Hoje em dia, praticamente ninguém rejeita o conceito de que a Terra vive um processo de aquecimento. Uma das consequências relevantes desse fenômeno é uma mudança em nível global na produção de alimentos, que terá de se adaptar às novas condições. Considerando-se que a população do planeta estará em torno de 9 bilhões de habitantes em meados do século, a questão já inquieta cientistas, governantes e instituições internacionais com visão de longo prazo.

Vários estudos tratam do tema, e suas previsões sobre o que ocorrerá apresentam, naturalmente, diferenças entre si, já que trabalham com diversas variáveis. Uma delas é o aumento da presença do dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, algo a princípio considerado benéfico para as plantas, já que impulsiona o processo de fotossíntese. Outra é a adequação desses vegetais a condições específicas de produção, que levam em conta fatores como temperatura, solo, quantidade de água e tecnologia aplicada às atividades agrícolas.


A maioria dos estudos estima que a produção de milho cairá no mínimo 10%

Mesmo com suas divergências, as previsões sobre o que vai acontecer nessa área são extremamente necessárias. No final, todos esses aspectos vão se refletir nos preços, e se eles forem às alturas – efeito da escassez –, cria-se um problema adicional para alimentar as populações. Garantir a chamada segurança alimentar, portanto, é uma necessidade de primeira ordem no momento.

Em geral, os estudos preveem que a produção agrícola e pecuária nas próximas décadas deverá encolher, especialmente por escassez de água, secas e inundações. O prejuízo será maior nas terras situa­das em latitudes mais baixas, sobretudo nas que já são áridas, como a Austrália, o Sahel (região ao sul do deserto do Saara, na África). O Nordeste brasileiro também será afetado, em menor grau. Enquanto isso, em re­giões situadas em latitudes mais altas, como a Escandinávia e a Rússia, certos cultivos poderão até experimentar um pequeno aumento de produção. Embora haja uma inter-relação entre elas, considera-se que a pecuária sofrerá menos que a agricultura, já que os animais podem se mover para buscar alimento. Mas prevê-se que eles sofrerão com a escassez de água e a queda de qualidade em sua alimentação.

A pesca será afetada por razões como a elevação da temperatura média (que tende a afastar os peixes para latitudes mais altas), o aumento do nível do mar e a acidificação das suas águas. O problema será mais grave em regiões como o delta do rio Mekong, no Sudeste da Ásia, onde mais de 40 milhões de pessoas dependem dessa atividade para sobreviver.

Perdas crescentes

Um ambicioso estudo preparado por uma equipe liderada por Andrew Challinor, da Universidade de Leeds (Reino Unido), e divulgado em março de 2014 na revista Nature Climate Change, aborda 1.700 simulações sobre o que ocorreria com três dos principais cultivos do mundo – trigo, milho e arroz – nas próximas décadas. A pesquisa é definida por Reimund Rotter, da MTT Agroalimentar Research, da Finlândia, num artigo publicado na mesma edição, como “a maior rede de dados de diversos estudos de modelagem já utilizados para uma síntese global desse tipo”. Tais informações serviram de base inclusive para a composição do quinto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), lançado no fim do mesmo mês.

Segundo os autores, o acréscimo de apenas um grau centígrado à temperatura média já acarretará perdas de safra. Com um aumento de 2°C, regiões de clima temperado, como a Europa, começarão a sofrer com o problema de modo mais intenso.


Milhões de vietnamitas que dependem da pesca sofrerão com as mudanças

Em 2050, quando se estima que a elevação das temperaturas ultrapassará 2°C, a situação se agravará ainda mais. (Acima de 2°C, as plantas começam a ter problemas para fazer fotossíntese e, pelo que se sabe, nem variedades transgênicas conseguem driblar essa limitação.) Cerca de 65% dos estudos do gênero falam em reduções na produção de trigo, milho e arroz superiores a 10%. “O declínio médio do trigo será de 2% por década”, prevê Mark Howden, da CSIRO (a agência científica australiana), coautor do trabalho assinado por Challinor. Nas regiões temperadas, isso corresponde a uma perda de 2% para cada grau de aumento na temperatura. Já nas regiões tropicais, o prejuízo será bem maior: queda de 8%. “A mudança climática tende a aumentar as desigualdades existentes entre os países em desenvolvimento e os desenvolvidos”, diz Howden.

País com a maior área cultivável do mundo, o Brasil também faz suas previsões para o setor, e os resultados obtidos não são animadores. No amplo estudo “Aquecimento Global e a Nova Geografia da Produção Agrícola no Brasil”, de 2008, repetido e atualizado em 2009, 2010 e 2014, os pesquisadores Eduardo Assad, da Embrapa, e Hilton Silveira Pinto, da Unicamp, mostram que a produção agrícola do país corre sérios riscos se a mudança climática não for revertida em médio prazo. “Os estresses climáticos promovidos pelo aquecimento global ameaçam as culturas alimentares, e elas devem enfrentar nos próximos anos uma situação desvantajosa, de perda de área favorável e prejuízo”, afirma Assad.

Apenas na soja, nosso principal produto de exportação, Silveira Pinto calcula um prejuízo de mais de 20% em 2020. O milho terá uma perda semelhante, e o café sofrerá uma perda de área de plantio de quase 10% no mesmo perío­do. A situação do Nordeste vai se tornar dramática (veja quadro na página ao lado). “Mesmo com a migração de culturas, haverá prejuízo razoável de produção”, afirma Silveira Pinto. Como consolo, o aumento da temperatura deverá ser bom para a cana-de-açúcar, diz Assad.

 

Substituições e remanejamentos

Em síntese, o quadro geral, embora varie de país para país, é preocupante, e o Brasil, até pelo seu porte continental, é protagonista nesse drama. “O país está vulnerável”, avalia Assad. Mas, se não se pode reverter a elevação das temperaturas, há espaço para pelo menos amenizar o impacto das suas consequências na alimentação humana. Uma alternativa é substituir cultivos e animais de criação por outros mais adaptados às condições de momento.

O Conselho de Pesquisa Agrícola Internacional (CGIAR, na sigla em inglês), parceria de organizações internacionais que buscam alcançar a segurança alimentar nos países em desenvolvimento, propõe, por exemplo, que agricultores de várias dessas regiões passem a plantar vegetais mais tolerantes ao calor e resistentes à seca, como mandioca, feijão-fradinho, feijão-guandu, grão-de-bico, sorgo, painço e cevada. O mesmo raciocínio vale para a pecuária, com raças mais adaptadas às novas condições substituindo as antigas.

A biotecnologia pode também ajudar muito, ao desenvolver variedades geneticamente mais adaptadas à escassez de água e às altas temperaturas (veja quadro à esquerda), mas esse é um trabalho que demanda pesquisa e pode demorar a trazer resultados. “Para lançar uma nova variedade mais adaptada se vão uns dez anos e muito dinheiro”, afirma Assad. “Temos de investir maciçamente nessa linha.”


O sistema agricultura-floresta-pasto na mesma propriedade é uma das saídas

A outra opção exige muito mais trabalho do produtor: mitigar os efeitos do clima alterado remanejando os recursos utilizados. Uma quantidade maior de fertilizante, por exemplo, pode compensar o empobrecimento do solo; a planta pode receber mais água, via irrigação. Assad afirma que os tempos de grandes monoculturas estão acabando, mas pode-se fazer uma rotação de atividades agrícolas, pecuárias e florestais na mesma propriedade, o que oferece a vantagem adicional de aumentar a renda do produtor.

No caso brasileiro, há quase 100 milhões de hectares de pastos degradados, terra que pode ser recuperada para a produção alimentar. Em relação aos animais, algumas sugestões são as rotações de pastagens e melhorias de infraestrutura, como a captação de água. E, na pesca, o aquecimento global pode incentivar a aquicultura, a criação de peixes em rios, lagos e na orla marítima.

Mas, para tudo isso ser posto em prática do modo mais adequado, é fundamental haver planejamento, a começar de cima. Enquanto os países não definem uma ação coordenada para enfrentar a mudança climática, alguns já têm planos para a situação que envolvem a agropecuária, como Austrália e Reino Unido. O Brasil criou um projeto nesse sentido, o Plano ABC (sigla de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono), mas, assim como outras propostas do país, ele demora a engrenar.

“O Zonea­mento de Riscos Climáticos do Ministério da Agricultura continua inalterado pelos últimos três anos”, observa Silveira Pinto. Esse importante mapa de monitoramento só está sendo retomado em 2015, diz Assad. O momento econômico delicado do país também reduz a possibilidade de investimentos necessários, como em pesquisa e em tecnologia. Mas fechar os olhos para o quadro pode custar caro, alerta Assad: “Se não fizermos nada, teremos problema de segurança alimentar por irresponsabilidade”.

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Esforços promissores

A ciência tem dado uma contribuição importante para resolver o problema causado pelo aquecimento global. Por meio da manipulação genética, ela está produzindo versões de plantas mais resistentes à escassez de água e a temperaturas mais altas:

 

Soja

A Embrapa anunciou em 2014 a criação de uma variedade de soja transgênica mais tolerante à seca. Segundo o pesquisador Alexandre Nepomuceno, líder do estudo, foi introduzido na planta um gene “capaz de ativar e potencializar outros genes de defesa natural das plantas”, aumentando a capacidade destas de suportar a falta de água por mais tempo. Em comparações feitas na safra 2013/2014 (período de pouca chuva e muito calor) entre plantas de soja com o gene e outras não transgênicas, as primeiras tiveram aumento de até 44% na produtividade. Os testes continuam, incluindo-se experimentos com 33 novos genes de soja mais resistentes às intempéries climáticas.

 

Feijão

Pesquisadores do Instituto Agronômico (IAC), de Campinas, desenvolveram por cruzamento genético uma variedade de feijão-carioca que cresce com um volume de água até 30% menor do que o habitual. Denominada IAC Imperador, ela é plantada desde a safra de 2013 e já está em todas as regiões do país. Além de a planta apresentar um ciclo de cultivo mais curto em relação a outras variedades de feijão (75 dias, ante 95 do ciclo normal), sua raiz cresce mais rapidamente e é mais robusta do que outras do mesmo tipo. “Hoje há 28 empresas fazendo a multiplicação dessa cultivar”, diz Alisson Fernando Chiorato, diretor do Centro de Grãos e Fibras do IAC e coordenador do projeto.

 

Milho

O projeto internacional Water Efficient Maize for Africa (Wema) está testando na Tanzânia, país da África Oriental, cinco variedades de milho mais resistentes à falta de água. Uma delas, denominada situka, exige um tempo de cultivo menor (75 dias, enquanto as variedades normais necessitam de 90 dias) e tem apresentado uma produtividade até 50% maior do que a média regional. No Brasil, a espécie BRS Catingueiro, desenvolvida pela Embrapa, conseguiu no centro-norte da Bahia uma taxa de produtividade três vezes superior à média daquela região.

 

Arroz

Altamente dependente dessa planta para o cultivo e a alimentação local, Bangladesh virou um centro de desenvolvimento e testes de variedades de arroz resistentes à estiagem e à salinidade da água. Uma delas, desenvolvida nas Filipinas em 2008, demonstrou ser tolerante à seca, embora sua produtividade seja 22% menor do que a normal. Variações híbridas conseguem colheitas até 20% maiores do que a média, mas os agricultores do país geralmente não têm dinheiro para adquirir essas sementes.

 

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Nordeste vulnerável

Para o pesquisador Hilton Silveira Pinto, da Unicamp, o Nordeste será a região do país mais afetada pelo aquecimento global. A área de seca deve avançar para o oeste da Bahia, o sul do Piauí e o Maranhão. “Feijão, milho, mandioca e algodão vão sofrer na região, em especial a agricultura familiar”, avalia. “Os problemas já podem aparecer em 2020.” Para o pesquisador, já é tempo de trocar ali os cultivos de arroz, feijão e milho por culturas de seca (como a carnaúba). O agrônomo João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, sugere mudanças em relação à pecuária local – por exemplo, reforçar a presença de raças bovinas adaptadas à região, como o guzerá e o sindi, da Índia.


Raças oriundas dos desertos indianos poderão resistir melhor no Nordeste