Pesquisa com participação do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP identificou os efeitos de fragmentos do vírus da covid-19 presentes em águas residuárias na vida silvestre. Por meio de testes com animais, os pesquisadores verificaram que proteínas do vírus estimulam a produção de radicais livres, substâncias que causam danos às células do corpo, e também induzem a alterações no sistema nervoso. O trabalho foi feito por uma equipe liderada pelos pesquisadores Ives Charlie da Silva, pós-doutorando do ICB, e Guilherme Malafaia, do Instituto Federal (IF) goiano, em Urutaí (Goiás).

Os resultados do estudo são apresentados em um preprint (versão prévia de artigo científico ainda sem revisão de pares) publicado no site bioRxiv em 13 de janeiro. O estudo avaliou se a presença de partículas virais nas águas poderia afetar a vida silvestre, utilizando como modelo experimental girinos da espécie Physalaemus cuvieri. “Tal espécie é conhecida popularmente como rã-cachorro e pode ser encontrada em biomas de diferentes países da América do Sul, como Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Venezuela e, possivelmente, Bolívia e Guiana”, diz Malafaia.

Outros modos de transmissão

A intenção foi simular uma possível contaminação dos ecossistemas aquáticos, onde os girinos vivem, por águas residuárias contendo partículas do novo coronavírus. “Os humanos infectados liberam tais partículas junto das fezes e urina e, portanto, esgotos domésticos e hospitalares podem ser uma fonte de contaminação”, descreve Malafaia.

De acordo com o primeiro autor do trabalho, Ives Charlie da Silva, a forma clássica de transmissão do vírus SARS-CoV-2 é pelo ar e via contato com pessoas infectadas. No entanto, outros modos de transmissão têm sido investigados, devido à persistência do vírus no ambiente por algumas horas ou dias. “Uma dessas formas tem sido apontada por diferentes estudos que relatam a presença do SARS-CoV-2 em esgotos domésticos, oriundo especialmente de urinas e fezes de pessoas infectadas.”

Os girinos foram expostos a pequenas partes (peptídeos) de uma proteína do vírus SARS-CoV-2. “Essa proteína é chamada de spike e o vírus a utiliza para penetrar nas células humanas”, observa o pesquisador do ICB. “Em laboratório, nosso grupo sintetizou fragmentos dessa proteína, denominadas PSPD-2001, PSPD-2002 e PSPD-2003, e as adicionou na água onde os girinos estavam.” Essa parte do estudo foi feita em parceria com o professor Eduardo Cilli, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – campus de Araraquara.

Em laboratório, pesquisadores sintetizaram fragmentos da proteína spike (que o vírus usa para penetrar nas células) denominadas PSPD-2001; PSPD-2002 e PSPD-2003, e as adicionou na água onde os girinos estavam. Crédito: ilustração cedida pelo pesquisador
Alterações fisiológicas

A pesquisa observou que o contato dos girinos com os fragmentos proteicos, também denominados peptídeos, por apenas 24 horas, foi suficiente para induzir alterações fisiológicas. “Os girinos expostos aos peptídeos aumentaram a produção de moléculas chamadas radicais livres. Essas moléculas podem causar danos diversos nas células dos animais”, destaca o pesquisador do ICB. “Normalmente, nosso organismo produz substâncias, chamadas antioxidantes, para combater esses radicais. Mas o sistema antioxidante dos girinos não foi suficiente para combater o aumento da produção de radicais livres.”

“Sabe-se que as consequências biológicas do aumento da produção dessas substâncias podem ser variadas, incluindo até danos no DNA. Nesse caso, novos estudos devem ser conduzidos. De todo modo, isso é um indicativo de estresse oxidativo causado pelos peptídeos do SARS-CoV-2”, ressalta Silva. “Em humanos já é conhecido que esse processo é induzido pelo novo coronavírus, mas em animais silvestres isso nunca tinha sido relatado.”

Além disso, foi verificado que os peptídeos afetaram a atividade de uma enzima muito importante para a transmissão de impulsos nervosos, chamada acetilcolinesterase.  “A diminuição dessa enzima pode danificar seriamente o funcionamento do sistema nervoso dos animais, o que também ocasiona danos variados”, aponta o pesquisador do ICB. “Nossos dados também evidenciaram que esses peptídeos podem se ligar a essa enzima e induzir alterações nas suas funções, o que provavelmente explica os resultados obtidos.”

Análises bioquímicas

Todas essas alterações foram observadas por meio de análises bioquímicas, em que reagentes químicos específicos foram utilizados. “Já a provável ligação dos peptídeos com as enzimas estudadas foi observada por meio de técnicas ligadas à bioinformática, considerada um campo interdisciplinar que corresponde à aplicação das técnicas da informática, no sentido de análise da informação, nas áreas de estudo da biologia”, conclui Silva.

O estudo é descrito no preprint An insight into neurotoxic and toxicity of spike fragments SARS-CoV-2 by exposure environment: A threat to aquatic health?, publicado no site bioRxiv em 13 de janeiro. O trabalho contou com pesquisadores de instituições de vários estados do Brasil. Incluiu também pesquisadores do Departamento de Neurologia da Harvard Medical School (Estados Unidos) e da Nord University (Noruega).

 

Mais informações: e-mail charliesilva4@hotmail.com, com Ives Charlie da Silva