Lula Mello é um dos guardiões do legado de Nise da Silveira, médica que revolucionou a psiquiatria brasileira, fundadora de um dos museus mais importantes do país, o Museu de Imagens do Inconsciente

Há 40 anos, Luiz Carlos Mello descobriu seu caminho profissional com a doutora Nise da Silveira (1905-1999), a médica que revolucionou a psiquiatria no Brasil a partir da década de 1940. A dra. Nise estabeleceu ateliês de pintura e escultura como propostas terapêuticas de expressão simbólica e de criatividade para internos de hospitais psiquiátricos. Além disso, posicionou-se pioneiramente contra práticas como o confinamento, os eletrochoques e a lobotomia.

Diretor do Museu de Imagens do Inconsciente, fundado pela dra. Nise em 1952, no Rio de Janeiro, Lula Mello, como é conhecido, falou à PLANETA sobre o legado da médica que revelou um universo recôndito do inconsciente de milhares de pacientes de hospitais psiquiátricos e mostrou que o afeto e a liberdade são grandes armas contra os antigos manicômios.

Prestes a lançar uma fotobiografia de Nise, Lula Mello não se cansa de divulgar seu trabalho pelo mundo. Para ele, a luta antimanicomial não terminou e ainda existe muito a se descobrir nos confins do nosso inconsciente.

Como conheceu a dra. Nise?
Na década de 1970 eu era estudante universitário. Com 20, 21 anos, estava em busca da minha vocação. Nessa busca, passei por três faculdades – geologia, arte e engenharia – e não estava satisfeito. Na terceira, quando já estava desanimando, comecei a fazer um curso de inglês para viajar com minha irmã para a Europa e tentar a vida por lá. Numa aula de inglês, em 1973, já perto da viagem, comentei com uma colega que estava pensando em estudar psicologia na Inglaterra e ela disse que havia um grupo de estudo da psicologia de Carl Jung no Rio de Janeiro, organizado pela doutora Nise da Silveira, em sua residência. Fui conhecer esse grupo e me apaixonei pelo trabalho dela. Fiquei envolvido rapidamente pela psicologia junguiana, pois pertencia a uma geração em que os alucinógenos eram usados na busca de novas percepções e, por meio deles, tive experiências psíquicas profundas. Naquela época eu não tinha estofo para compreendê-las, e a psicologia junguiana me deu uma chave para entender um pouco dessas vivências. Perto da minha viagem, parei de ir aos encontros com a dra. Nise e tive um sonho com ela. Naquele mesmo dia, fui à sua casa e ela comentou que o grupo estudava Jung nos livros, mas Jung estava vivo no Engenho de Dentro. Ela falou do trabalho realizado no Museu de Imagens do Inconsciente e me descobri quando o visitei.

Qual foi seu primeiro impacto?
Quando cheguei, a dra. Nise não se encontrava. Entrei e vi a sala de exposição de esculturas que pareciam ter surgido de um sítio arqueológico nas imediações do hospital. Eu não podia aceitar que alguém do século 20 havia feito aquelas esculturas, que eram de uma mulher que frequentava os ateliês, a Adelina Gomes. O impacto foi tanto que peguei o dinheiro da viagem, aluguei um apartamento nas proximidades do museu e me entreguei a esse trabalho. Comprei livros de Jung e me tornei estagiário voluntário. Minha irmã foi para a Europa, onde está até hoje, e eu vim para o Engenho de Dentro. Comecei a estudar o acervo e tive sonhos confirmando que minha decisão estava certa.

Como começou a trabalhar?
Em 1975 foi comemorado o centenário de Carl Gustav Jung com uma grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, organizada pela Nise. A exposição viajou o Brasil todo e paralelamente foram realizadas conferências por temas com a participação do grupo de estudos. Um desses temas, “C. G. Jung numa civilização em transição”, abordava a passagem do arquétipo do Três Cristão, o ternário masculino, para o arquétipo do quatro, que é a entrada do feminino na trindade. Por causa de minha timidez, não tinha me inscrito em nenhum tema. No entanto, ela não tinha imagens selecionadas e eu pesquisei e selecionei, no acervo do museu, mais de 40 que diziam respeito ao assunto. Foi nesse momento que ocorreu o nosso verdadeiro encontro, o início da minha colaboração com ela, que durou quase três décadas. Entusiasmado, fui estudando o acervo do museu e fornecendo material para as pesquisas da Nise, que deram origem a livros, exposições, filmes e a 15 documentários em audiovisuais. Ela dizia que a gente era uma dupla do barulho (risos).

No começo, Nise enfrentou muita gente que era contra o seu trabalho. Como foi essa fase?
A Nise era uma pessoa da contracorrente. Os valores que propunha, como o respeito aos pacientes, o afeto, a liberdade, a criatividade, contrariavam a concepção de um hospital psiquiátrico na época. No hospital, a estatística registrava 70% de reinternações, o que demonstrava que o tratamento não estava funcionando. Ela queria descobrir uma nova maneira de tratar, de lidar com essas pessoas e de conviver com elas. O afeto era uma das bases do seu trabalho. E ela conseguiu, a ponto de o próprio Jung dizer no II Congresso Internacional de Psiquiatria, no qual 27 países diferentes apresentavam exposições de pinturas de esquizofrênicos, que as imagens da exposição do Brasil era diferentes das do resto do mundo. Nise perguntou o porquê e Jung respondeu: “o fundo da pintura dos brasileiros é constituído por cores claras e alegres, e isso denota que o ambiente onde essas pessoas trabalham é muito favorável e que não têm medo do inconsciente”.

Mesmo assim ela não teve apoio?
De forma geral, não. Hoje seus livros são estudados em universidades e seu trabalho é respeitado, tanto no Brasil quanto no exterior, mas muito tempo se passou antes disso. Tentaram acabar com o museu várias vezes, mas ela chamava a imprensa e denunciava as tentativas, pois durante toda a sua vida teve o apoio da imprensa. Muitos artistas colaboraram com ela: Rubens Correia, Domitila do Amaral, Martha Pires Ferreira, Ilo Krugli, Rizza Conde, Cláudio Cavalcanti, Vanda Lacerda, Fauzi Arap, Anna Letycia, Edino Krieger. Vinha gente de teatro, de literatura e das artes plásticas.

Quanto às exposições com obras do museu, quais o marcaram?
Uma delas é a exposição dos 500 anos das artes visuais brasileiras, realizada no Parque Ibirapuera, em São Paulo, em 2000, a Mostra do Redescobrimento: Brasil + 500. Pela primeira vez foi feita uma retrospectiva de toda a história da arte brasileira, incluindo a arqueologia, a arte indígena, a arte afro-brasileira, o barroco, a arte popular, a arte moderna, etc. Trabalhei durante três anos no módulo Imagens do Inconsciente. Pesquisei, além do Museu de Imagens do Inconsciente, acervos de outras instituições formados dentro de hospitais psiquiátricos, como as obras de Arthur Bispo do Rosário, Aurora Cursino dos Santos e outros artistas que se tornaram reconhecidos dentro da história das artes visuais brasileiras. As esculturas da Adelina, que me impressionaram pelo arcaísmo na primeira visita ao museu, serviram de inspiração para a exposição Arqueologia da Psique, realizada na Casa França-Brasil, no Rio de Janeiro. Nessa exposição podíamos ver alguns exemplos de paralelismo entre imagens espontâneas, atuais, produzidas nos ateliês do museu, e imagens que constituem achados arqueológicos em épocas distantes e em diferentes regiões do mundo, que fazem parte da história humana e comprovam a historicidade e a atemporalidade da psique.

A que o sr. atribui o seu sucesso?
Além da qualidade estética das obras, elas oferecem referências de uma simbologia universal, que forma a base do psiquismo humano. Como dizia Jung: “Do mesmo modo que o corpo humano é um agrupamento completo de órgãos, e cada um é o termo de longa evolução histórica, também devemos admitir na psique organização análoga. Tanto quanto o corpo, a psique não poderia deixar de ter a sua história.” Jung descobriu o conceito de inconsciente coletivo em delírios de pacientes, porque o louco mergulha em camadas universais mais profundas, a que difi cilmente temos acesso.

Nas décadas de 1940 e 50 surgiram “grandes artistas” revelados pelo Museu de Imagens do Inconsciente. Há novos talentos?
Sim. Nosso acervo é vivo e não para de crescer. Os ateliês até hoje funcionam. Trata-se de um acervo que está sempre se renovando. Por isso nós o chamamos de Museu Vivo. Há sempre uma sala de exposição para os frequentadores. A diferença, hoje, é que 80% deles são pacientes externos, que vêm aqui para fazer suas atividades, mas vivem em suas casas. No tempo da Nise eram todos internos, o que prova que as coisas mudaram para melhor. Há muito o que mudar ainda, mas a mudança veio depois da luta da Nise e da Reforma Psiquiátrica.

Para ela, eles não eram artistas.
Sim. O acervo do museu é fruto de um trabalho terapêutico. Não teve e não tem a intenção de fazer artistas. O que fazemos é tratamento. Agora, como em qualquer outro lugar, alguns acabam se destacando no mundo da arte. Alguns saíram do tratamento e viraram artistas. Se os críticos diziam que eram artistas, a Nise não se opunha, ao contrário, dizia “viva!”. Assim ganhavam cidadania como artistas, porque antes eram considerados apenas loucos sem reconhecimento, tanto da psiquiatria quanto da sociedade.

O que mudou depois de Nise?
O trabalho da equipe do museu segue dando continuidade à sua obra, mas esperamos que uma nova geração prossiga abrindo caminhos. Estamos tentando ampliar a sede do museu, pois seu acervo, além de ser tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), tem 350 mil obras. O país tem obrigação de manter esse trabalho, de dar desenvolvimento a ele, que é uma memória incalculável construída por meio do afeto, da liberdade, da criatividade e do estudo científi co da revelação das riquezas do mundo interno. O Museu de Imagens do Inconsciente é um dos tesouros mais valiosos da alma brasileira.

As autoridades reconhem isso?
Não vou responder.