Lagartos e cobras são um componente-chave da maioria dos ecossistemas terrestres da Terra hoje. Junto com o carismático tuatara da Nova Zelândia (um “fóssil vivo” representado por uma única espécie viva), escamados (todos os lagartos e cobras) compõem a Lepidosauria – o maior grupo de vertebrados terrestres do planeta hoje, com aproximadamente 11 mil espécies, e de longe o maior grupo moderno de répteis.

Tanto os escamados quanto os tuataras têm uma história evolutiva extremamente longa. Suas linhagens são mais antigas do que os dinossauros. Eles se originaram e divergiram uns dos outros em algum ponto cerca de 260 milhões de anos atrás. No entanto, a fase inicial da evolução do lepidossauro, 260-150 milhões de anos atrás, é marcada por fósseis bastante fragmentados que não fornecem muitos dados úteis para entender sua evolução inicial. Isso deixou as origens desse vasto e diverso grupo de animais envoltas em mistério por décadas.

Em um estudo publicado na revista Nature, uma equipe internacional de pesquisadores descreve uma nova espécie que representa o membro mais primitivo dos lepidossauros, Taytalura alcoberi. A espécie foi encontrada nos depósitos do Triássico Superior da Argentina. Descoberto pelo autor principal, dr. Ricardo N. Martínez, da Universidade Nacional de San Juan (Argentina), e curador do Instituto y Museo de Ciencias Naturales, Taytalura é o primeiro fóssil de lepidossauro preservado tridimensionalmente. Isso permitiu aos cientistas inferir com grande confiança sua localização na árvore evolucionária dos répteis e ajuda a fechar a lacuna de nosso conhecimento sobre a origem e evolução inicial dos lepidossauros.

Mais primitivo que um lagarto verdadeiro

Martínez e o coautor dr. Sebastián Apesteguía, da Universidade Maimônides de Buenos Aires (Argentina), realizaram tomografias computadorizadas de alta resolução de Taytalura que forneceram a confirmação de que era algo relacionado a lagartos antigos. Eles então contataram o coautor dr. Tiago R. Simões, pós-doutorando no Departamento de Biologia Organísmica e Evolutiva da Universidade Harvard (EUA), para ajudar na identificação e análise do fóssil. Simões especializou-se no estudo destas criaturas e em 2018 publicou o maior conjunto de dados existente para compreender a evolução dos principais grupos de répteis (vivos e extintos) na natureza.

“Eu conhecia a idade e a localização do fóssil e podia dizer, examinando algumas das suas características externas, que estava intimamente relacionado com os lagartos, mas parecia mais primitivo do que um lagarto verdadeiro e isso é algo muito especial”, disse Simões.

Os pesquisadores então contataram a coautora drª Gabriela Sobral, do Departamento de Paleontologia do Staatliches Museum für Naturkunde de Stuttgart (Alemanha), para processar os dados de tomografia computadorizada. Sobral, especialista em processamento de dados de tomografia computadorizada, criou um mosaico de cores para cada osso do crânio, permitindo que a equipe entendesse a anatomia do fóssil em alta resolução de detalhes em uma escala de apenas alguns micrômetros – aproximadamente a mesma espessura de um fio de cabelo humano.

Com os dados de Sobral, Simões conseguiu aplicar uma análise evolutiva bayesiana para determinar a localização adequada do fóssil no conjunto de dados do réptil. Simões aplicou recentemente o método bayesiano – que foi adaptado de métodos originariamente desenvolvidos em epidemiologia para estudar a evolução de vírus como o da covid-19 – para estimar com precisão o tempo e as taxas de evolução anatômica durante o surgimento dos tetrápodes. A análise estatística confirmou suas suspeitas de que Taytalura era de fato o membro mais primitivo da linhagem que eventualmente originou todos os lagartos e cobras. “Não é nem mesmo um lagarto na árvore evolucionária”, disse Simões, “mas é a próxima coisa lá, entre lagartos verdadeiros e tuataras, e todos os outros répteis.”

Fóssil mais completo

“Esse fóssil lindamente preservado em 3D é realmente um achado importante. É o fóssil mais completo que representa os primeiros estágios da evolução do lepidossauro que temos até agora. Todos os outros fósseis conhecidos são muito incompletos, o que torna difícil classificá-los com certeza, mas a natureza completa e articulada de Taytalura torna suas relações muito mais seguras”, disse Sobral.

Simões concordou: “Taytalura é um ponto importante na árvore da vida dos répteis que antes faltava. Como esses fósseis são tão pequenos, eles são muito difíceis de preservar no registro fóssil. E os fósseis candidatos que temos são muito fragmentados e mal preservados, portanto, não fornecem tantos dados úteis para análise”.

O crânio de Taytalura revela que os primeiros lepidossauros pareciam substancialmente mais com os tuataras do que com os escamados. Portanto, os escamatos representam um grande desvio desse padrão ancestral. Além disso, Taytalura tem uma dentição única, diferente dos dentes encontrados em qualquer grupo vivo ou extinto de lepidossauros. “O que nossas análises nos dizem, além de alguns outros traços anatômicos que pudemos ver nele, especificamente no crânio, é que esse tipo de corpo esfenodôntico, pelo menos para o crânio, é o padrão ancestral dos lepidossauros. O padrão ancestral parece ser mais parecido com os tuataras”, disse Simões.

Taytalura preserva uma composição de características que não esperávamos encontrar em um fóssil tão antigo. Por exemplo, ele mostra alguns recursos que pensamos serem exclusivos do grupo tuatara. Por outro lado, fez-nos questionar o quão verdadeiramente ‘primitivas’ são certas características dos lagartos, e fará com que os cientistas reconsiderem vários pontos da evolução deste grupo”, disse Sobral.

Extraordinária qualidade de preservação

“O crânio de Taytalura quase perfeitamente preservado nos mostra detalhes de como um grupo de animais muito bem-sucedido, incluindo mais de 10 mil espécies de cobras, lagartos e tuataras, se originou”, disse Martínez. “Mas também destaca a importância paleontológica do sítio a Formação Ischigualasto, conhecido por preservar alguns dos dinossauros mais primitivos conhecidos no mundo. A extraordinária qualidade de preservação dos fósseis nesse local permitiu que algo tão frágil e minúsculo como esse espécime fosse preservado por 231 milhões de anos.”

“Ao contrário de quase todos os fósseis de lepidossauros do Triássico encontrados na Europa, este é o primeiro lepidossauro primitivo encontrado na América do Sul, sugerindo que os lepidossauros foram capazes de migrar por regiões geográficas muito distantes no início de sua história evolutiva”, concordou Simões.

“Estamos acostumados a aceitar que o Mesozoico foi uma era de répteis gigantes, enormes protomamíferos e árvores enormes e, portanto, comumente procuramos fósseis que são visíveis na altura humana, apenas andando”, disse Apesteguía. “No entanto, a maior parte dos componentes do antigo ecossistema era pequena, como hoje. Havia um universo de fauna se esgueirando entre patas maiores, com garras ou cascos. Taytalura nos ensina que estávamos perdendo informações importantes ao procurar não apenas animais maiores, mas também pensar que a origem dos lagartos ocorreu apenas no hemisfério norte, como as evidências pareciam apoiar até agora.”

Embora Taytalura seja primitivo, não é o lepidossauro mais antigo. O fóssil tem 231 milhões de anos, mas também existem fósseis de lagartos verdadeiros de 11 milhões de anos antes. A equipe planeja explorar locais mais antigos na esperança de encontrar espécies semelhantes ou diferentes da mesma linhagem que se ramificaram pouco antes da origem dos verdadeiros lagartos.