Metade dos xavantes das áreas indígenas Sangradouro e São Marcos (MS) apresentam obesidade.

Os xavantes se autodenominam A’wuê, A’wuê uptabi – “gente, gente verdadeira”. Fortes, troncudos, com os cabelos vermelhos pintados de urucum, têm uma fama de guerreiros que amedrontou os homens brancos desde as primeiras tentativas de contato, no século 18. Hoje, porém, estão submetidos. Não pela contaminação proposital por tuberculose ou sarampo, tiro ou envenenamento, como no passado, mas pelo açúcar, o arroz branco e os alimentos industrializados que alteraram decisivamente seus hábitos e os induzem à obesidade e ao diabetes, doenças da civilização ocidental.

O mais conhecido, o xavante Mário Juruna, morreu em 2002, aos 60 anos, depois de permanecer cinco anos em cadeira de rodas em decorrência de complicações crônicas do diabetes. Primeiro e único deputado federal indígena eleito do país (1983-1987), Juruna ficou conhecido nos anos 70 por andar com um gravador na mão registrando as promessas dos políticos no regime militar. Em 1980 representou os índios brasileiros no quarto Tribunal Bertrand Russell, na Holanda.

Entre os brasileiros, o diabetes está se tornando epidemia, incluída pela ONU na lista das doenças crônicas não transmissíveis. Entre os índios, geneticamente mais vulneráveis, está virando praga. Dos 935 xavantes acima de 18 anos dos territórios de Sangradouro e São Marcos, no leste de Mato Grosso, 33% das mulheres e 15% dos homens têm diabetes mellitus tipo 2 e 34,2% encontram-se pré-diabéticos. A obesidade, que favorece o aparecimento da doença, atinge 51,1% das mulheres e 46% dos homens. Somados aos que estão com sobrepeso, passam de 80%. Os dados são de um estudo realizado em 2010 e 2011 pelos professores João Paulo Botelho Vieira-Filho e Regina Moisés, da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), e Laércio Franco e Amaury Dal Fabbro, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.

Vieira-Filho pesquisa a saúde dos índios brasileiros há mais de 40 anos. Em 1977 encontrou as primeiras evidências de diabetes, entre os caripunas e os palicures do Amapá, já com casos de amputação decorrentes do agravamento da doença. Entre os xavantes de Sangradouro, as primeiras glicemias com valores suspeitos foram colhidas em 1983. “Com o projeto arroz mecanizado da Funai, os índios passaram a ingerir arroz branco, com açúcar, até pela manhã. Progressivamente abandonaram as roças de feijão, cará, abóbora, mandioca, macaxeira, amendoim e produtos da floresta e do Cerrado. Devido às criticas dos civilizados incultos, deixaram de comer gafanhotos e formigas, outrora muito apreciados, que contribuíam com proteínas animais”, diz o professor.“Nos anos 70, eles eram delgados e mantinham intensa atividade física. Agora, as mulheres, sobretudo, estão obesas e com diabetes.”

As imagens de 1955, feitas pelo fotógrafo Roberto Guglielmo, mostram xavantes magros e esguios.

Alimentos industrializados

Em 1984, o médico encontrou casos de diabetes entre os bororos de Meruri, em Mato Grosso. Em 1987, colheu glicemias alteradas entre os xicrins do Rio Cateté e os paracanãs do Rio Bom Jardim, no sudeste do Pará. No mesmo ano, verificou casos suspeitos de diabetes entre os gaviões parcategês, também do Pará. “A política desenvolvimentista do Estado levou para o interior do território indígena estradas de rodagem, como a estrada de ferro Carajás, da Vale do Rio Doce, e linhas de eletricidade da Eletronorte. Com o dinheiro das indenizações, que os xicrins e os gaviões ainda recebem, deleles passaram a comprar alimentos industrializados. Mas o desastre, lá, não é tão grande como entre os xavantes. Os xicrins são hoje 1.200, com 16 diabéticos. Entre os xavantes, metade da população adulta já é ou vai tornar-se diabética. Ali, o mal progrediu muito rápido”, diz o professor Vieira-Filho.

Também os jovens estão sendo afetados. “A prevalência alta já atinge indivíduos na fase produtiva da vida. Se nada for feito, esses garotos pré-diabéticos têm alta chance de desenvolver a doença em idade precoce e, ao longo da vida, apresentar complicações crônicas que, além de incapacitantes, são causa de morbidade e mortalidade”, diz a professora Regina Moisés, especialista em genética do diabetes. Nos territórios de Sangradouro e São Marcos já podem ser encontrados índios com problemas oftalmológicos, que sofreram amputação do pé ou que fazem hemodiálise em decorrência do mal.

A mudança para a dieta dos brancos altera os hábitos e induz a obesidade.

Políticas de Sedentarização

Para o antropólogo Carlos Fausto, professor do Museu Nacional (UFRJ), o que aconteceu nos últimos anos nas sociedades indígenas no Brasil, “e que já havia ocorrido com outras populações autóctones no resto do mundo”, é um processo de sedentarização ligado à infraestrutura criada pelo Estado para atender essas populações – luz elétrica, gás, água encanada, escola, posto de saúde e tecnologias de locomoção. “Há apenas uma geração, os índios caminhavam até suas roças, remavam para pescar e andavam quilômetros para ir a uma festa em outra aldeia. Hoje, andam de barco a motor, de carro e, às vezes, de moto – como nós, que pegamos elevador, em vez de subir escada”, considera.

Some-se a isso a transição alimentar e um aparato fisiológico mais sensível ao consumo do açúcar, “e provavelmente do sal”. Considerem- se ainda os benefícios que, nos últimos anos, os índios passaram a receber do Estado: Bolsa Família, auxílio maternidade e aposentadoria rural. “Esses recursos são usados para a compra de alimentos baratos, de má qualidade. Trata-se de um aporte de comida industrializada que cresce nos períodos de escassez de caça ou pesca, justamente quando ocorria o emagrecimento.” Por outro lado, o dinheiro franqueia aos índios o acesso a bens, o que torna mais tolerável a assimetria com os brancos. “A aposentadoria, por exemplo, deu aos velhos mais respeitabilidade diante dos jovens, que ficaram ‘metidos’ porque conhecem a língua portuguesa e transitam melhor no mundo dos brancos.”

Carlos Fausto considera que esses fatores induzem uma transição nutricional rápida e criam um paradoxo: se, por um lado, as políticas sociais do governo são positivas, por outro contribuem para tornar a população sedentária, obesa, diabética e hipertensa. “O Ministério da Saúde deveria criar políticas públicas de esclarecimento e educação alimentar, em vez de se limitar às políticas curativas. Mas o poder público não tem interesse nisso e não é capaz de uma ação inteligente. Os riscos vão aumentar, sobretudo porque muitas terras indígenas no Brasil Central, no Nordeste e no Sul não são significativamente grandes para alimentar populações em crescimento.”

“O sexo feminino é o mais afetado”, confirma a pesquisadora. “As mulheres xavantes têm muitos filhos. Faz parte da cultura. Começam por volta dos 14 anos, e as sucessivas gravidezes são acompanhadas pela obesidade. Com o sedentarismo, acabam desenvolvendo o diabetes”, explica.

O I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, realizado em 2009 e 2010 com a participação de várias instituições, aponta na mesma direção. Baseado em amostra representativa da totalidade das mulheres indígenas de 14 a 49 anos, nas quatro macrorregiões (Norte, Centro-Oeste, Nordeste e Sul-Sudeste), o estudo envolveu 113 aldeias de diversas etnias e revelou a ocorrência de obesidade, hipertensão arterial e diabetes mellitus em todas as regiões. Conduzido pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), foi coordenado pelos pesquisadores Carlos Coimbra Jr., Ricardo Ventura dos Santos e Andrey Cardoso, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, do Rio de Janeiro; e Bernardo Horta, da Universidade Federal de Pelotas.

“Os dados refletem uma mudança no perfil epidemiológico dos povos indígenas brasileiros, em que as doenças crônicas não transmissíveis começam a assumir um papel expressivo”, diz o epidemiologista Andrey Cardoso. “Em particular no Centro-Oeste e no Sul e Sudeste, sobrepeso e obesidade já se colocam como uma questão de saúde importante para as mulheres indígenas, atingindo mais de 50% delas, assim como a hipertensão arterial, que atinge mais de 15%.”

O professor João Botelho Vieira-Filho (de óculos), da Escola Paulista de Medicina, lidera o estudo sobre obesidade indígena entre os xavantes.

Genética vulnerável

Na base disso tudo está o fato de que a população nativa americana é geneticamente suscetível à obesidade. Estudo realizado por pesquisadores das Américas do Norte, Central e do Sul, entre eles os professores João Paulo Botelho Vieira-Filho e Regina Moisés, verificou a existência de uma variante no gene ABCA1, exclusiva dos ameríndios, associada com dislipidemia (gordura no sangue), obesidade e diabetes.

“Essa variante genética, decorrente de seleção natural ocorrida durante milênios, é favorável à acumulação de energia para períodos de fome e para procriação”, explica o professor Vieira-Filho. Trata-se da genética poupadora de energia descrita pelo geneticista James Neel (1915-2000). “Eles ganhavam peso normal com hidratos de carbono complexo – batata, feijão, mandioca, cará, abóbora. Com o hidrato de carbono simples, do arroz branco, e o açúcar cristalizado, engordam em excesso.”

São muitos os custos decorrentes da difusão da doença. “Treinamos um agente de saúde indígena para aplicar a insulina no Centro de Diabetes da Unifesp, mas há problemas no envio e na conservação da insulina, assim como no descarte adequado das seringas”, explica o professor Laércio Joel Franco. “Também a aplicação regular do medicamento nos doentes nem sempre é possível, pois eles às vezes passam dias fora, caçando ou viajando.”

1977 Nesse ano foram encontradas as primeiras evidências de diabetes, entre os caripunas e os palicures do Amapá

33% DAS MULHERES XAVANTES acima dos 18 anos, das áreas indígenas Sangradouro e São Marcos (MS), têm diabetes

51% DAS MULHERES E 46% DOS HOMENS de Sangradouro e São Marcos são obesos.

Aos 60 anos MORREU O LÍDER XAVANTE MÁRIO JURUNA , em 2002, em decorrência de complicações do diabetes

113 aldeias pesquisadas pelo INQUÉRITO NACIONAL DE SAÚDE E NUTRIÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS mostram ocorrência de obesidade em varias regiões do país

A boa notícia é que o diabetes pode ser prevenido. “Há estudos mostrando que, se o indivíduo mudar o estilo de vida, aumentando a atividade física e adotando dieta adequada, ele previne ou retarda o aparecimento da doença. Mais efetiva que a medicação, a mudança do estilo de vida pode reduzir em 60% a ocorrência da enfermidade”, afirma a professora Regina.

As minorias étnicas devem receber orientação dietética diferenciada. “Assim como os índios desenvolvem obesidade e diabetes com o açúcar, os negros desenvolvem hipertensão arterial com o sal, pois foram selecionados a reter sal diante do calor da África”, explica Vieira-Filho. “Somos todos iguais nos direitos políticos, mas não na genética.”