Para Elisabeth Roudinesco, a psicanálise não é um método científico.

 

A psicanálise nunca quis ser científica. Trata-se de um método racional, que deve ser colocado ao lado das ciências humanas e da filosofia, mas não da biologia e fisiologia, diz uma das maiores psicanalistas da atualidade.

 

Conhecedora dos bastidores da psicanálise como poucos, Elisabeth Roudinesco é uma psicanalista e historiadora francesa, nascida na  Romênia, biógrafa de Jacques Lacan e autora de obras de referência sobre a disciplina, como Dicionário de psicanálise e A família em desordem (publicados no Brasil pela editora Zahar). Aos 68 anos, é uma renomada intelectual engajada, pronunciando- se publicamente sobre temas politicos e assuntos controversos como o casamento homossexual, a laicidade ou a clonagem. Sua última obra, Freud: mas por que tanto ódio? (Zahar, 2011), é uma resposta ao filósofo Michel Onfray, que acusou o médico austríaco, no livro O crepúsculo de um ídolo: a fábula freudiana (editado na França), de ser um charlatão homofóbico e incestuoso, portador de simpatias fascistas. Sempre atenciosa, Roudinesco crispa quando ouve críticas à obra de Freud, o psiquiatra que abriu uma janela para a compreensão do inconsciente, associando os fenômenos psíquicos à cultura grega e a mitos como o de Édipo. Nesta entrevista à PLANETA, a historiadora fala sobre o futuro da disciplina, sua relação com a psiquiatria e o advento ameaçador da “biologização da existência”.

Como a psicanálise evolui?
Nos primeiros 100 anos de vida, as mudanças vieram em etapas, primeiramente antes da  Primeira Guerra Mundial, quando a psicanálise se alargou para o tratamento de demências e de psicoses, por meio do trabalho de Karl Abraham, de Carl Jung e dos psiquiatras. Eles renovaram a psiquiatria, o que  era inimaginável no princípio. Em seguida, a psicanálise abraçou áreas de estudos diferentes, como o trabalho de Melanie Klein na análise das crianças. Esse foi um grande momento nos anos 20, que não estava previsto na teoria de Freud. Depois da Segunda Guerra, a disciplina mudou mais, por uma  multiplicidade de caminhos. No meu livro Dicionário da psicanálise, listei seis ou sete correntes psicanalíticas diferentes: tivemos os kleinianos, os seguidores de Anna Freud e a chamada “reforma” de Jacques Lacan, que criou uma nova corrente, inserindo a fi losofi a e a teoria da linguagem na psicanálise. Para Lacan, essas disciplinas ocuparam o lugar que a biologia teve na teoria de Freud. Ao mesmo tempo, houve uma evolução importante na  mérica do Norte, com o surgimento das clínicas de “self-psychology”, que começaram a tratar mais patologias narcisistas do que sexuais. Na verdade, a psicanálise é um movimento formado por  orrentes diferentes. Além disso, houve a contribuição eclética dos psicanalistas latinoamericanos, muito interessante, pois serviu de espelho para a Europa. Todos os movimentos se desenvolveram na América Latina: os kleinianos, a teoria das psicoses, os lacanianos, os freudianos clássicos, etc. A psicanálise não é um sistema fechado e isolado; há contradições, escolas e correntes diferentes. Ela abarca todos os domínios do psiquismo: as depressões, as neuroses, as psicoses, a psicanálise das crianças e as patologias narcisistas. Mas, agora, vemos um certo declínio da psicanálise.

Freud é um escritor brilhante, mas é criticado pela falta de rigor científico. Como vê essa crítica?
Isso é ridículo! Poderia dizer da seguinte maneira: como sou historiadora e não tenho nada a ver com geografi a, não tenho problemas para criticar Freud e a psicanálise. Mas as críticas antifreudianas violentas têm duas vertentes: durante a primeira metade do século XX, foram as religiões que criticaram Freud porque, segundo elas, a sua teoria era uma ameaça à moral. Depois, na segunda metade do século, a crítica passou a ser científi ca: criticou-se a psicanálise por não ser realmente uma ciência. Mas ela nunca quis ser! Na minha opinião, as críticas mais graves não são as dos antifreudianos radicais, extremistas e ridículos. No entanto, critico os psicanalistas que fizeram da psicanálise um dogma. Freud tem a sua parte de culpa, mas as críticas não são sérias. Elas têm um lado interessante, porque, afi nal, não se atacaria algo que não existe mais. Se subsistem, é porque há um poder e uma força vital na obra de Freud. O problema é não criar dogmas, sejam quais forem. A psicanálise nunca quis ser científi ca, no sentido científi co. Mas é um método racional, não um pensamento mágico! Temos que colocá-la ao lado das ciências  humanas e da fi losofi a, mas não dabiologia e da fisiologia.

Existe um entendimento possível entre psiquiatria e psicanálise?
A psiquiatria é um ramo da medicina que carregou a psicanálise durante quase um século, mas hoje em dia a psiquiatria “voltou ao seio” da medicina biológica e química. No sentido antigo, não existe mais: ela é biológica e sua prática se baseia no uso de medicamentos, e não inclui mais a psicanálise. Até os anos 80, a psiquiatria incluía uma abordagem química, mas também levava em conta o fator psíquico. Hoje em dia, em geral, ela não leva em conta a abordagem psíquica, o que é um problema. O diálogo entre as duas disciplinas já existiu, mas acho que não existe mais. Tenho observado um movimento cíclico: no fi m do século XIX havia uma abordagem hereditária das neuroses e psicoses, depois surgiu uma abordagem dinâmica com a psicanálise. Hoje, creio que a abordagem dinâmica vai voltar, pois, como já podemos observar nos Estados Unidos, a aproximação basea da em medicamentos é criticada pelos próprios psiquiatras.

Por isso a srª fala em declínio da psicanálise?
Sempre haverá uma elite, pessoas diferentes. A psicanálise é minoritária, mas continua presente. A abordagem psicanalítica perdurará, pois traz muitos benefícios. Mas como ela não é mais carregada pela psiquiatria, sua presença será minoritária.

Vivemos numa época individualista. Como a psicanálise pode ajudar a viver esses tempos?
Com certeza, o indivíduo tomou o lugar do sujeito. A dimensão da subjetividade profunda perde espaço, na sociedade, para o resultado imediato, a performance e o culto ao corpo. Os psicanalistas não souberam se adaptar nem criticar essa evolução. Os psicanalistas deveriam ter sido mais críticos e ter levado em conta as novas formas de interrogação social.

A sociedade tem dificuldade em aceitar a diferença. Corremos o risco de considerar todos os comportamentos que fogem à norma como psicoses?
Tem razão. Vivemos um período de medicalização da existência, somos muito menos tolerantes e a psiquiatria é o espelho disso, já que, no fundo, os medicamentos servem para acalmar, para que as pessoas não expressem mais a sua singularidade. Isso é uma das consequências da “biologização da existência”. Uma abordagem que não seja exclusivamente baseada no uso de medicamentos abre a possibilidade de
uma reabilitação do sujeito, sem condená-lo ao inferno dos medicamentos. Vivemos em uma época muito intolerante, principalmente porque estamos atravessando uma crise econômica grave. Quando há uma crise assim, em que as classes médias “normais” sofrem como todas as classes da população, nos preocupamos muito menos com os loucos e com os prisioneiros. Temos menos condições para cuidar dos marginais e isso cria um círculo vicioso: como o sofrimento social provoca sofrimento psíquico, aumenta o número de pessoas infelizes.

A srª engajou-se no movimento de apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Critiquei muito os psicanalistas por não se interessarem por problemas sociais. Acho que há uma minoria muito engajada, que reage ao que acontece no mundo e demonstra interesse pelos problemas sociais. A maioria, porém, é apolítica. Eles reagiram aos ataques à psicanálise com silêncio. Não foram capazes de defender sua disciplina. Fecharam-se em si mesmos e em sua prática clínica, que conhecem muito bem. Acabam considerando que a psicanálise é um sistema de pensamento que os protege do mundo exterior, que lhes serve de cultura, de religião, de sistema interpretativo, daí o pouco interesse pelo que acontece no mundo. Fecharam-se, pois são atacados, mas o isolamento não é a melhor estratégia de defesa. Tornaram-se impermeáveis à evolução das sociedades, sobretudo no que diz respeito às questões de costumes. Isso é absurdo, houve uma inversão. Freud era atacado, durante a primeira metade do século XX, pelos moralistas que defendiam os valores da família cristã. Hoje, são os psicanalistas que defendem a moral familiar cristã!
Sempre digo que o mundo da psicanálise é extremamente dividido e inclui correntes diferentes. É impossível generalizar, ao contrário do que dizem os antifreudianos radicais, que acham que todos os psicanalistas são iguais.

Quais são os maiores desafios da psicanálise para o futuro?
Ela deve voltar a se engajar com a sociedade e mudar a cura psicanalítica: usar técnicas de psicanálise como os behavioristas usaram, por exemplo, não se limitar à cura clássica. Acho que a psicanálise pode ser aplicada a tudo, inclusive às terapias breves. Temos que ocupar esse espaço. Os psicanalistas se trancaram no clássico. Precisamos de mudanças. Temos que abrir as portas e as janelas, sair do “casulo” dos dogmatismos acadêmicos. Alguns já começaram esse movimento ao combater a evolução da psiquiatria.

A srª conhece a psicanálise brasileira?
A psicanálise brasileira é mais eclética. Isso é ótimo para o futuro da psicanálise. Tem menos pretensões teóricas. Temos pretensões teóricas demais na psicanálise hoje em dia. Temos um sistema de pensamento muito refinado, muito sofisticado. É ótimo, mas não é suficiente. Precisamos agora abrir portas e janelas! O ecletismo pode ser uma grande riqueza! Se dilapidarmos essa riqueza sendo demasiadamente dogmáticos,
não encontraremos soluções. A psicanálise brasileira é mais eclética, e os psicanalistas, mais simpáticos!