As mudanças do clima impulsionadas pela ação humana têm provocado impactos irreversíveis não só na natureza, mas na vida de bilhões de pessoas ao redor do globo. As evidências científicas são inequívocas: as emissões de gases de efeito estufa acumuladas na atmosfera desde a Revolução Industrial ameaçam o bem-estar da humanidade e a saúde do planeta.

A conclusão é do novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado nesta segunda-feira (28/02). A análise, focada nos impactos climáticos, adaptação e vulnerabilidade, foi feita por 270 cientistas do Grupo de Trabalho II e aprovada pelos 195 países integrantes do painel.

Das florestas às cidades, as notícias não são boas. Os impactos observados não têm poupado qualquer ecossistema ou região do globo, o que levou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, a classificar o conteúdo do relatório científico como “nada visto antes”.

Para Hoesung Lee, presidente do IPCC, as ameaças nunca foram tão altas quanto as observadas e relatadas no documento. Os chamados eventos extremos – como a tempestade que deixou mais de 220 mortos em Petrópolis (RJ) em fevereiro – aumentaram em frequência e deverão se repetir num intervalo menor, colocando cada vez mais vidas em perigo.

Já na última década, a mortalidade por eventos extremos foi 15 vezes maior em regiões mais desprotegidas. Estima-se que até 3,6 bilhões de pessoas vivam em condições altamente vulneráveis às mudanças climáticas, grande parte delas na América do Sul.

“Os atuais padrões de desenvolvimento insustentável estão aumentando a exposição de ecossistemas e pessoas aos riscos climáticos”, diz o documento resumido direcionado aos governos.

Para Jean Ometto, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que coordenou o capítulo sobre florestas e é um dos autores do capítulo sobre as Américas do Sul e Central, a mensagem dos cientistas colocada de forma mais incisiva tem uma fundamentação sólida.

“Isso se deve à quantidade de informação científica produzida, que tem fornecido dados e conclusões para que o IPCC mostre a urgência climática”, comenta em entrevista à DW.

O que esperar no Brasil

O Brasil, junto com os demais países das Américas Central e do Sul, é considerado altamente vulnerável e já fortemente impactado pelas mudanças climáticas. À intensificação dos eventos climáticos extremos se somarão impactos trazidos pelo aumento do nível do mar, erosão costeira, acidificação de oceanos, branqueamento de corais e gravidade das secas em algumas regiões.

A lista de consequências é igualmente devastadora: problemas no abastecimento de água, quebra de produção agrícola, aumento da insegurança alimentar e de problemas de saúde.

“A situação é amplificada pela desigualdade, pobreza, crescimento populacional e alta densidade populacional, mudança no uso da terra, principalmente desmatamento com a consequente perda de biodiversidade, degradação do solo e alta dependência em recursos naturais para produção de commodities”, pontua o relatório.

Na avaliação de Ometto, o relatório eleva a preocupação em relação à produção agrícola nacional. “Ninguém tem dúvida de que precisamos produzir alimentos, é uma questão econômica importante no país. Mas precisamos discutir como fazer isso bem no Brasil”, pontua, mencionando medidas de adaptação como diversificação da produção.

Mesmo a Floresta Amazônica, que abriga as formas de vida mais diversas do globo e é um dos maiores estoques de carbono, é bastante vulnerável. Segundo os cientistas, o aumento de temperatura observado na região é um dos mais altos, além das secas sem precedentes já registradas, eventos atribuídos ao desmatamento e às mudanças do clima.

“A parte sul da Amazônia já está perdendo mais carbono do que absorvendo”, comenta Ometto. “Esse relatório também analisou os efeitos em cascata. Ele mostra que na Amazônia e no Cerrado as regiões onde há impactos mais fortes são onde há uma fragmentação maior da paisagem não harmoniosa”, adiciona.

A briga pela água e o cenário nas cidades

A disputa pela água vai aumentar na região. A escassez do recurso vai afetar não só a produção de alimentos, mas a saúde pública e a produção de energia – no Brasil, a maior parte da eletricidade vem das hidrelétricas. O país ainda tenta sair de sua pior crise hídrica, registrada na última estação seca, provocada por anos de chuvas irregulares.

“A nossa produção de energia depende bastante da chuva. A partir do momento que vemos a frequência dos eventos extremos, como seca aumentando, vemos um período de comprometimento maior na capacidade de geração elétrica. É preciso discutir a fundo, e não achar que termelétrica é a solução”, comenta Ometto.

Nas cidades os riscos não são menores. Os altos índices de pobreza, informalidade, falta de infraestrutura, moradias precárias e em áreas de risco colocam milhões de pessoas em perigo, principalmente os mais pobres.

Na América do Sul, os impactos de eventos climáticos nas infraestruturas urbanas de abastecimento de água, drenagem e esgoto são os mais relatados. Segundo os cientistas, a condição de vulnerabilidade é impulsionada por instituições políticas e governamentais instáveis, que sofrem com a corrupção, governança fraca e capacidade reduzida para financiar a adaptação.

“A negligência com os riscos climáticos de Petrópolis contribuiu para tragédias como a que vimos. Mas o Brasil tem inúmeras localidades em risco de eventos extremos, lembrando que só em 2022 já tivemos seca no Sul e enchentes na Bahia. Ou seja, nossa agricultura, que sofre com secas cada vez mais graves e mais recorrentes, precisa ter suas vulnerabilidades contempladas com medidas de adaptação”, declara à DW Alexandre Prado, diretor de Economia Verde do WWF-Brasil.

Janela estreita

Diante do cenário, com o aumento da temperatura média global de 1,1 °C desde 1800 e projeção de atingir 1,5 °C nas próximas décadas, uma redução drástica das emissões é a única forma de evitar uma catástrofe. Paralelamente, medidas de adaptação às mudanças em curso são fundamentais.

“É importante ressaltar que a janela para transformação está ficando bem pequena”, pontua Ometto, o que considera uma das principais mensagens do atual relatório.

Junto a planos consistentes dos governos, o texto afirma que são urgentes políticas e ações com participação de todos os grupos sociais, incluindo as populações mais expostas e vulneráveis para uma adaptação efetiva.

“As abordagens de pesquisa que integram o conhecimento indígena e os sistemas de conhecimento local com as ciências naturais e sociais aumentaram desde 2014 e estão ajudando a melhorar os processos de tomada de decisão na região”, ressalta o documento.

Para Ometto, o Brasil tem uma longa lista de problemas – como perda de biodiversidade, degradação do solo e desertificação no Nordeste – que não está sendo tratada da forma como deveria. “São necessários recursos, transferência de tecnologia e, acima de tudo, incorporação desses temas dentro da realidade do planejamento do país”, enumera.

A frase escolhida para fechar o relatório alerta para a urgência de uma resposta planejada aos resultados apontados. “Qualquer atraso adicional na ação global antecipada sobre adaptação e mitigação perderá uma janela de oportunidade breve e de fechamento rápido para garantir um futuro habitável e sustentável para todos.”