No domingo de Pentecostes, os cavaleiros cristãos, de azul, desafiam os cavaleiros árabes, de vermelho, numa cruzada simbólica.

São quatro horas da madrugada e as explosões da “roqueira” acordam Pirenópolis, tranquila cidade goiana de 23 mil habitantes, 70 quilômetros a oeste de Brasília. O responsável pelo foguetório que anuncia a Festa do Divino é um senhor pacato, Luis do Louro, de 80 anos. A roqueira não deve seu nome ao ronco de estremecer, causado pela mistura da farinha de mandioca com pólvora socada dentro de um cano. O estrondo lembra, sim, explica Louro, o velho “canhão de roca”, usado como peça de artilharia pelo Exército de Portugal.

Descendente de escravos, Louro gosta tanto do seu ofício de foguista que acaba por gastar tudo o que ganha comprando roqueiras. De 13 a 25 de junho, 50 dias depois da Páscoa, há 192 anos mouros e cristãos pelejam nas Cavalhadas de Pirenópolis. A quizília é uma versão moderna dos mitos da Idade Média, em plena fornalha do cerrado goiano. Ali os festejos revivem a batalha do exército de Carlos Magno, o imperador cristão, contra os soldados árabes que invadiram a Península Ibérica. Daí também veio a referência geográfica que batizou a cidade e a serra que a envolve: os Pirineus (ou Pireneus), a cadeia montanhosa na fronteira da Espanha com Portugal.

Pirenópolis foi fundada por bandeirantes em 1727 com o nome de Arraial de Nossa Senhora do Rosário de Meia Ponte. Da onde vem esse nome? É que certo dia a correnteza do Rio das Almas carregou metade da ponte, deixando apenas a outra parte, que já não levava a canto nenhum. Ficou só o nome. Mas não foi por essa ponte que chegou o comendador Joaquim Alves de Oliveira, cujo nome ficou na história da cidade. Oliveira construiu a sede de uma fazenda com 350 portas e janelas, para que uma se abrisse a cada dia do ano, mais uma bela capela com afrescos, um engenho, e plantou algodão para vender para a Inglaterra.

O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que chegou ao Brasil em 1816 e passou pela região, registrou que nela viviam 120 escravos homens e 80 mulheres e crianças. Na fazenda de Oliveira não se castigavam os escravos com chibatadas, mas não por bondade: os negros vinham a pé, de Salvador ou do Rio de Janeiro. De 100 chegavam 50. As “peças”, como eram chamados, custavam caríssimo e, portanto, eram preservadas. Na época mediam-se as distâncias pelo tempo da jornada: a Bahia ficava a quatro meses e o Rio, a seis meses.

Joaquim Alves de Oliveira criou o primeiro jornal do Centro-Oeste, o Matutina Meiapontense. Mais tarde vendeu a fazenda para o padre Simeão Estelita Lopes Zedes, que em 1864 se mudou para lá com uma numerosa e ilegal família. “Nem padre aguentava a solidão naquele lugar onde Judas perdeu as botas”, afirma Telma Lopes Machado, bisneta de Zedes. Foi o pai de Telma quem batizou a fazenda de “Babilônia”, pela mistura arquitetônica, diversidade dos escravos e grandiosidade do edifício. Em 1964, quando passou pela cidade, o arquiteto Lúcio Costa encantou-se com a fazenda, uma das mais antigas de Goiás, e sugeriu o tombamento da sua “arquitetura primitiva e autêntica”.

Dona Telma ensina que a comida faz parte da história de Pirenópolis. “Minha avó me dizia que tudo se improvisava com a sabença das índias e negras. Os portugueses queriam conhecer o que os índios comiam, ‘pois deve ser muito bom, não vês como são fortes?’, diziam. Sabe o que era? Era farinha de mandioca socada com piranha seca, à moda dos índios, ou com carne de gado, como faziam as escravas.

Essa paçoca aturava meses e até hoje é a matula (comida) preferida dos tropeiros. Desde aquela época virou refeição dos soldados, batizada como ‘farinha de guerra’.” Outra especialidade da cidade, de sabor forte e muito aromática, é a “carne de redenho à moda da casa”. Redenho é uma película de gordura retirada do intestino do porco, que envolve uma mistura de carnes de porco e de vaca, temperadas com açafrão.

Havia também as quitandas, doçuras como pau a pique e mané pelado – variações do beiju indígena –, o biscoito quebrador, o cavaco de queijo, as brevidades, o virado de raspa e o bolo da senzala, assado em folha de bananeira. Agora se entende por que a Festa do Divino começa com um farto café da manhã servido na casa do Imperador, acompanhado por alfenins e verônicas, ambos docinhos de polvilho.

No domingo de Pentecostes, ao lado do mastro cuja altura ultrapassa a torre da igreja, depois da missa na Igreja Matriz e da coroação do Divino Espírito Santo, o Imperador fantasiado conduz a procissão. Os moradores acompanham levando crianças vestidas de anjo e meninas de branco até a Arena da Cavalhada.

Na arquibancada forrada de chitão colorido, sob um sol de rachar, todos aguardam ansiosos o começo dos combates. Infelizmente, enormes faixas do marketing político local ofuscam um pouco a beleza do cenário. Na arena, vindos pelo lado do poente, entram o rei cristão e 11 garbosos cavaleiros vestidos de azul.

Eles desafiam os 12 cavaleiros árabes que se aproximam pelo lado nascente e luzem ao sol com vistosas capas de veludo vermelho. Chamam a atenção a beleza, a criatividade dos bordados e os desenhos escolhidos para os mantos dos cavaleiros: cálices, pombas, hóstias, parreiras e cruzes, em tons prateados para os cristãos, e dragões, borboletas, arabescos, estrelas, luas, sóis, unicórnios, corações e aves douradas desenhadas nas capas vermelhas dos mouros. Os cavalos repetem o mesmo visual, com armaduras cravejadas de pedras, plumas e fitas.

Os embaixadores de ambos os exércitos galopam em desfile e, num bate-boca arcaico vindo da velha literatura medieval, tentam fazer o adversário mudar de crença. A primeira embaixada parte do mouro: “Diz ao Rei que deixe a lei de Cristo e abrace a lei do Mafoma. Se fizer isso, terá paz, honras e, sobretudo, a minha amizade. Mas, se esse partido não quiser abraçar, verá a terra tremer, os clarins romperem os ares, o bronze gemer, o sangue correr ao mar e o meu Mafoma vencer!” Ao que retruca o outro: “Retirai-vos desumano, antes que ao vosso peito fraudulento o coração arranque.”

Não dando certo o combate das palavras, segue-se o arrazoado dos reis, a escaramuça grande, a batalhinha e confrontos dos tornos de parelha, dos tornos de quatro e dos fios fechados. Nos intervalos das contendas explode um barulhento motim. Surge em cena um endiabrado tropel de cavaleiros mascarados vestidos de trapos, cobertos de capim, cipós e latas velhas, com caras de vampiro, caveira, lobisomem, capeta e onça.

Com grande estardalhaço arreliam os visitantes e se equilibram nos cavalos. Tinhosos e debochados, zombam até do padre e só a muito custo deixam o campo, depois dos rogos do “Pompeo de Pina”, o incansável coordenador dos festejos.

Há também mascarados faceiros, vestidos de cetim, com cara de boi e chifres recobertos de rosas de crepom. A origem desses personagens remonta à festa dos portugueses. As figuras bizarras eram uma forma de espantar o mal. Os cavalos são complementos, compondo uma cena que remete a centauros oníricos. Após dois dias de lutas encenadas e banzés de mascarados, soam as alvíssaras e os mouros, como há quase 200 anos consecutivos, se convertem à fé cristã.

A celebração do Espírito Santo é uma manifestação cultural-religiosa, mesclada aos cultos de matriz africana e às crenças indígenas, presente em várias regiões do Brasil. Destacam-se a Festa do Divino de Paraty, a Festa de São Luiz do Paraitinga, a de Alcântara e a de Florianópolis. Para a pintora paulistana Marina Macedo Soares, radicada em Pirenópolis, “pode-se ler a história do Brasil nessas festas”.

Por que, então, só a Festa do Divino de Pirenópolis recebeu do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o registro de patrimônio cultural? Segundo os folcloristas e o parecer de Claudia Vasques, coordenadora de registro do Iphan, a notoriedade pode ser atribuída ao grande número de rituais, personagens e componentes da festa goiana, como as encenações, as peças teatrais, as pastorinhas, a cavalhadinha das crianças, os cortejos, as novenas, as bandeiras, cantadas, o levantamento do mastro, a banda de couro, a coroa e o cetro.

“A festa é profundamente enraizada no cotidiano dos moradores de Pirenópolis. A cidade faz a festa e a festa faz a cidade”, explica Claudia. “Através dela se marca o tempo. Trata-se de um jeito próprio de viver e sentir o mundo onde não há um tempo antes nem depois da festa. Toda a comunidade encontra-se envolvida com os festejos e, acima de tudo, possui formas próprias de transmitir seus valores para as próximas gerações.”