Quando três estudantes tiram a própria vida em um intervalo de duas semanas, não é possível – nem indicado – se calar. Muito menos quando esses acontecimentos trazem à tona a estatística de que o suicídio é a quarta causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. O jornalista André Trigueiro, especializado em meio ambiente e sustentabilidade, deparou-se com essa questão de saúde pública há quase 20 anos e desde então se dedica a divulgar informações que façam diferença na prevenção desses incidentes. Ele fala aqui sobre seu livro “Viver É a Melhor Opção” (Editora Correio Fraterno, 2015) e o papel de cada um de nós na proteção da vida.

PLANETA – Ainda prevalece a ideia de abafar o assunto por se acreditar que não falar de suicídio evita novos casos?
TRIGUEIRO – Essa agenda avançou muito nos últimos 20 anos. O tabu é resultado da ignorância e da desinformação. Falar de suicídio é falar de saúde. Tenho até dúvidas se devo continuar a usar a palavra tabu para reportar a forma como lidamos com o tema. Há um manual dirigido a profissionais de imprensa e de produção cultural (literatura, cinema) redigido pela Organização Mundial da Saúde sobre os cuidados a tomar na abordagem, evitando os gatilhos para não incentivar a imitação, como no “efeito Werther” [referência ao livro de Goethe “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de 1774; o método de suicídio usado pelo personagem da obra foi repetido por uma série de homens da época].

PLANETA – Deixamos de falar de suicídio, mas falamos muito de violência. Isso afeta o ânimo?
TRIGUEIRO – Isso gera desesperança, depressão. A calibragem dos assuntos violentos na mídia, quando cede ao sensacionalismo e à apelação, agrava esse estado de tristeza mórbida, que pode virar uma tristeza persistente, que pode levar à depressão. Fiz uma matéria sobre os efeitos psicológicos da violência no Rio de Janeiro – há gente sofrendo de depressão, síndrome do pânico, fobias, neuroses. No livro “O Suicídio”, de 1897, Émile Durkheim, um dos pais da sociologia, reconhece que o meio em que o indivíduo está inserido afeta, posto que o suicídio é multifatorial.

PLANETA – O fato de a sociedade atual se basear na “felicidade obrigatória e constante” piora a situação?
TRIGUEIRO – Isso está no pacote da sociedade de consumo, que é a ditadura da eterna alegria, da eterna juventude e da eterna beleza física. O culto ao consumismo, ao hedonismo, ao individualismo e a alienação são inimigos da consciência. Os jovens têm ainda a questão da impulsividade e do tempo da convivência social – que prepara as pessoas para as adversidades da vida – sendo subtraído pelo universo digital. A pressão da crise ambiental, o acesso às drogas, a desagregação familiar… Todos esses fatores pesam hoje. As pessoas não lidam bem com a sensação de vazio, com dor e sofrimento. Há um momento em que passamos a perceber o risco de a nossa cultura não ser sustentável e promover o autoextermínio. Mas não podemos achar que o suicídio é problema apenas para profissionais da saúde, psicólogos e psiquiatras, ou para governos. A proteção da vida é uma atribuição importante da cidadania. Não podemos permanecer indiferentes à dor do outro. Ela nos diz respeito. As estatísticas de suicídio só regredirão quando construirmos a cultura da proteção da vida. Ao encontrarmos alguém vivendo uma angústia extrema, podemos e devemos nos disponibilizar. Perguntar: “Desculpa, posso te ajudar?”. Parece pouco, mas não é. O Centro de Valorização da Vida (CVV) faz muito com muito pouco. Ele oferece atenção, escuta. São 8 mil atendimentos por dia, 2 milhões de atendimentos em 2017 – este ano, caminha para 3 milhões. Esses números dizem algo, porque o CVV não tem grande divulgação nas mídias.

“As estatísticas de suicídio só regredirão quando construirmos a cultura da proteção da vida” – Clima de violência no Rio de Janeiro: origem de várias doenças (Foto: iStock)

PLANETA – Você é voluntário do CVV, mas nunca atendeu a um telefonema?
TRIGUEIRO – Nunca fiz o curso. Sendo jornalista, não tenho a disponibilidade regular – dias e horas marcados – para atender no posto. Sou o que chamam de “voluntário colaborador”: é quem faz tudo ao seu alcance para ajudar a instituição. Nesses 19 anos, já fiz algumas coisas. Coordenei a divulgação no Rio, fiz vários media trainings para melhorar a divulgação desse serviço e cedo os direitos autorais de quatro de meus livros para o CVV – entre eles o “Viver É a Melhor Opção”.

PLANETA – Em 2017, o Ministério da Saúde “adotou” o CVV tornando as ligações gratuitas. Antes elas eram pagas.
TRIGUEIRO – O CVV existe desde 1962 e construiu reputação, prestígio e notório saber em como fazer o serviço de apoio emocional e prevenção do suicídio, reconhecido como de utilidade pública. Nos últimos anos, o governo multiplicou os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que na rede pública têm a função de acolher pessoas com várias patologias de ordem mental e quem tentou o suicídio ou tem ideação suicida. Em 2017, passou a divulgar um relatório sobre suicídio no Brasil durante o Setembro Amarelo, instituí­do em 2016. Com essas ações, o Brasil afirma ao mundo que tem política pública de prevenção ao suicídio. Mas em geral nossos médicos saem da faculdade sem noção de como lidar com esse público, a ponto de darem “bronca” do tipo: “Da próxima vez seja mais competente. Você está ocupando o leito de alguém que quer viver”. Ainda estamos muito atrasados na formação de profissionais de saúde.

PLANETA – O que fez você começar a estudar esse tema?
TRIGUEIRO – Vou dar duas respostas. Uma, rápida e correta: porque, como jornalista no século 21, entendi que é uma questão de ética abordar com a devida clareza e objetividade um tema capital que é o fato de o suicídio ser um problema de saúde pública no mundo inteiro. A outra resposta: meu primeiro contato com o tema foi numa reunião mediúnica. Não sou médium; uma pessoa próxima a mim permitiu contato com alguém que queria falar comigo. Era um desencarnado muito envolvido no socorro e na assistência a jovens suicidas no plano espiritual. Ele sugeriu que eu, como jornalista, pesquisasse o tema, porque do lado de lá não havia muito o que fazer quando alguém desencarnava pelo suicídio – era importante tentar prevenir aqui. O espiritismo tem uma abordagem científica dessa comunicação. Temos um protocolo de rastreamento. Chequei a origem da mensagem e quem era o desencarnado, porque ele poderia ser do bem ou do mal ou ter menos informação que você. Era 1999 e eu nunca ouvira falar que suicídio era caso de saúde pública. Pedi no Centro de Documentação da TV Globo uma pesquisa sobre suicídio no Brasil e no mundo. Tudo o que me foi dito se confirmou. Pesquisei mais e percebi que esse é um tema muito rejeitado, maltratado na mesma proporção de sua importância e urgência.

“O Brasil afirma ter política pública de prevenção ao suicídio” (Foto: Divulgação)

PLANETA – Ter publicado o livro por uma editora espírita afeta a receptividade dele por pessoas de outras religiões?
TRIGUEIRO – Existe o risco, mas não acho que isso seja um problema, porque foi uma iniciativa coerente com quem sou e com as histórias que acho relevante contar sobre o assunto. A editora é pequena, mas foi um gesto de gratidão, são amigos meus, que me estimularam a escrever o livro quando eu nem pensava em fazer isso. Estamos próximos dos 50 mil exemplares vendidos, e recebo com alegria o retorno de pessoas que não são espíritas sobre como o livro as ajudou a ajudar. A proposta do livro é promover a prevenção do suicídio por meio de informações claras e objetivas na área da saúde. Ele não foi escrito para quem pensa em se matar. O último capítulo permite essa imersão nas partes que considero mais relevantes das informações que aludem à realidade do suicida segundo a doutrina espírita.

PLANETA – Como outras religiões tratam essa questão?
TRIGUEIRO – As mais importantes religiões e tradições espiritualistas do Ocidente e do Oriente – judaísmo, cristianismo, as linhas afro-brasileiras, budismo… – entendem que em nenhuma hipótese o suicídio significa alívio ou solução para os problemas. Até o islamismo: apesar da confusão causada pelos atentados suicidas, os teólogos mais importantes do Islã rejeitam terminantemente o suicídio. Para mim, o espiritismo é a doutrina que mais detalhes oferece da realidade do suicida no plano espiritual. Isso também explica meu engajamento no tema. Tento fazer minha parte para as pes­soas não terem essa experiência. Embora a doutrina espírita não fale em penas eternas – todos temos a oportunidade de reparar nossos erros –, trata-se de um sofrimento que consome precioso tempo e energia. É como disse o humorista Millôr Fernandes: “Morrer é uma coisa que se deve deixar sempre para depois”.