UNESCO/PLANETA

Patrimônio Científico

Os mantos de gelo de gigantes do Sistema Solar como Urano e Netuno são, paradoxalmente, identificados como tais, pois a densa mistura de água, metano e amônia dentro de um planeta pode gerar temperaturas de até 4.700°C e pressões de até 600 gigapascals (a unidade de medida de pressão usada em barômetros). Sob um calor de 1.500°C e uma pressão de 5 gigapascals, o grafite pode virar diamante. Por isso não surpreende que, nos mantos de Netuno e Urano, moléculas como a água e o metano ajam de modo diferente do que na superfície da Terra. Com calor e pressão suficientes, elas viram condutoras e passam a afetar o ambiente dos planetas, incluindo seus campos magnéticos.

Compreender os campos magnéticos desses planetas distantes exige estudar como os componentes desses mantos de gelo interagem sob vários parâmetros, já que a recriação de tais condições na Terra é impossível hoje. Embora a temperatura no centro da Terra (cerca de 4.000°C) seja semelhante à desses planetas longínquos, os níveis de pressão em Urano e Netuno são muito mais altos. “A pressão no centro da Terra é de 360 gigapascals”, cerca de 60% da pressão dentro dos mantos dos gigantes de gelo, afirma Sandro Scandolo, pesquisador do Centro Internacional Abdus Salam de Física Teórica da Unesco.

Cerca de 71% da superfície da Terra é coberta por água em estado líquido, inexistente no seu satélite, a Lua.

Segundo Scandolo, ainda vai demorar anos para aparecer a tecnologia capaz de simular os ambientes extremos dos gigantes de gelo. Até lá, quem quiser saber que tipos de reações químicas ocorrem dentro deles dependerá de modelos baseados em mecânica quântica e estatística. Como os modelos teóricos também têm limitações, os cálculos lidam apenas com uma substância química de cada vez. Um modelo sobre o comportamento da água e do metano em condições extremas não revelará muito sobre as interações entre os compostos. Por isso, Scandolo assumiu o desafio de simular a mistura dos dois.

Na Terra o metano é hidrófobo, o que significa que não se mistura com a água, tal como o óleo. Antigos modelos do interior de Netuno consideram que os componentes do manto de gelo se comportam de modo independente um do outro. Os novos cálculos desafiam essa suposição, mostrando que o metano e a água de fato se misturam, o que perturba as reações químicas que cada uma dessas substâncias puras experimentaria sob alta temperatura e pressão. Essas descobertas podem gerar uma revisão total dos modelos de composição do interior dos planetas.

Com base em experiências feitas com substâncias puras, pensava-se que o interior de Urano e Netuno continha diamantes feitos a partir de metano. Isso porque, em altas temperaturas, o metano puro se decompõe nos seus átomos constituintes, carbono e hidrogênio. A alta pressão enentão espreme os átomos de carbono para formar um diamante. Com a água presente, porém, essas reações seriam impossíveis à medida que ela começasse a interagir com o metano, formando uma ligação sólida.

Além disso, os campos magnéticos dos planetas provavelmente se originam em uma profundidade muito mais rasa do que se pensava antes, pois a combinação de metano e água torna-se eletronicamente condutora sob condições mais brandas do que a água sozinha.

Ao revelar que o metano não é sempre hidrófobo, o estudo nos lembra que a maioria das suposições sobre as formas como substâncias químicas interagem se baseia em um conjunto específico e raro de circunstâncias: o ambiente da Terra. Sob condições diversas, as substâncias conhecidas poderiam assumir novas e surpreendentes características. Um conceito importante para a astrobiologia, para a busca por vida extraterrestre e para o estudo dos exoplanetas, os planetas além do Sistema Solar.

Netuno (à esquerda) é azulado por causa do metano na sua periferia. Já Urano (acima) tem hélio, hidrogênio, amônia, metano e água na atmosfera.

As lições tiradas do estudo das interações metano-água também são relevantes para ambientes menos extremos. A maior parte do metano da Terra está armazenada sob alta pressão, no fundo do oceano, em cristais sólidos de moléculas de água conhecidos como hidratos de gás. Esses depósitos podem um dia ser aproveitados como fonte de combustível. Nesse caso, entender melhor as interações água-metano sob altas pressões será vital para projetar um processo de extração.

As implicações científicas desses novos cálculos se espalham das profundezas do oceano às profundezas de um exoplaneta. E as filosóficas vão ainda mais longe. Da redução das emissões de carbono à obtenção de água potável, muitos de nossos desafios atuais dependem, em essência, de entender o comportamento diferente da química de compostos. Tratar essas substâncias como quebra- cabeças complexos e trabalhar com variáveis como temperatura e pressão para ajudar a compreender suas interações pode proporcionar respostas interessantes.

Jordan Calmes é pesquisador do Centro Internacional de Física Teórica e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.