A história das ameaças de extermínio dos povos indígenas, que na América Latina permeia o passado e segue de outras formas no presente, também pode ser contada com ajuda das ciências genômicas. As estimativas de um estudo genético inédito sugerem que houve um colapso populacional de indígenas desde o período da invasão europeia à América do Sul. A maior redução aconteceu entre os tupis (98,99%), seguida dos andinos (95,6%) e dos jês (83,1%). Os povos da costa do Oceano Pacífico (Chile, Peru, Equador e Colômbia) sofreram redução em torno de 60%.

O estudo se baseou em dados genômicos coletados de 383 nativos de 58 grupos diferentes que habitavam o Brasil (região amazônica, o sul do Brasil e costa brasileira) e outras regiões da América Latina (México, Bolívia, Colômbia, Equador e Peru – costa do Pacífico), contidos em um banco de dados produzidos pelos pesquisadores da USP e bancos públicos. Um artigo descrevendo a pesquisa, intitulado “Population Histories and Genomic Diversity of South American Natives”, foi publicado no periódico Oxford Academic Molecular Biology and Evolution no último dia 7. O primeiro autor é o biólogo e pesquisador Marcos Araújo Castro e Silva, orientando da professora Tábita Hunemeier, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, do Instituto de Biociências (IB) da USP.

Dizimação dos índios brasileiros

Analisando a herança genética que esses povos deixaram na população atual, é possível reconstruir a história demográfica dos nativos, diz Tábita. Segundo a pesquisadora, no decorrer do estudo da diversidade genética dos antepassados indígenas, os pesquisadores se surpreendiam com os números que iam sendo compilados com relação ao declínio populacional indígena no Brasil. A violência dos colonizadores, sobretudo na época das expedições bandeirantes, dizimou cerca de 99% dos indígenas da costa brasileira e 83% da região central do país, relata.

A sociedade indígena foi desestabilizada com a chegada dos europeus. Eles tinham um modo de vida que foi totalmente corrompido pelas expedições exploratórias. “Os bandeirantes eram homens extremamente rudes, violentos e ambiciosos. Há relatos de que, nas primeiras décadas do século 17, eles mataram ou escravizaram milhares de indígenas, assassinados em confrontos ou tornados vítimas das péssimas condições de vida, pela fome e pelas doenças inseridas na comunidade pelos colonizadores europeus”, diz ela.

Com relação à população amazônica, a pesquisadora relata que era bem numerosa. Há cerca de mil anos, somente os índios pertencentes ao tronco tupi (tamoios, guaranis, tupiniquins, tabajaras, entre outros) eram estimados entre 1 milhão e 5 milhões de pessoas. No Brasil, por volta do ano 1500, as estimativas baseadas em dados históricos eram de aproximadamente 3 milhões, sendo que um terço desses habitava a costa brasileira. Atualmente, o último censo demográfico brasileiro (2010) notificou um número de 800 mil indígenas em todo o território brasileiro, sobretudo na Amazônia. “Como o censo é de 2010, provavelmente esse número está bem abaixo, talvez próximo da metade”, lamenta a professora.

Nos períodos anteriores à colonização, por não haver relatos escritos, a história do Brasil só pode ser acessada por meio da arqueologia, de relatos etnográficos, da botânica e agora pela genética. “Todos esses conhecimentos integrados trazem uma visão mais completa do que aconteceu naquela época”, diz Tábita.

Demografia: ancestralidade genética

Castro explicou ao Jornal da USP como foi possível resgatar as informações demográficas do passado e trazê-las para o presente, ou seja, como usar a genética para estimar essa drástica redução populacional entre os indígenas na América do Sul. Segundo o pesquisador, “por meio do estudo dos dados genômicos de populações nativas contemporâneas é possível inferir a diversidade genética de seus ancestrais a cada geração no passado”, diz.

A metodologia da pesquisa consistiu na identificação de sequências idênticas do genoma entre indivíduos de uma mesma população, que são os chamados segmentos idênticos por descendência, ou seja, são idênticos por terem sido herdados de um ancestral comum. Tais segmentos idênticos aumentam em frequência na população em períodos nos quais o tamanho da população é pequeno (muitos indivíduos descendentes dos mesmos ancestrais), resultando em diminuição da diversidade genética da população, explica Castro.

Segundo Tábita, atualmente a variabilidade genética dos indígenas (que é uma fração da variabilidade genética do passado) tem sido muito pequena. Por meio do estudo dessa variabilidade genética atual é possível quantificar a diversidade genética de uma população em um determinado período, com base no número de sequências idênticas que foram formadas no passado.

Outro conceito importante para entender essa inferência, diz o pesquisador, é a recombinação genética, que é aleatória e reduz o comprimento dessas sequências idênticas entre indivíduos na população em um ritmo previsível ao longo das gerações. Desse modo, a partir do comprimento de um segmento idêntico por descendência, é possível deduzir quando ele foi formado no passado. Assim, de acordo com o número de segmentos idênticos por descendência em cada faixa de comprimento, é possível inferir qual seria o tamanho (número de indivíduos) da população no período em que aqueles segmentos foram formados, isso porque em populações menores espera-se que o número de segmentos idênticos formados seja maior e vice-versa.

Como exemplo, Castro explica que segmentos com comprimento de aproximadamente 8,4 cM (centimorgan é uma medida de distância genética) foram formados aproximadamente há 18 gerações (500 anos atrás considerando um tempo de geração de 28 anos), e portanto é possível inferir o tamanho da população nessa época de acordo com o número de segmentos idênticos por descendência com esse comprimento identificados na população, conclui.

Mais informações: hunemeier@gmail.com, com Tábita Hunemeier, e marcosaraujocastro@gmail.com, com Marcos Araújo Castro e Silva