Em um ano, a “Fruta Feia” virou coqueluche na Europa e contempla aumentar o seu número de associados de 100 para 2,5 mil. 

“O Natal de 2012, eu soube que meu tio agricultor iria jogar no lixo 40% das suas peras supersaborosas, simplesmente por não terem o calibre desejado pelos grandes distribuidores de supermercados. Exatamente como eu que, por ser baixinha, se fosse fruta jamais entraria no mercado.” É assim que a portuguesa Isabel Soares, 32 anos, especialista em energias renováveis, explica a fundação da Cooperativa Fruta Feia, em Lisboa, com mais três companheiros, em novembro de 2013.

Hoje, o projeto virou hit na Europa, resenhado pelo jornal e New York Times, contemplado com o Prêmio de Empreendedorismo Social da Fundação Calouste Gulbenkian e elogiado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, em inglês). Em pouco mais de um ano a cooperativa conseguiu captar recursos expressivos, via crowdfunding, para suas atividades. A base dos cooperados aumentou vertiginosamente: os 100 associados iniciais já viraram 450, e há 2.500 inscritos na lista de espera. A Fruta Feia já tem dois pontos de vendas concorridos em Lisboa, na Casa Independente e no Ateneu Comercial, e se prepara para abrir o terceiro.

“Gente bonita come fruta feia” é o lema da empresa, que associa “bons ideais às pessoas dispostas a comer” e ataca o desperdício, oferecendo produtos de qualidade, mas fora dos padrões normativos das redes de varejo da União Europeia (ou seja, com nódoas, imperfeições ou cores desmaiadas). “Esse problema começou a me indignar na conversa com meu tio agricultor”, conta Isabel. “A ideia da Fruta Feia surgiu na minha cabeça como uma necessidade, uma maneira de corrigir e canalizar parte do desperdício alimentar desde os agricultores até o consumidor final. Há muita gente que, como eu, não julga a qualidade pela aparência.”

A partir daí, a jovem empreendedora inventou um mercado para frutas e verduras consideradas feias pelos padrões da União Europeia, recusadas pelo varejo, mas perfeitamente consumíveis. São produtos que, apesar da aparência menos atraente, mantêm os valores nutricionais e o sabor. “As normas da UE se baseiam na ideia equivocada de que qualidade é aparência. Essa lógica da ditadura da beleza foi imposta pelo consumidor, que escolhe a fruta que brilha mais ou a mais redondinha”, diz Isabel.

A Europa desperdiça 90 milhões de toneladas de alimentos por ano. Em termos de consumo per capita, o relatório de 2013 da FAO, Food Wasteage Footprint, mostra que cada europeu e norte-americano desperdiça, por ano, entre 280 e 300 quilos de alimento. Os campeões mundiais do desperdício são os países industrializados da Europa, da América do Norte e Oceania (EUA, Austrália, Canadá e Nova Zelândia) e da Ásia (Japão, China e Coreia do Sul). 

Na categoria “frutas e vegetais”, as perdas, segundo o relatório da FAO, ocorrem “na maior parte devido ao sistema de classificação, baseado nos padrões de qualidade definidos pelo varejo após a colheita”. Em Portugal, estima-se que um terço dos hortifrútis cultivados seja desperdiçado devido aos standards adotados por supermercados e seus consumidores. As regras alimentares da Europa já fizeram crescer o sentimento anti-UE, especialmente no Reino Unido, onde os tabloides vivem ridicularizando os burocratas de Bruxelas, sede da Comissão Europeia, por proibir “bananas tortas” ou “pepinos curvos”.

Isabel Soares vende os hortifrútis da Fruta Feia sem infringir a legislação vigente da UE, porque as regras europeias se aplicam apenas a produtos rotulados ou embalados, o que não é o caso da cooperativa que vende frutas em caixas abertas. Assim, a “fruta feia” pode ser muito bem recebida pelos consumidores europeus que passam dificuldades sob a atual crise econômica, pois seu preço é a metade do encontrado em supermercados, além de aplaudida pelos setores críticos do crescente desperdício de alimentos na Europa.

Metade do preço

Para comprar frutas feias, os consumidores portugueses precisam se associar à cooperativa, pagando uma taxa anual de R$ 18 e retirando semanalmente os produtos nos dois pontos de venda da capital, em dois tipos de caixas: de três a quatro quilos ou de sete a oito quilos, com frutas e verduras da estação. 

Dependendo do tipo, as caixas contêm de cinco a nove produtos, e os preços em euros são o equivalente a R$ 10 para a caixa pequena e R$ 20 para a grande. Caixas iguais de produtos “normatizados” custam R$ 20 e R$ 40, respectivamente. Na época da reportagem da PLANETA, a caixa grande continha maçã, melão, nectarina, alho, cenoura, feijão, tomate e cebola. De bônus a cesta da Fruta Feia ainda oferecia receitas simples inspiradas nos produtos. Atualmente, a cooperativa funciona com dois funcionários, 15 voluntários, 50 agricultores e 450 associados. 

Outra vantagem do projeto é possibilitar o incremento de renda aos agricultores, que antes mandavam os alimentos fora dos padrões para o lixo, e agora têm um lucro suplementar como fornecedores da cooperativa. Isabel acredita que semanalmente evita o desperdício de uma tonelada de alimentos. “O consumidor está se tornando cada vez mais ético, levantando o cartão vermelho contra o consumo excessivo e o desperdício, e subvertendo as ideias de praxe sobre o que é belo. Ou ao menos o que é comestível”, afirma a empreendedora. 

A Fruta Feia nasceu sem fazer alarde, mas foi eficaz desde a origem. Nos dois entrepostos de Lisboa, tudo é quase banal: um galpão, pessoas separando os produtos recém-colhidos, uma van de transporte e uma boa ideia sustentável dando cada vez mais frutos. A idéia alternativa revelou-se capaz de conquistar e criar mercado. 

Para o publicitário brasileiro Nizan Guanaes, dono da agência Africa – um dos fãs da cooperativa –, a iniciativa é brilhante, assim como a marca e o slogan. “A fruta feia virou fruta bonita e ganhou o mundo com propaganda gratuita via reportagem do jornal mais influente do mundo, o e New York Times”, afirma Guanaes. “Isso é entender as mudanças sociais em sua volta, as dimensões da crise econômica europeia e o combate ao desperdício. Eles propuseram uma inovação, criaram um conceito, um produto e uma marca capaz de levar a vontade de mudança às próximas gerações”, explica. 

Comida à deriva

Todo mundo, rico ou pobre, joga comida fora. Por quê? Apesar de os alimentos pesarem cada vez mais no bolso, o maior índice de perdas – 35 % – ocorre, em todo o mundo, durante o consumo. Afi nal, quem nunca recusou uma folha de alface que não tinha lá uma aparência muito boa, ou um tomate com uma mancha escura? Esse tipo de escolha impõe um custo pesado nas estatísticas de alimentos descartados. 

Segundo a FAO, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente no mundo, considerando-se as perdas ao longo de toda a cadeia agroalimentar: produção, colheita, manuseio, armazenamento, processamento, distribuição e consumo. Esses produtos abasteceriam, e bem, as 930 milhões de pessoas desnutridas existentes do mundo. A perda equivale a mais da metade da produção mundial de cereais, atingindo o valor anual de US$ 640 bilhões, o equivalente ao Produto Interno Bruto (PIB) da Suíça. 

Quando se fala de alimentação sustentável, pressupõe-se uma mudança de hábitos e costumes. Não é novidade que muitas pessoas procurem o fim de feira, a “hora da xepa”, para adquirir produtos mais baratos. No Brasil, entretanto, a tendência de comprar frutas e verduras “feias”, que não se encaixam nos padrões de beleza exigidos pelo consumidor, ainda não vingou. 

Na França, recentemente a rede de supermercados Intermarché lançou, com muita propaganda, uma linha de produtos “feios” que custam 30% menos do que os idênticos bonitinhos. Alguém se habilita no Brasil?