Nas manhãs de névoa intensa, a cidade medieval, no alto da colina, emerge das nuvens parecendo suspensa no céu. Por isso o nome, Cordes-sur- Ciel (Cordes no céu), uma raridade escondida na região de Tarn, no sul da França, a 93 quilômetros de Toulouse, cercada por muralhas concêntricas que protegem ruas estreitas e sinuosas dignas de um labirinto. 

Nos anos 50, o escritor existencialista Albert Camus esteve lá e escreveu: “O viajante que, a partir dos terraços de Cordes, olha para o céu em noite de verão, sabe que precisa viajar mais longe, porque a beleza aqui, dia após dia, irá remover qualquer solidão”. Em Cordes, segundo Camus, “tudo é belo, mesmo a tristeza” 

No século XII havia mais medo do que tristeza. A cidade de apenas 1.011 habitantes tem 8,27 quilômetros quadrados de área. Foi erguida entre 1222 e 1229 pelo conde Raimundo VII de Toulouse, no lugar da vila de Saint-Marcel, destruída na guerra contra a heresia dos cátaros por Simon de Monfort. Cordes foi a primeira e mais importante das bastides (cidades-fortaleza), fundadas para acolher os refugiados das guerras religiosas medievais e apoiar a reconstrução do território. 

Excomungada pelo papa, mas perdoada anos depois, a cidade murada cresceu graças à indústria têxtil e de couros, ao comércio e às finanças. São desse período seus portões portentosos, a praça do mercado, as ruas de pedras arredondadas e as casas góticas com fachadas esculpidas. 

O conjunto arquitetônico preservou uma cidade intacta, construída por nobres e de comerciantes ricos, palco de lendas e mistérios. Nas esculturas em alto relevo que adornam as fachadas e os muros, imagens de dragões, animais e personagens míticos e estranhos transmitem mensagens ainda desconhecidas. 

Um enigmático poço do mercado, escavado na rocha, com 113 metros de profundidade, intriga a população e os estudiosos até hoje. Emparedado na Casa Prunet, que abriga o atual Museu de Açúcar, encontrou-se um manuscrito raro do século XIII, A Sorte dos Apóstolos, uma recopilação de oráculos em língua occitana, a língua românica prima do catalão, também conhecida como langue d’oc ou provençal, ainda falada no sul da França.

Queda e ascensão

A peste negra, a Guerra dos Cem Anos (1337-1453) e novas guerras religiosas levaram Cordes ao declínio. No fim no século XVII, havia apenas 2.500 habitantes. Mas a cidade experimentou dois renascimentos. Um econômico, com a indústria de bordados à máquina, que durou até a Primeira Guerra Mundial, e outro cultural. 

Durante a guerra mundial de 1914-1918, enquanto os homens estavam no combate as mulheres  produziram milhares de cartõespostais bordados de seda, que eram enviados a Paris e depois vendidos a soldados aliados, que os enviavam para suas famílias espalhadas pelo mundo. Na década de 1960, os últimos trabalhos das bordadeiras de Cordes foram os famosos crocodilos da marca Lacoste.

Já o renascimento artístico e cultural aconteceu em 1940 quando o pintor figurativista francês Yves Brayer (1907-1990) e um grupo de artistas passaram a viver na cidade, atraídos pela luz do sul da França e pelo clama favorável à inspiração e criatividade. Desde então Cordes é o lar de pintores, artesãos, ceramistas, joalheiros, abrigando exposições regulares e ruelas cheias de ateliês, museus e oficinas. 

Nos frontões de algumas casas também são vistas efígies com as emblemáticas conchas de vieira, que marcam a passagem de peregrinos a caminho de Santiago de Compostela. A presença e devoção ao apóstolo São Tiago em Cordes-sur-Ciel começou no início do século XIV e ainda continua.

No verão, a cidade nas nuvens vira palco de festas como o festival do Grand Fauconnier, em julho, que surgiu em 1971 para comemorar seus 750 anos. Ao som dos cascos de cavalos sobre as pedras, misturado com tambores, gaitas de fole, alaúdes, harpas e oboés, os habitantes, vestidos com roupas da época, recriam a vida na Idade Média nas ruas – sem a afl ição das guerras religiosas.

Viagem linguística

Até hoje se fala o occitano em Cordes, uma das primeiras línguas neolatinas, famosa pela “poesia provençal”. Para a escritora portuguesa Carmen Alén Garabato, autora de Quem fala a minha língua? (Editora Através, Portugal), a decadência do occitano ocorreu depois da cruzada contra os cátaros (ou albigenses), quando os nobres do sul (falantes de occitano) perderam o poder para os nobres normandos do norte (falantes de francês). A partir daí, o francês instalou-se entre as classes altas, na administração e na literatura. 

A Revolução Francesa, e principalmente a posterior Lei Ferry, de 1801, que instituiu a escolarização obrigatória, aceleraram a substituição no linguajar comum. “O francês tornou-se a língua da  evolução, da liberdade, da modernidade, frente às que representam o antigo regime, o feudalismo, o atraso. A transmissão geracional da língua provençal rompeu-se de vez no início do século XX”, diz a escritora. 

A globalização compromete a sobrevivência do occitano, reconhece o músico pernambucano Silvério Pessoa, que desde 2003 acompanha a movimentação cultural na região. Em Cordes, Silvério encontrou o grupo La Talvera, com quem desenvolve um trabalho a partir da música e das danças nativas. “Os occitanistas buscam se fortalecer por meio de festivais de música, cinema, culinária, associações de literatura, e insistem em continuar falando o occitano, mesmo tendo o francês como língua oficial, mais o alemão, o Acima, torre construída em 1225 e a vista aérea da cidade. inglês e o espanhol oferecidos nos currículos escolares”. 

No álbum Collectiu-Encontros Occitans (2011), o brasileiro cruzou afinidades musicais occitanas e raízes nordestinas portuguesas, tocando o ritmo forrozeiro com instrumentos occitanos e cantando em português e em francês. “O acordeom diatônico, por exemplo, é primo-irmão da sanfona de oito baixos, assim como o pifre occitano e o pífano brasileiro também têm certa semelhança“, explica Silvério. Muitas reminiscências provençais viajaram até a América e infl uenciando o Brasil. Que o diga a Banda de Pífanos de Caruaru.