Em quatro países do Sudeste Asiático – Tailândia, Camboja, Laos e Mianmar – o Ano- Novo é celebrado durante quatro dias e com muita água. Para os budistas da linha Teravada, o líquido cristalino depura os pecados e traz renovação para o novo ciclo. Portanto, ganhar uma bênção com água significa receber bons fluídos – literalmente – para o ano que se inicia.

Até dez ou 20 anos atrás, a tradição era colocar água perfumada em uma vasilha de prata e aspergir gotas sobre as pessoas queridas, usando pétalas de flores. Mas esse ritual gentil transformouse num frenesi nacional nos quatro países e tomou proporções de um verdadeiro Carnaval. Durante o feriadão, mais de 130 milhões de habitantes deixam de pensar na sua labuta cotidiana e se dedicam apenas a brincar.

Em Mianmar (antiga Birmânia), o Festival das Águas é celebrado entre os dias 13 e 16 de abril. Mas, na prática, muita coisa acontece na véspera do feriado, no dia 12. “Proteja a sua câmera fotográfica e coloque seu dinheiro e documentos em um saco de plástico”, afirma Thida Mai, uma birmanesa que vive nos Estados Unidos e que vem anualmente visitar a família na época das festas. “Ninguém fica seco durante esses dias.”

SAIO DO HOTEL em Yangon (a capital do país, outrora chamada Rangum) prevenido e sigo as recomendações de Thida. Em 30 segundos, tomo o primeiro susto: um balde de água, jogado do alto do prédio vizinho, despenca sobre a cabeça de duas jovens que estão na calçada, à minha frente. É o primeiro banho delas – certamente não o último. Aproveito a ocasião: troco uma risada de cumplicidade com os garotos do terceiro andar e esperamos juntos as próximas vítimas. Dito e feito, três jovens, pegos de surpresa, são encharcados com o balde de água lançado do alto do edifício.

Antes que eu passe a ser o seguinte alvo, sigo meu caminho, olhando para todos os lados e, principalmente, para cima. De pé, em uma camioneta aberta, cinco adolescentes ameaçam me molhar, usando garrafas PET. Levanto a câmera (protegida com camadas de plástico) como se erguesse a bandeira branca da paz. Por um instante, penso que um estrangeiro é uma presa ainda mais fácil e divertida… mas sou poupado! Percebo neles quase que um sorriso de compaixão!

Mying Mying despeja água no vestido seco de uma jovem. À direita, na arquibancada do Festival das Águas, os foliões molham os que por ali passam; durante o evento, um balde de água jogado do alto de um prédio pega de surpresa adolescentes; e um garoto molha com seu fuzil aquático qualquer pessoa que se aproxime de seu raio de ação.

A cada passo que dou, checo os riscos. A poucos metros, uma jovem na calçada segura a vasilha tradicional prateada cheia de água. Ela espera o próximo pedestre para completar o seu ritual. Saio de perto e me coloco em boa posição para a foto, torcendo para que a moça de vestido negro que se aproxima não fuja da raia. A menina sorri, leva a vasilha na altura dos ombros da desconhecida e derrama um litro de água sobre o vestido negro.

TUDO SEM UM PINGO de agressividade e com muito riso, pois faz parte da tradição deixar que o banho aconteça. Na verdade, a água não deve ser rejeitada, pois poderia trazer azar. “Atrai dinheiro para o ano seguinte”, afirmou Mying Mying, a que deu o banho de maneira tão suave. A ablução deve ser sempre aceita com humor e alegria. Afinal, é sinal de boa sorte no próximo ano.

Continuo andando pelo centro da capital Yangon. Em uma das avenidas, alguns operários terminam de montar um palanque de madeira. No dia seguinte, dezenas de jovens estarão empilhados nessa arquibancada, prontos para molhar os que passarão por perto. Contarão com uma arma adicional: um cano de duas polegadas foi acoplado a uma tubulação de água da rua. O líquido, com pressão, terá um tremendo poder de fogo!

Nos últimos anos, a vasilha prateada também foi substituída por revólveres e fuzis de plástico. Sonho de qualquer menino de 7 anos, as armas coloridas foram desenhadas para armazenar uma boa quantidade de munição. Um garoto, a bordo de uma camioneta de transporte público, passa distribuindo sua “água benta” a toda e qualquer pessoa que esteja em seu raio de ação.

Consigo peregrinar toda a manhã pelo centro da capital sem receber nenhum banho. Retorno são, seco e salvo ao hotel quando sinto, na minha nuca, algo parecido com um choque elétrico. Assustado, viro a cara e encontro o sorriso suave de Mying Mying. Ela acaba de despejar uma vasilha cheia de água – dessa vez, gelada – nas minhas costas. Estou encharcado! Mas nada de ficar zangado: afinal serei abençoado pela boa sorte.

No hotel, encontro Thida Mai e conto minhas primeiras peripécias. Ela sorri, como se estivesse ouvindo uma história da boca de seu filho de 8 anos. “Você não viu nada ainda. Essas brincadeiras são pouca coisa em comparação ao que você assistirá amanhã, quando o festival realmente começar. Não deixe de ir à Inya Road!”

No dia seguinte, com coragem, toalha do hotel nas costas e sacos de plástico para proteger o equipamento, decido visitar alguns palanques do festival. Começo a entender a equação e a brincadeira. As mangueiras tem horário marcado para funcionar: de manhã (das 9 horas ao meio-dia) e à tarde (das 15 horas ao pôr-do-sol). Os jipes e as camionetas abertas passam bem pertinho das arquibancadas para que os passageiros – geralmente famílias inteiras – possam ser devidamente molhados.

Os veículos chegam a ficar parados para receber uma ducha constante. Parece até um lava-a-jato! As janelas ficam abertas propositadamente: todo o interior do carro fica encharcado! Quanto mais água, melhor. Algumas camionetas transportam um barril de 200 litros de água na traseira para que os passageiros possam também regar os que estão na arquibancada. Portanto, de carro ou no estande, o objetivo é molhar e ser molhado!

Consigo contornar a área de combate e subir em um estande. Na maioria das arquibancadas, um sistema de chuveirinho assegura que os foliões não fiquem secos. Explico que sou fotógrafo e peço que, por favor, ninguém tenha a idéia de apontar uma mangueira em minha direção. A visão de cima, ao lado da equipe de “ataque”, é bem mais interessante. Todos, absolutamente todos – embaixo levando água ou no palanque molhando os transeuntes – estão felizes. As gargalhadas multiplicam- se, enquanto centenas de litros por segundo são despejados nas cabeças dos passantes.

No sentido horário, a água acumulada no final da Inya Road serve de piscina para as crianças; em Sagaing, uma jovem guerreira, mangueira em punho, molha a multidão de Inya Road; em Amarapura, perto de Mandalay, as pessoas celebram o Ano-Novo tomando banho no lago Thaungthaman.

RESOLVO IR a Inya Road, o point da moçada. O taxista avisa que é impossível chegar de carro até o local. Ele me larga a quase um quilômetro e o jeito é caminhar. O movimento de gente aumenta, todos fluindo na mesma direção. Para os camelôs – os únicos que parecem estar trabalhando – essa massa de gente significa uma boa oportunidade para vender bebidas e comidas.

Para participar em uma arquibancada do Thingyan, a festa do Ano-Novo, a entrada diária custa de US$ 15 a US$ 20. Para os quatro dias, o crachá plastificado pode valer US$ 50. Considerando que uma grande parte da população de Mianmar não ganha esse valor como salário mensal, essa brincadeira nos estandes, mesmo com direito a som e comida, está reservada aos capitalinos de classe média. Alguns estudantes economizaram seus parcos dólares durante o ano todo para poder participar do evento em algum dos 300 estandes da capital.

Um dos sucessos de Inya Road é sua localização ao lado de um lago e de uma área verde. Por isso, foram montados no local cerca de 30 arquibancadas, cada uma com seu sistema próprio de som e de água. Esta é bombeada do lago e chega, com pressão total, em mangueiras tão grossas como as dos bombeiros. À medida que me aproximo da confluência com Inya Road, o som frenético do hip-hop aumenta.

Mianmar, antiga Birmânia, é um dos 222 países e territórios do Teste de Viajologia Mundial

O ritmo alucinante não deixa ninguém parado. A avenida toda dança e pula! São apenas 10 horas da manhã, mas garrafas de cerveja e de uísque passam de mão em mão. Aqui não é o ambiente controlado e organizado dos estandes do centro da cidade ou no bairro do hotel. Começo a entender que, em Inya Road, vale tudo!

Como Inya Road está em declive, a água de todos os esguichos escorre em uma única direção. No final da rua, encontro um riacho: tem até correnteza! As crianças aproveitam para tomar banho, como se estivessem dentro de um caudaloso rio. Fico abismado com a quantidade de água que é desperdiçada. São milhares de litros por minuto. Em todo o país, milhões. Talvez bilhões de litros!

COMO CONSERVACIONISTA, tento fazer rápidos cálculos da quantidade de água que corre pelas ruas. Mas sou interrompido por gritos da criançada que pede para ser fotografada. Todos estão contentes e o importante é celebrar o Ano-Novo. Em última instância – pensando com certa condescendência ambiental – esse turbilhão de água vai acabar no mesmo lago de onde saiu.

Para um povo que vive reprimido por um duro regime militar, esse feriadão de Thingyan representa uma pausa refrescante na busca sofrida de seu ganha-pão cotidiano. Ninguém quer falar de política. As pessoas preferem esquecer os duros meses que passaram e deixar que a água lave todas as frustrações, trazendo um Feliz Ano 1370!

Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista. Em abril, o fundador do Clube de Viajologia visitou Mianmar, seu 138º país.