Silêncio absoluto, água fria até os joelhos, lama dentro do tênis. O sol queimando o rosto e as sanguessugas procurando uma brecha de pele. Mosquitos picam. Medo das serpentes. O vento sopra sem parar. Mas nenhum contratempo é capaz de desviar a concentração. Estamos em uma trilha no meio de um banhado, no entorno da Estação Ecológica do Taim. Viemos em busca das três jóias do extremo sul brasileiro, as lagoas Mirim, Mangueira e dos Patos, as maiores que formam o complexo lagunar costeiro do Rio Grande do Sul.

Ao chegar, descobrimos que elas são bem mais do que uma das maiores bacias hidrográficas do mundo. São o sangue que corre nas veias de um lugar intenso, visceral. Aqui, a água se enamorou do vento e, juntos, não precisam de licença para moldar a vida dos bichos e das gentes que existem nestes campos.

Percebemos isso a cada passo dado naquele terreno alagado, guasqueados (chicoteados, no linguajar local) pela ventania que leva embora quase todos os pensamentos. Estamos a caminho da mais jovem e intrigante lagoa do complexo: a Mangueira. Como suas irmãs, ela tem um horizonte sem fim, como se mar fosse. E, caçula que é, guarda em suas águas algumas surpresas fascinantes.

No sentido horário, a região é um importante

berçário de aves migratórias; duas das lagoas

gaúchas, com as peculiaridades de suas

geografias, incluindo as falésias; e a igreja

quase em ruínas, construída em 1840.

A Lagoa Mangueira tem 123 quilômetros de extensão e uma área total de 800 quilômetros quadrados. Localizada entre os municípios de Rio Grande, Santa Vitória do Palmar e Chuí, ela gosta de solidão. Fica a mais de 500 quilômetros da capital gaúcha de Porto Alegre, quase na fronteira com o Uruguai, sem concentrações urbanas por perto. É uma das formações geológicas mais jovens da Terra, com apenas 4,5 mil anos – quem acha muito tempo, pense que antes disso os faraós já reinavam no Egito.

O sobe-e-desce das águas do Atlântico, com as sucessivas glaciações do planeta, foi acumulando sedimentos e formando a planície costeira gaúcha. Há cerca de 5,5 mil anos, no período geológico chamado de holoceno, o nível do mar era de três a cinco metros mais alto e já havia uma gigantesca área alagada separada do oceano por uma faixa de areia. À medida que as águas oceânicas foram baixando, mais sedimentos foram depositados, formando uma península de areia que fechou os canais e criou a Lagoa Mangueira

 

 

Por já ter sido mar um dia, a Mangueira é única. Aos olhos dos poucos aventureiros e pescadores que a visitam, é uma imensidão de água doce sobre um leito repleto de conchas fósseis, povoada por peixes como a traíra e o peixe-rei e por mamíferos como a capivara. Aos olhos atentos dos pesquisadores, no entanto, ela é mais. Por ter um pH muito elevado, devido à composição do solo, a Mangueira é o lar de uma microalga benéfica para a saúde humana e capaz de absorver grande quantidade de poluentes da atmosfera.

 

 

A Mangueira é o lar de uma MICROALGA benéfica para a SAÚDE humana e capaz de absorver uma grande quantidade de poluentes da atmosfera.

A spirulina não é vista a olho nu, mas serve de alimento para muitos peixes e invertebrados. No Brasil, o único canteiro natural dessa alga é a Lagoa Mangueira, já que em nenhum outro corpo d’água a planta encontra as condições ideais para a proliferação. “Mundo afora, a spirulina é utilizada na alimentação humana e na produção de rações e corantes naturais. Agora, cientistas pesquisam seu uso como purificador do ar e até na cura de tumores malignos”, afirma o professor Jorge Vieira Costa, que há dez anos estuda a alga na Universidade Federal de Rio Grande (Furg).

Além da microscópica spirulina, a Lagoa Mangueira também é a residência do maior roedor do mundo, a capivara – ou capincho, como gostam de chamá-lo os gaúchos do extremo sul. É comum ver grandes grupos se alimentando ou descansando nas margens. Há alguns anos, a caça indiscriminada reduziu o número de animais. Hoje, com a proibição e a mão pesada do Ibama contra os insistentes, a população está recuperada.

Depois de horas com o olhar fixo na imensidão da Mangueira, é hora de procurar a irmã do meio. O terreno nos dá trégua e podemos chegar de carro até a localidade da Capilha, o maior vilarejo no entorno da Estação Ecológica do Taim, de onde se tem uma visão privilegiada da Lagoa Mirim. Uma igreja quase em ruínas, construída em 1840, saúda e conta um pouco de história, antes de descermos a duna que guarda a margem. Dividida entre o Brasil e o Uruguai, a Mirim é a segunda maior lagoa da América Latina, com 180 quilômetros de extensão e 3.750 quilômetros quadrados de área total.

Em dias de pouco vento, suas águas ficam cristalinas e é possível observar os peixes nadando nas áreas rasas.

A Mirim, apesar de robusta e imponente, depende de um equilíbrio extremamente frágil. Devido aos fortes e constantes ventos, a água tem grande quantidade de partículas em suspensão. Essas partículas bloqueiam a passagem de luz solar, o que dificulta a fotossíntese das microalgas e do fitoplâncton, que estão na base da cadeia alimentar dos ecossistemas aquáticos. Assim, a produção de peixe é naturalmente baixa. O excesso de captura, muitas vezes nos períodos de defeso, somente agrava a situação.

Que o diga Álvaro dos Santos, 37 anos, morador da Capilha e pescador na Mirim desde os 14. “Quando comecei havia muito mais peixe. Agora, tem pouco mesmo. E quando não chove, a coisa fica pior ainda”, lamenta. Como outros pescadores, custou a acostumar- se com os defesos. Hoje, reconhece a importância de parar no período reprodutivo e até elogia quando o Ibama multa quem pesca ilegalmente.

“Nossa vida está nessa lagoa. Se ela seca, a gente seca. Se ela morre, a gente morre.”

Teixeirinha, um dos maiores compositores da música tradicionalista riograndense, chamou a Lagoa dos Patos de lago verde e azul, que Deus criou como bebedouro na América do Sul. Já a dupla Kleiton e Kledir a batizou carinhosamente de sonho de todos os barcos, um mar de água doce e paixão.

A Lagoa dos Patos é assim. Ora um bebedouro, ora um oceano. A verdade é que é impossível passar por ela sem sentir algum tipo de arrebatamento. Pode ser vertigem, respeito, amor, não importa. O certo é que ninguém a olha sem perder o fôlego.

Talvez as dimensões dessa laguna expliquem sentimentos tão intensos. São 265 quilômetros de extensão e mais de dez mil quilômetros quadrados de superfície, com uma profundidade média de seis a sete metros. A maioria dos grandes rios do Rio Grande do Sul a alimenta, como o Caí, dos Sinos, Vacacaí, Jacuí e Camaquã. E ela, por sua vez, despeja no mar essas águas através de uma barra, na cidade de Rio Grande.

É fácil vê-la, pois em suas margens estão mais de dez cidades. Há grandes centros urbanos, como a capital, Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande. E também cidades com pouquíssimos habitantes, como Tavares e São José do Norte, onde as águas ainda são limpas e as dunas preservadas. Mas, nesta aventura pela Lagoa dos Patos, não estávamos atrás de pessoas ou cidades. Queríamos mesmo é conhecer os ilustres moradores do estuário, que já inspiraram lendas e atualmente são alvo de projetos de conservação. Para vêlos, nosso destino é Rio Grande, a cidade mais antiga do Estado.

Sabíamos que uma comunidade de golfinhos da espécie Tursiops truncatus vive permanentemente no local onde a lagoa se encontra com o mar e partimos para procurá-los. Chegamos na ponta dos Molhes da Barra (um quebra- mar de quatro quilômetros que possibilita as operações no porto) por meio de uma engenhoca inventada exclusivamente para o turismo, chamada de vagoneta.

Plataformas de madeira são colocadas sobre trilhos e movidas a vela, guiadas por um vagoneteiro. Ao sentar nas pedras e fixar o olhar na água, o espetáculo não demora a começar. Eles saltam, um após o outro, sozinhos ou em grupos, como num show minuciosamente ensaiado pela natureza. Brincam, pescam, se exibem.

No passado, lendas diziam que os botos eram homens que, seduzidos pelo canto das sereias, haviam pulado nas águas profundas da lagoa. Hoje, a sua fragilidade exige bem mais do que crendices. O projeto Botos da Lagoa dos Patos, da Universidade Federal de Rio Grande (Furg), monitora os animais desde 2002 e estima que a população residente no estuário seja de 87 indivíduos. O coordenador, Pedro Fruet, alerta que a mortalidade vem crescendo a cada ano, em função da interação desses mamíferos com as redes de pesca. “Quando ficam presos, morrem afogados ou têm ferimentos sérios, que geralmente os conduzem à morte”, explica Fruet.

O projeto Botos da Lagoa dos Patos estima que 87 botos habitem aquele estuário; capivaras e dezenas de outros mamíferos vivem na reserva do Taim; as lagoas gaúchas são áreas vitais para a criação e reprodução de peixes, além de representar o sustento para milhares de pescadores; a exuberante flora da região.

Enquanto nos deixamos seduzir pela dança dos botos, outros mamíferos aparecem para saudar quem os observa. São os leões-marinhos, que vivem na ponta do Molhe Leste durante a maior parte do ano. Desajeitado e com aquelas irresistíveis feições de fanfarrão, o leão-marinho vem de Cabo Polônio e Punta del Este, no Uruguai.

Apenas os machos migram para o Rio Grande do Sul, à procura de alimentação e descanso. Freqüentemente são feridos por barcos de pesca, pois danificam as redes em busca dos cardumes. Biólogos do Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental (Nema) já contabilizaram 121 animais em Rio Grande e há anos fazem um trabalho de conscientização com a comunidade de pescadores, para preservar a vida desses mamíferos.

A beleza, riqueza e imponência dessas três irmãs não foram suficientes para livrá-las das mesmas ameaças que pairam sobre todas as bacias hidrográficas brasileiras. Poluição, ocupação desordenada das margens, agricultura e pesca excessiva são areia nos olhos de quem quer ver as lagoas preservadas. De acordo com o biólogo e professor David Motta, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a ocupação urbana é a grande inimiga desses ecossistemas, devido ao lançamento de esgoto cloacal sem tratamento e à ocupação irregular das margens.

A Lagoa dos Patos, segundo o biólogo, é a mais atingida, por ter grandes cidades em seu entorno sem planejamento urbano e com pouco tratamento de efluentes. Para se ter idéia, de acordo com o IBGE, somente 8,8% dos 120,4 mil metros cúbicos de esgoto coletados por dia em Porto Alegre recebem tratamento antes de serem lançados na lagoa. “A única maneira de conservar esses ambientes é abdicar do modelo caótico e desordenado de ocupação e urbanização das margens”, sentencia Motta.

Apesar de terem margens menos densamente povoadas, a Mirim e a Mangueira não estão livres da ação humana. A maior preocupação aqui é a rizicultura, principal atividade agrícola da região. A água drenada das lagoas alaga os campos cultivados com o arroz, o que afeta o equilíbrio, principalmente em tempos de estiagem. Além disso, os agrotóxicos e pesticidas provocam contaminação.

“A degradação causada pela agricultura é mais sutil, menos visível do que os danos decorrentes da urbanização. Mas nem por isso deixa de ser um problema grave”, completa Motta, que estuda a estrutura e o funcionamento dos sistemas aquáticos da região, gerando conhecimento para fundamentar a discussão dos modelos de gestão para a conservação desses recursos.

A minúscula riqueza das águas da Mangueira

A descoberta da spirulina nas águas da Lagoa Mangueira alvoroçou a comunidade científica local há dez anos. Desde então, um projeto desenvolvido no Laboratório de Engenharia Bioquímica da Universidade Federal de Rio Grande (Furg) estuda as propriedades, condições de cultivo e maneiras de processamento da alga para utilizá-la na alimentação humana. Hoje, a Furg mantém lagos de cultivo de onde saem 70 quilos da alga por mês. Os pesquisadores transformam a spirulina em mais de 20 tipos de alimento, entre eles achocolatados, bolos, suco e macarrão, que são testados e distribuídos para escolas públicas de Rio Grande e Santa Vitória do Palmar.

Segundo o professor Jorge Vieira Costa, coordenador do Projeto Spirulina, a alga é rica em ácidos graxos essenciais, como ômega 3 e 6, e é a única fonte natural do corante azul ficocianina, um poderoso antioxidante que combate o colesterol e já reduziu tumores malignos em laboratório. Além disso, contém 60% de proteína, que é quase toda absorvida pelo organismo. A proteína de soja, por exemplo, tem uma taxa de absorção de 50%. “Testes já mostraram que a spirulina acelera a recuperação de crianças desnutridas. Por isso, destinamos às escolas das comunidades mais carentes os alimentos que produzimos”, comenta Costa. Cientistas brasileiros já discutem com o governo da África do Sul a implantação do Projeto Spirulina por lá, para combater a desnutrição infantil.

Além de alimento, a alga também funciona como um purificador do ar. A Furg desenvolve, em parceria com a Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (CGTEE), um projeto de captura do gás carbônico gerado pela Usina Termelétrica Presidente Médici, no município de Candiota. Tubos desviam parte da fumaça para tanques onde há o cultivo de spirulina. Os resultados, segundo Costa, ainda não foram concluídos, mas são animadores. “A spirulina é uma das mais eficientes algas para biofixação. Através da fotossíntese, esses organismos absorvem muito CO2 e devolvem grandes quantidades de oxigênio à atmosfera.”

Ah, e para quem achou pouco todas essas funções da pequena spirulina, fique sabendo que pesquisadores já estudam a produção de biocombustível com ela. Versatilidade invejável para o que é muitas vezes menor do que um fio de cabelo.