A lenda é bem conhecida: num dia de sol de 1962, um jovem compositor e um poeta conversam e tomam cerveja num bar próximo à praia, no bairro de Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro. Entre as beldades que passam pela calçada, chama em especial a atenção da dupla uma moça de 17 anos, olhos verdes, cabeleira esvoaçante.

Lendas servem para fazer a história mais suculenta, dar-lhe impacto, tornar ainda mais excepcional o que já é notável. Por isso, basta Arquimedes entrar no banho e logo já sai gritando “Eureka!”. Por isso se gosta de pensar que Beethoven escreveu toda sua Sinfonia Pastoral em meio à natureza, passeando pelos bosques de Viena – sem atentar para a necessidade de concentração, material para escrita, um piano, e outras bagatelas.

Da mesma forma, reza o mito que Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes compuseram a canção “Garota de Ipanema” ali mesmo, em pleno Bar Veloso, às vistas de sua jovem musa inspiradora.

Mas a pesquisa revela outros fatos: a dupla de criadores já observara Heloísa Pinto (futura Helô Pinheiro) repetidas vezes, a caminho da escola, da costureira, até do dentista. E não era do estilo dos dois escrever música à mesa do bar – embora sabidamente lá passassem as melhores horas do dia. Tom compôs ao piano de casa, ali mesmo em Ipanema, enquanto Vinícius escreveu seus versos na serra, em Petrópolis.

Arrancada com Getz/Gilberto

Seja como for, naquele ano nascia um dos maiores sucessos de todos os tempos, não só da bossa nova – estilo musical emergente no Brasil – como da música popular internacional. Consta que a revelação ao público se deu em 2 de agosto de 1962, no restaurante Bon Gourmet, no bairro vizinho de Copacabana. No mesmo ano, o cantor Pery Ribeiro lançava a primeira gravação.

Porém, a triunfal campanha internacional da Garota de Ipanema só começou, de verdade, com sua inclusão no álbum Getz/Gilberto, de 1964, da gravadora de jazz Verve. O LP reunia três brasileiros – o cantor e genial violonista João Gilberto; sua esposa Astrud Gilberto, vocalista de estilo ultra cool e afinação duvidosa; o piano minimalista de Tom Jobim – e um americano, o saxofonista Stan Getz, devidamente iniciado nos mistérios rítmicos da bossa nova.

O álbum conquistou de pronto os Estados Unidos, abocanhando vários prêmios Grammy, o Oscar da música. A canção principal, naturalizada “The girl from Ipanema”, alcançou o quinto lugar na parada de sucessos dos EUA e o 29º na Inglaterra, além de colocações semelhantes em diversas partes do mundo.

“Bossa” fora do compasso

Desde meados da década de 50, no Rio de Janeiro, um grupo de jovens músicos e intelectuais, a maioria da classe média-alta local, vinha desenvolvendo a chamada “bossa nova”. Costuma-se descrever esse gênero musical como um feliz encontro entre o samba e o cool jazz. Mas note-se que o próprio Antônio Carlos Jobim rejeitava essa definição – assim como o termo “jazz samba” –, preferindo atribuir à “bossa” uma origem 100% brasileira.

O texto de “Garota de Ipanema” é despretensioso, frívolo até, coisa que, no início de 1960, representava uma pequena revolução. Enquanto boa parte da canção popular brasileira das décadas anteriores se deleitava no sofrimento e no patético – “O meu primeiro amor morreu como a flor ainda em botão, deixando espinhos que dilaceram meu coração…” –, o poeta-diplomata Vinicius de Moraes falava de sol, mar, corpos dourados, rebolado, um toque de dor de cotovelo – e basta.

Pois até mesmo na parte mais melancólica da canção ele supera sem grandes dramas a indiferença da bela carioca: “Ah, se ela soubesse que quando ela passa, o mundo sorrindo se enche de graça, e fica mais lindo por causa do amor”. A versão norte-americana, de Norman Gimbel, manteve o tom singelo, americanizando-o com alusões ao samba e exclamações boquiabertas: “Aaaah…”.

A melodia é relativamente simples, baseada na variação de uns poucos motivos musicais, só se expandindo na romântica seção central (“Ah, por que estou tão sozinho…”). Furtivos elementos de blues aparecem no acompanhamento original de Jobim ao piano. Há quem diria: genialmente simples.

Grande parte do fascínio e novidade para os ouvintes de 1960 vinha do ritmo, da “bossa nova”. Na gravação de Gilberto-Jobim, em vez de seguir um esquema previsível, “quadrado”, os acordes emprestados do jazz dançam “fora de hora”, assimétricos – “sincopados” é o termo técnico –, e a linha melódica como que paira acima do acompanhamento.

Garota do mundo inteiro

Em diversas línguas (inclusive alemão, finlandês, islandês, tcheco) ou instrumental, oficialmente a canção já foi gravada e regravada mais de 420 vezes, 40 delas apenas entre 1963 e 1965. Os intérpretes vão desde o próprio Tom Jobim e praticamente todas/os as/os cantoras/es e instrumentistas populares brasileiras/os, até Frank Sinatra, Nat King Cole, Louis Armstrong, Stevie Wonder, Cher, Nana Mouskouri (em francês), Caterina Valente (em italiano), Andrea Bocelli (em espanhol) ou o flautista clássico James Galway.

A certo ponto, em princípio para resolver um problema gramatical na versão americana, a Girl deu origem a “The boy from Ipanema”, e é por essa versão que optam Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, The Supremes, até Petula Clark em pleno Muppet Show.

E, como quase nada é sagrado, cabe lembrar a paródia gay de Stephen Sondheim, já em 1966, “The boy from…”; a sátira do polivalente artista alemão Helge Schneider, “Die Frau aus Castrop-Rauxel”; ou “The girl with emphysema”, do comediante americano Bob Rivers, fumante inveterada, grandes dentes amarelos, tossindo um pulmão.

O peso da popular-idade

Sucesso global, premiada, adulada, ela é a canção brasileira mais gravada da história. Porém, na trajetória de hit internacional, a Girl, Fille, Ragazza, Chica, Tyttö também perdeu um tanto de sua sutileza musical. Ao ponto de se tornar lugar-comum nas trilhas sonoras de Hollywood, diluída e inócua, geralmente em segundo plano, simplificada e degradada a muzak, música de shopping-mall.

O que aconteceu, nestes 60 anos? Será que ao dar o salto da praia para a Billboard e mais além, o que era jovem e revolucionário se tornou conservador, eternamente middle aged, kitsch? O evergreen continua sendo repetido, sem piedade. Será que, depois de ser massacrada por Madonna, a banda metal Sepultura, Mike Tyson e outros, “The girl from Ipanema” sobrevive, “linda, cheia de graça”?

Inegável é que o hit da bossa nova guarda um mistério que segue intrigando especialistas, tornando-a até objeto de trabalhos acadêmicos. Manifestação recente dessa longevidade é a detalhada análise musical do youtuber Adam Neely, de 2020, já clicada quase 3,6 milhões de vezes. Num ambicioso voo musicológico, ele dedica 33 minutos a dissecar ritmo, melodia e harmonias e provar que a “Garota” “é muito mais weird [estranha, excêntrica, bizarra] do que você pensava”.

“Bizarra” pode ser exagero. Mas há indícios, sim, de que a “Girl” reage à respiração boca a boca. Em 2002, Amy Winehouse a gravou, a meio caminho entre culto e sátira, como fita-demo que só seria lançada comercialmente nove anos mais tarde, no álbum póstumo Lioness.

Ritmo displicentemente chacoalhado contrastando com background vocals e cordas, a Queen of Soul inglesa trata letra e melodia com uma irreverência que, inesperadamente, faz lembrar a debochada versão bilíngue de Elis Regina no Montreux Jazz Festival de 1979. Duas bad girls da música unem forças através das décadas para tirar do sério uma eterna boa garota.