Um projeto de lei que regulamenta o uso da biodiversidade brasileira e dos conhecimentos dos povos tradicionais para a ciência e a indústria, atualmente no Senado, tem sido motivo de controvérsia entre ambientalistas, acadêmicos e setores empresariais. Se aprovada, a lei deve facilitar o desenvolvimento de produtos e de pesquisas. Da forma como está, porém, o texto cria uma brecha perigosa para a biopirataria e deixa desprotegido o elo mais fraco da cadeia: índios e comunidades tradicionais.

Institutos de defesa do meio ambiente alegam que esses povos não foram ouvidos no processo de elaboração do PL 7.735 e tiveram direitos fundamentais atropelados. Uma dessas prerrogativas é o poder que essas sociedades têm de consentir ou não na utilização de seus conhecimentos e propriedades.

“O projeto de lei não dá a esses povos o direito de dizer não. Esse era um dos grandes pilares da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Protocolo de Nagoya. Direitos indígenas garantidos pela própria Constituição brasileira e por outros dispositivos legais do país foram completamente esquecidos”, protesta Nurit Bensusan, coordenadora de biodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA).

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) reconhece os avanços trazidos pelo PL, mas faz ressalvas ao projeto. Para os cientistas, a lei pode dar dinamismo aos processos envolvendo o uso da biodiversidade e é feliz ao incluir na discussão o Ministério da Agricultura e da Pecuária (MAPA). Mas existe um ponto sensível na redação do texto, no que diz respeito à atuação de instituições estrangeiras. 

A Medida Provisória 2186, criada em 2001, que regulamenta a questão atualmente, obriga a pessoa jurídica internacional a estar associada a uma Instituição Científica e Tecnológica (ICT) brasileira para ter acesso aos recursos da biodiversidade. “A intenção é proteger o patrimônio nacional e ter parcerias para o desenvolvimento da ciência nacional”, explica Helena Nader, presidente da SBPC.

O PL derruba essa obrigatoriedade. “Isso é um risco para a soberania nacional. Estudamos a legislação de vários paí­ses, e a maioria – que inclui EUA, Canadá, toda a América Latina – tem mecanismos de proteção. Na China, para uma indústria se estabelecer nesse tipo de atividade, tem de contratar 50% de doutores do país”, alerta Nader.

 

Avanço

De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a lei possui pontos fracos, que não são consenso nem mesmo para o próprio setor. No entanto, ela representa um enorme avanço se comparada à medida provisória em vigor atualmente. “O Brasil tem quase 9% de toda a biodiversidade do mundo, mas nós mal começamos a explorar esse potencial por falta de uma legislação moderna”, lamenta Shelley Carneiro, gerente execu­tivo de Meio Ambiente e Sustentabilidade da CNI.

Atualmente, empresas interessadas no emprego desses recursos para a fabricação de produtos (fármacos, cosméticos, etc.) necessitam ter consentimento prévio do detentor do patrimônio e devem passar pelo crivo do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), do Ministério do Meio Ambiente. Também cabe às empresas repassar uma porcentagem dos lucros obtidos com a comercialização do produto final às comunidades que cederam o conhecimento. Para muitas das companhias, na prática, as exigências do CGEN dificultam os negócios e a falta de clareza da lei cria situações de insegurança jurídica. 

O polêmico projeto de lei corta caminho ao derrubar a exigência de autorização prévia dos povos tradicionais e flexibiliza as regras para a repartição dos benefícios.

Retrocesso

Segundo o ISA, esses são os pontos mais críticos do documento. Sem o poder de veto, não há nada que uma tribo possa fazer caso discorde das intenções de uma empresa. “Muito do conhecimento tradicional é compartilhado por diferentes comunidades. Com essa lei, aquele que não cede diretamente vai acabar ficando de fora da repartição de benefício de um conhecimento acessado em uma tribo vizinha. Vai virar um leilão”, critica Nurit Bensusan.

Para ela, o pagamento desses royalties será uma exceção. O texto do PL prevê que a distribuição incidirá apenas sobre produto acabado, deixando de fora processos intermediários. Assim, apenas o último elo da cadeia lucrará. A lei também estabelece que o conhecimento tradicional só será remunerado quando for considerado “elemento principal de agregação de valor ao produto”.

Além disso, o produto final deverá constar numa “lista de classificação de repartição de benefícios”, que será definida pelos ministérios envolvidos. “Essa lista, evidentemente, vai ser alvo de pressões setoriais sem fim, ninguém vai querer colocar o próprio produto nesse rol”, diz Nurit Bensusan. (Entenda melhor o que pode acontecer com a repartição de benefícios no exemplo do quadro abaixo).

O atraso da lei vigente parece ser o único consenso. Todos os setores concordam que é preciso modernizar a legislação que regulamenta o uso da biodiversidade. Mas essa mudança não pode ser feita às pressas, privilegiando os interesses de um grupo em detrimento de outro. Modificações nesse sentido estão na mesa do Senado, que ainda pode alterar o texto aprovado pela Câmara dos Deputados.