser liberados na água. Embora um executivo da Halliburton tenha sido notícia em 2011 ao beber o fluido de fracking utilizado pela empresa, para demonstrar que ele é seguro, existem dúvidas sobre a composição desse material. O processo pode ainda permitir que os gases acumulados nas rochas atinjam os aquíferos. Uma recente pesquisa da Universidade Duke, publicada em junho na revista PNAS, detectou que 84% de 141 poços analisados na formação Marcellus, no nordeste da Pensilvânia, estão contaminados com metano, etano e propano. Nos poços situados a menos de 1 km dos locais de extração de água potável, os níveis de metano são seis vezes maiores do que o normal, e os níveis de etano, 23 vezes maiores.

2 CONTAMINAÇÃO
A mistura de água, areia e produtos químicos injetada nos poços sobe aos poucos para a superfície e pode contaminar o solo e a água.

3 CONSUMO DE ÁGUA
Retirar as imensas quantidades de água empregadas no processo pode prejudicar os ecossistemas da região. Calcula-se que um poço normal exija em média entre 11 milhões e 30 milhões de litros de água durante sua vida útil.

4 TERREMOTOS
Embora cientistas britânicos afirmem na revista Journal of Marine and Petroleum Geology que o fracking não causa abalos sísmicos importantes, há divergências. Para eliminar o risco, o professor Richard Davies, da Universidade de Durham, sugere que se evitem perfurações perto de falhas tectônicas.

5 POLUIÇÃO NO PROCESSO
Um estudo da Universidade Cornell divulgado recentemente na revista Climatic Science estima que a pegada de carbono do processo de extração do gás de xisto seja até 20% maior do que a do carvão, o mais “sujo” e poluente dos combustíveis fósseis.