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Os habitantes da Sardenha, ilha situada a oeste da península itálica, vivem num paraíso geológico e cultural, sabem disso e, como obedecem às regras da hospitalidade, têm prazer ao mostrar suas riquezas aos visitantes. Mas olhem lá: vejam tudo, fotografem, degustem a incrível cozinha e seus vinhos, comprem lembranças, aproveitem ao máximo e, depois, voltem para suas casas. Pois morar na Sardenha é privilégio dos sardos, e eles sabem zelar por isso.

Peppeto Pau, arqueólogo e erudito sardo que entrevistei em Oristano, no oeste da ilha, esclareceu logo a charada: “Não sou italiano nem de qualquer outro país europeu. Não sou africano nem do Oriente Próximo. Sou sardo”. Mas, para mostrar a outra face do seu povo, convidou-me para almoçar na casa dele, logo no primeiro encontro, e serviu um “carneiro de sete horas” – o tempo que ele permanece nadando num molho de especiarias da ilha cuja fórmula, secreta, passa de mãe para filho. Até hoje, quando me lembro daquele sabor, tenho vontade de rezar em ação de graças… Do vinho branco Vermentino que acompanhou o carneiro falamos depois.

Os verdadeiros sardos, sobretudo os mais velhinhos, ainda não contaminados pela cultura do celular e do fast food, nos olham com olhos cheios de curiosidade e de uma bondade fora do tempo. Mas neles brilha também uma ponta de desconfiança. Durante séculos, estrangeiros vieram pisar seu solo, oprimir e tirar partido dos sardos. Talvez, no inconsciente deles, os turistas atuais não sejam tão diferentes. De acordo com um provérbio sardo, “todos os que atravessaram o mar carregam o mal dentro de si”.

Ao longo das eras, a ilha assistiu à chegada de invasores e déspotas: gregos, fenícios, cartagineses, romanos, árabes, espanhóis e, por último, os agentes de turismo. Raras dessas invasões foram benéficas para o povo e a paisagem da Sardenha. Por isso, os sardos aprenderam a desconfiar das influências e das presenças estrangeiras. Como tudo no mundo é moeda de duas faces, essa desconfiança ajudou os habitantes da ilha a preservar com cuidado seus próprios costumes e tradições, inclusive o idioma.

Civilização nurágica

Foi Peppeto Pau quem me iniciou no mistério da Sardenha nurágica (de nurago, o monumento arquitetônico local mais característico). Nuragos são torres cônicas espalhadas pela ilha, sobretudo na região de Oristano e de Sassari. Eram erguidos com grandes blocos de pedra superpostos, e sua cobertura, em geral de forma ogival, é por vezes truncada para dar lugar a terraços.

Os nuragos eram ao mesmo tempo fortalezas e moradias amplas, no interior das quais se desenvolvia uma restrita (porém organizada e autônoma) vida social e familiar. A civilização nurágica, que os criou, floresceu na ilha por cerca de 1.300 anos – de 1800 a.C. até o fim do século 6 a.C. Arqueólogos já descobriram lá cerca de 7 mil nuragos, alguns em excelente estado de conservação.

Vistos a distância, sobre a planície ou as colinas semiáridas, os nuragos parecem grandes ventres saídos do corpo da terra. Cada um deles mede de 20 a 30 metros de altura. Eles têm em geral uma única entrada, uma fenda estreita e de fácil defesa. Por ela tem-se acesso ao interior, um labirinto tipo casa de formiga feito de corredores estreitos que interligam os vários aposentos, quartos, salões, cozinha e despensas. Existem dezenas de nuragos para se visitar. Os mais fascinantes e bem conservados são: Su Nuraxi, perto de Barumini; Santu Antine, perto de Torralba; Losa, próximo de Paulilatino; e Arrubiu, perto de Orroli.

A civilização nurágica produziu também templos subterrâneos dedicados ao culto das águas, como o Templo de Santa Cristina, perto de Paulilatino, e o de Santa Vitória, próximo de Serri, que ainda hoje são locais de peregrinação. Nos dias de festa, embora o culto oficial seja agora católico, tudo se passa como há 3 mil anos, com distribuição de vinho e comida, apresentações de canto e dança e deposição de ex-votos por graças recebidas.

Há também as “tumbas de gigantes”, enormes monumentos funerários de pedra esculpida que parecem feitos para abrigar corpos de gigantes. Ou as domus de janas, necrópoles subterrâneas ou escavadas na rocha das paredes de colinas e montanhas. Segundo a lenda, as janas são poderosas feiticeiras que ainda vivem nessas casas (domus), cujas paredes são decoradas com símbolos mágicos talhados em relevo: cabeças de bois e de outros animais, chifres, espirais e vários desenhos geométricos.

As cidades cartaginesas de Monte Sirai e Tharros ampliam o patrimônio arqueológico sardo. Tharros, aliás, é um perfeito exemplo de cidade púnica clássica, erguida sobre uma estreita e alta península, com um porto bem abrigado, apenas uma ligação com a terra (portanto, fácil de defender), águas pouco profundas e piscosas e férteis arredores.

Há ruínas romanas em toda parte, como os belíssimos mosaicos de Nuoro. A presença árabe é visível sobretudo na arquitetura de palácios e igrejas das cidades de Cagliari, Olbia e Porto Torres. Nas cidades da costa oeste, em especial Sassari, Alghero e Oristano, surge com maior evidência a herança cultural espanhola, em especial a catalã.

Qualquer momento é bom para visitar a ilha, exceto no inverno, frio e ventoso. Na primavera, a partir do fim de março, a atmosfera fica impregnada pelos odores das flores silvestres e das ervas de cheiro, como rosmarinho, mirto, alecrim e camomila. No outono há o espetáculo das folhas que pouco a pouco assumem todas as tonalidades do laranja, do marrom e do vermelho.

Simplicidade aparente

Ao contrário da maior parte das sofisticadas cozinhas italiana continental ou siciliana, cheias de molhos e temperos, a culinária sarda parece simples. Ela usa poucos elementos e em geral despreza combinações complicadas. Mas essa simplicidade é aparente. A comida sarda é muito requintada no capricho e no rigor da preparação dos pratos. Ela preserva os sabores naturais dos alimentos, tirando destes o maior proveito possível.

O porcellino di latte (“porquinho de leite”), por exemplo, é um leitão novinho, assado, servido inteiro e coberto apenas por um ramo de mirto. Parece um prato fácil. Mas esse leitão só se alimentou do leite da mãe, e assá-lo foi um trabalho de muitas horas, sempre na mesma temperatura.

Outro item aparentemente simples é a botarga, ovas de peixe secas ao sol usadas para condimentar massas e outros pratos. Rala-se a botarga, joga-se o pó obtido no azeite de oliva quente, tempera-se com meio dente de alho, um pedacinho de pimenta vermelha, e derrama-se a mistura sobre o spaghetti al dente. Nada demais, mas o sabor da boa botarga por vezes supera o do melhor caviar.

O mesmo pode ser dito dos vinhos da ilha. Os tintos são densos, fortes, adequados às carnes de caça que constituem a base da cozinha sarda: Campidano di Terralba, Cannonau, Carignano del Sulcis, Giro di Cagliari. Os brancos são leves e perfumados: Malvasia di Bosa, Moscato di Cagliari, Trebbiano di Arborea, Vermentino di Gallura.

Há também os queijos, como o famoso pecorino sardo, e o pão carasau, feito de finíssimas folhas superpostas. Por falar nisso, a Sardenha tem uma das maiores culinárias do mundo em matéria de pães salgados e doces. E dos doces da ilha, à base de amêndoas, nozes, avelãs, é preciso provar pelo menos o inesquecível torrone da região de Gennargentu.

Paraíso chique

No verão chega à Sardenha um tipo de turista que possui um único objeto de desejo: a Costa Esmeralda. Situada no nordeste da ilha, ela arrasa com seu charme: tem falésias de pedra branca esculpidas pela erosão, montanhas selvagens, 80 baías e enseadas e uma miríade de praias de areia fina e clara. Um dos mais atraentes paraísos mediterrâneos, esse litoral de 55 quilômetros de extensão foi “descoberto” nos anos 1950 pelo príncipe Karim Aga Khan, que ali estabeleceu um complexo de marinas, hotéis e residências de luxo. Para o turismo de classe média, foram criadas as cidades-balneário de Porto Cervo e Porto Rotondo.

Aga Khan dizia que a Costa Esmeralda foi feita para pessoas muito ricas e poderosas. Nas últimas décadas, porém, a pressão do turismo de massa foi mais forte e esse éden milionário teve de ceder. Hoje em dia, o estilo de vida que se observa ali é muito descontraído. O único “acessório” indispensável dos privilegiados é o barco, necessário para chegar às praias desertas das pequenas ilhas. Nas ruas de Porto Cervo e Porto Rotondo, a democracia é total: pode-se cruzar a qualquer momento com astros do cinema, reis, ídolos do esporte ou da crônica social.

A Costa Esmeralda integra a Gallura, região selvagem e pedregosa onde o azul impera – no mar, no céu, no ar e nas próprias rochas claras, ao refletirem a cor do ambiente. Ali fica Arzachena, onde estão as mais imponentes “tumbas de gigantes”. Pouco adiante chega-se a Santa Teresa di Gallura, no extremo norte da ilha, porto onde atracam os ferry boats que a ligam à Córsega. A oeste fica o Cabo Testa, com suas falésias altíssimas de bases perfuradas pela ação do mar.

Visitar a Sardenha só causa um problema: a saudade sentida quando se vai embora. Como disse o poeta sardo Marcello Serra, fica no coração o gosto “daquela poção mágica que se extrai dos descampados, do interior dos bosques, das alturas dos montes, do respiro dos abismos marinhos, e que passará a correr em tuas veias e te trará aquele langor doce e amargo de melancolia que, talvez, chamarás de mal da Sardenha”.

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Magia e fartura

Festa anual de origem espanhola realizada em Oristano, a Sartiglia acontece em duas etapas: a no último domingo antes da Quaresma e na Terça-Feira de Carnaval. São realizados cortejos em trajes típicos e competições de canto, poesia, dança e música instrumental. Mas a principal disputa é equestre: cavaleiros mascarados, vestidos com roupas medievais, montam cavalos finamente ornamentados. A galope, o cavaleiro deve capturar, com uma longa lança, uma estrela de metal suspensa por uma corda. Poderes mágicos são atribuídos aos vencedores, e diz-se que a fartura da próxima colheita depende do número de estrelas que cada competidor arrebata.