Desde que o artigo “Por que não sou religiosa” foi publicado em PLANETA, muitos leitores têm me perguntado se acredito em Deus. Gostaria de explicar que não ser religioso não significa necessariamente negar a existência de Deus. Quer dizer simplesmente que não se pertence a uma comunidade moral chamada igreja. É o que ocorre no meu caso.

Fui criada de acordo com os preceitos da religião anglicana. Já adulta, conheci outras religiões, cristãs e não cristãs, e o que mais me surpreendeu foram as diferenças entre elas. Tomemos como exemplo as igrejas católica romana e anglicana. Embora ambas se considerem apostólicas, seus conceitos e cerimônias divergem bastante entre si. Enquanto a católica romana impõe o celibato a seu corpo sacerdotal, os padres anglicanos se casam e têm filhos. A confissão auricular não é exigida pela igreja anglicana, que a substituiu pela geral, feita em voz alta por toda a congregação.

O papa, chefe da igreja católica romana, tem um cargo vitalício. Já o líder dos anglicanos, o arcebispo de Cantuária, pode, se necessário, ser substituído. Durante a missa (cerimônia principal nas duas religiões), os católicos romanos devem comungar em jejum, pois as espécies são transubstanciadas e, na comunhão, só recebem a hóstia; é o padre que toma o vinho. Os anglicanos não respeitam o jejum, uma vez que a cerimônia é realizada em lembrança à Última Ceia; as espécies não são transubstanciadas e os que comungam recebem tanto pão como vinho.

A diversidade nas formas de cultuar Deus multiplica-se ao infinito quando se considera o número de religiões existentes no mundo. Segundo pesquisas recentes, só na Inglaterra, país­ considerado conservador, há mais de 2 mil seitas diferentes; no Japão, existem cerca de 160 mil. Algo parecido acontece em outros países de todos os continentes. O que se pode deduzir dessa proliferação religiosa?

Visões da superfície

Depois de muita reflexão, concluí que, nesse aspecto, os seres humanos seriam comparáveis a criaturas que, vivendo em lugares escuros, no fundo da terra, pouco ou nada sabem do que ocorre fora dela. Um dia, alguém descobre uma trilha e, após caminhar durante algum tempo, chega à superfície. Ali encontra um mundo estranho, luminoso, cheio de vegetação e criaturas singulares. Assustado, volta à sua caverna e descreve a experiência para os companheiros. Alguns acreditam, outros não. Por fim, a maioria conclui que o viajante deve ter estado num lugar não terrestre, povoado por seres incorpóreos. Assim nasce a crença num mundo espiritual, repleto de luz, habitado por criaturas dignas de veneração.

Missa: cerimônia principal para anglicanos e católicos (Foto: iStock)

Mais tarde, outros sobem por novas trilhas e também chegam à superfície, mas em locais diferentes. Deparam-se com seres estranhos, animais desconhecidos, paisagens por vezes belas, por vezes desérticas, quentes demais ou extremamente geladas. Suas descrições passam a influenciar grupos distintos de pessoas e, aos poucos, outras crenças vão surgindo, com deuses, demônios, criaturas angelicais, céus, infernos e purgatórios.

Todas essas imagens refletem uma concepção própria, resultado de muitos estudos e observações que, se não me conduziram à verdade definitiva, permitiram-me descobrir princípios que explicam a diversidade no modo de pensar e de se comportar da humanidade. Um deles, ensinado pelos espiritualistas e espíritas, mas não aceito pela maioria da cristandade, é a hipótese reencarnatória. O principal motivo alegado pelos cristãos para rejeitar esse conceito é a omissão da “Bíblia” sobre o assunto. Ao contrário do que se afirma, porém, vários casos são citados tanto no Antigo como no Novo Testamento.

Elias: João Batista

O de Elias, a propósito, aparece em ambos. Considerado um dos maiores profetas hebreus, ele foi alimentado por corvos quando se refugiou no deserto para escapar da ira do rei Acabe, ressuscitou um jovem que havia morrido, salvou a religião judaica da corrupção dos adoradores de Baal e, finalmente, subiu aos céus num carro de fogo, puxado por cavalos também de fogo. No Livro de Malaquias, o último do Antigo Testamento, há a promessa de que ele voltaria: “Eis que vos envio o profeta Elias, antes que venha o dia grande e terrível do Senhor” (4:5).

Jesus não só confirmou o prognóstico de Malaquias como revelou o novo nome do profeta ao afirmar: “(…) Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quiseram. (…) Então entenderam os discípulos que lhes falara de João Batista” (Mateus 17:12-13).

João Batista batiza Jesus: ele seria a reencarnação do profeta Elias (Foto: iStock)

Outro caso, mais velado, é o do cego de nascença. Segundo o Evangelho de João, ao passarem por um cego de nascença, os discípulos perguntaram a Jesus: “(…) quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?” (9:2).

A primeira parte da pergunta sugere que os discípulos acreditavam na preexistência da alma e no resgate de erros cometidos em vidas passadas. Quanto à dúvida sobre os pais terem pecado, parece uma referência às palavras ditas por Deus a Moisés no Monte Sinai: “(…) sou Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem” (Êxodo 20:5).

É interessante assinalar ainda que, até meados do século 6 da nossa era, a reencarnação fazia parte dos ensinamentos do cristianismo. Ela foi abolida da doutrina pelo Concílio de Constantinopla, no ano 533, por motivos controversos. Nos séculos 12 e 13, contudo, a crença na reencarnação foi reavivada pelos cátaros, considerados heréticos pela igreja católica romana e, consequentemente, perseguidos.

O fato de não me considerar religiosa não impede, portanto, que eu formule minhas próprias concepções sobre Deus e os princípios espirituais que regem a humanidade. Na verdade, isso tem me estimulado a pesquisar tais questões continuamente e cada vez com maior profundidade. Mesmo porque, para mim, é procurando que se encontra. E eu vou continuar procurando.

 

 

 

(*) O presente artigo é um excerto
de “Vivendo a fé com liberdade”,
publicado na edição 280
de PLANETA (Janeiro de 1996).