Escondido onde a escravidão não chegava nos séculos 18 e 19 e nem modernas caminhonetes 4×4 têm acesso fácil hoje em dia, o povo kalunga conseguiu manter preservadas suas tradições e seu modo de vida. Fugidos da exploração do ouro, negros que vieram para o Brasil escravizados permaneceram incógnitos nas profundezas dos vales da Chapada dos Veadeiros, chamados por eles de “vãos” – Vão do Moleque, Vão de Almas e Vão da Contenta –, formando diversos povoados.

Foi Mari de Nasaré Baiocchi, doutora em antropologia social, que trouxe à tona essa rica história, em 1980. “Quando Mari chegou ali, muitos correram para se esconder, com medo de ter voltado a escravidão. Foi ela que descobriu que não eram vários quilombos, era um povo só, os kalungas”, explica o fotógrafo André Dib, que também se embrenhou a fundo no território e nos costumes dessa gente.

O primeiro contato de Dib com essa comunidade de ex-escravos do nordeste goiano aconteceu em 2008, quando percorreu a Chapada dos Veadeiros clicando para reportagens. Mas foi só muitos anos depois que surgiu a oportunidade de fazer um trabalho exclusivo sobre os kalungas. “Quando me mudei para a Chapada, em janeiro de 2016, vi que havia sido aberto um edital para livro de fotografia no estado de Goiás. Percebi que não tinha um trabalho de fotografia consistente publicado sobre os kalungas, me inscrevi com esse tema e fui contemplado”, relata.

A produção foi corrida. Depois de liberada a verba, em outubro de 2017, Dib teve seis meses para entrar com o produto final em gráfica. “Nesse intervalo entre outubro e março, fiz umas cinco viagens para lá. Cada vez que ia, ficava cerca de quatro dias, em vãos diferentes.” Para chegar lá foi preciso alugar um carro com tração nas quatro rodas e enfrentar de oito a dez horas de deslocamento a partir de Cavalcante, cidade mais próxima. Mas o esforço rendeu um belo fruto: o livro “SerTão Kalunga” foi publicado em junho, por meio do Fundo de Arte e Cultura do Estado de Goiás.

Contatos imediatos

O maior investimento feito pelo fotógrafo foi na aproximação com os kalungas mais isolados. Eles ainda moram em casa de adobe, não têm acesso à energia elétrica e mantêm suas tradições e o apego à terra. “Tive que criar um ambiente de confiança para poder fazer meu trabalho. Ainda tem gente que tem medo de que volte a ‘servidão’ – eles usam esse termo”, conta.

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A lembrança da escravidão ainda é muito presente, principalmente entre os mais velhos, que não se arriscam a sair de lá para nada. Entre os mais jovens, a realidade é diferente. Já existe um êxodo muito grande para a cidade. São poucas as crianças que estão crescendo na comunidade. Mas mesmo quem se mudou ainda mantém uma ligação forte com suas raízes. “Eles voltam para festividades e para reencontrar a família. Hoje é um orgulho ser kalunga”, comenta o fotógrafo.

Por algum tempo, ser chamado de “kalungueiro” era uma ofensa. Os anciãos contaram a Dib que, nos raros momentos que iam para a cidade comprar sal ou trocar alguma mercadoria, como couro, mandioca ou farinha de mandioca, se sentiam envergonhados quando eram chamados de kalungueiros. Andavam sempre em grupos para se fortalecer. Tinham receio de estar sozinhos e ser tratados como seres inferiores. “Houve um resgate do valor desse modo rudimentar e tradicional de vida que levam. Talvez isso tenha acontecido graças a fotos e documentários feitos sobre eles.”

Gosto pelo inóspito

Explorar lugares distantes, quase inacessíveis, é o estilo marcante de Dib. Adepto do montanhismo, ele conhece bem as grandes recompensas que pode encontrar depois de uma caminhada árdua. Por muitos anos percorreu diversos cantos do Brasil e do mundo produzindo fotos para reportagens sobre aspectos culturais, comportamento e destinos de viagem. “Eu adoro essa parte de ir atrás de pautas, mas, com a queda do mercado editorial de revistas, acabei migrando para outros clientes: instituições como WWF-Brasil, Fundação Grupo Boticário, Itaú Social e SOS Amazônia”, conta. Suas lentes atualmente estão mais voltadas para um trabalho documental da fauna e da flora dos biomas amazônico e Cerrado.

Por isso, quando decidiu se mudar para a Chapada dos Veadeiros, ele deixou para trás a loucura da cidade grande – São Paulo e Ribeirão Preto, onde tinha vivido – e se aproximou dos seus maiores interesses. “Tenho um aeroporto bacana perto, estou a 230 quilômetros de Brasília e a 7 quilômetros do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. No dia a dia, despacho tudo pela internet”, descreve. Dib também promove expedições fotográficas pelo país e no exterior com amadores ou profissionais da fotografia.

No momento, ele está explorando o território onde decidiu se instalar daquele seu jeito característico, em busca dos lugares mais afastados e desconhecidos, e está produzindo mais um livro sobre a Chapada. “Já está aprovado, mas dessa vez comecei a fotografar antes de a verba sair, para fazer tudo com mais tempo”, revela. Além dessas obras mais recentes, Dib é autor de “Parques Nacionais Brasileiros” (Editora Empresa das Artes, 2012) e “Saúde É o Melhor Remédio” (Editora Auana, 2014), sobre saúde nos rincões do país. E participou de outras duas obras coletivas: “Minas de Tantos Gerais” e “Estrada Real”.