… Passado e presente

À esquerda, máscara em ouro feita no século 6 exposta no Museu do Banco Central; à direita, jovens estudantes peruanos cruzam as ruas do centro histórico de Lima.

É quase uma regra: quando se pensa em viajar ao Peru, logo vêm à mente as ruínas de Machu Picchu. A maioria dos turistas que viaja ao país vizinho tem como destino certo o mítico templo incaico, deixando Lima quase sempre como mera escala, com direito a um dia de city tour ou pouco mais. Não sabem o que estão perdendo. Uma visita a Lima revela de imediato duas faces dessa cidade moderna, com cerca de oito milhões de habitantes, que soube preservar tanto sua tradição colonial, com edificações do século 16, quanto sua herança ancestral, com ruínas que datam do século 4, um milênio antes de os espanhóis aportarem por ali.

FUNDADA em 1553 pelo conquistador espanhol Francisco Pizarro, Lima manteve a riqueza de suas edificações a ponto de pertencer ao seleto grupo das cidades que tiveram seu centro histórico declarado Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco, em 1988. Ali, a Praça das Armas é ponto inicial de quase todos os passeios pelas ruelas da antiga “cidade dos reis”, como é chamada, e facilmente você estará próximo a pontos importantes da história de Lima, tudo emoldurado por um chafariz desenhado por Gustave Eiffel, o mesmo arquiteto que criou a famosa torre francesa.

À frente está a Catedral, cuja construção começou no mesmo dia da fundação da cidade. Os livros de história (e os informativos turísticos) contam que originariamente ela era um templo modesto, mas, em 1564, o arquiteto Jerônimo de Loayza desenhou esse edifício de grandes dimensões, inspirado na Catedral de Sevilha, na Espanha. Mistura de vários estilos arquitetônicos, do barroco ao neoclássico, a Catedral de Lima também abriga os restos mortais de Pizarro, morto em 1541.

O prédio vizinho, a sede do Arcebispado, exibe uma impressionante varanda entalhada em cedro da Nicarágua, uma madeira fina, que permite desenhos minuciosos. O número de detalhes e a beleza da composição em madeira não passam despercebidos por quem está em qualquer ponto da praça.

Desenhado em 1564, o atual edifício da catedral da capital peruana foi inspirado na Catedral de SEVILHA, na Espanha

Praça de Pizarro

No alto da página, geral da Praça Mayor, onde se concentram os pontos importantes do centro histórico; acima, as varandas externas características da arquitetura limenha; ao lado, teto das galerias onde funcionou o antigo prédio do correio. Na página oposta, templo de Huacca Pucllana, no bairro de Miraflores.

Ao lado está o Palácio do Governo, também conhecido como Casa de Pizarro, por ter sido sua residência. É hoje a sede do Governo do Peru e residência do atual presidente da República, Alan García Pérez. Começou a ser construída em 1553, junto com a catedral e a praça, e possui enormes pátios e salões dedicados a personagens da história peruana. Diariamente, às 11h45, no Pátio de Honra, ocorre a troca da guarda, muitas vezes com a presença do próprio presidente. Se você já está na praça, vale a pena dar uma olhadinha na cerimônia.

Se você gosta de caminhar, não hesite em seguir pelas ruas menos conhecidas do centro histórico, que também exibem ótimos exemplares da arquitetura colonial e alguns atrativos bem interessantes. É o caso do Museu do Banco Central, que hoje abriga uma bela coleção de tesouros ancestrais do país, com uma seleta exposição de peças em ouro, guardadas onde já foi o cofre do banco.

Fundada em 1553, Lima pertence ao SELETO GRUPO das cidades declaradas Patrimônio Histórico da Humanidade

Há também o Museu da Inquisição, onde estão expostos instrumentos de tortura de uma época que felizmente só se preserva em locais como esse. Embora não chame a atenção de todos, por seu tema funesto, está cheio de curiosidades e informações históricas que justificam a visita.

Caminhando mais algumas quadras, você está na Igreja e no Convento de São Francisco, esse sim um passeio à parte, imperdível. Do lado de fora, as torres da Igreja, erguidas em 1674, exibem um tom de amarelo que atrai até os olhares mais distraídos. É considerado o maior conjunto monumental de arte colonial da América.

Já no primeiro andar, chama a atenção a Biblioteca do Mosteiro, com suas estantes, escadas em caracol e uma mobília antiqüíssima que enche os olhos de quem gosta de um bom livro ou desse clima de mistério sempre presente nas bibliotecas. Mais à frente, o guia nos conduz a uma sala do órgão, com centenas de cadeiras entalhadas, e à sacristia, repleta de imagens adornadas com ouro, azulejos espanhóis e belas pinturas dos séculos 17 e 18.

Só então chegamos ao ponto mais emocionante do passeio: sob o Convento de São Francisco foram preservadas misteriosas catacumbas, repletas de ossos humanos que foram enterrados ali desde o início de sua construção. Ao entrar, o clima dá um frio na barriga, com a iluminação avermelhada, trêmula, e um pungente cheiro de terra no ar. Grandes poços e valas exibem milhares de ossos agrupados, muitas vezes de forma displicente, mas na maioria das vezes em desenhos geométricos que combinam crânios, ossos das pernas, dos braços…

Segundo os historiadores, ali estão enterradas mais de 25 mil pessoas, que morreram em Lima até 1808. Foi nesse ano que se construiu o primeiro cemitério da cidade, e as catacumbas foram fechadas. Viraram um patrimônio de valor incomensurável. Mesmo que você não goste muito do tema, o silêncio que reina em todo o convento e a sua beleza irônica ajudam a refletir e, sem dúvida, dão mais fôlego para continuar o passeio.

… Cultura do ouro

No alto da página, parque El Olivar, no bairro de San Isidro. Acima, à esquerda, depósitos abertos à visitação do Museu Larco Herrera; à direita, traje cerimonial da cultura chimú, que viveu no Peru de 1300 a 1532 d.C.

Fora do centro histórico, o viajante pode voltar alguns séculos na história, indo direto a museus e ruínas que guardam a herança dos ancestrais peruanos. Aliás, aí está outro ponto importante para quem visita o Peru: além dos incas, há muitas outras civilizações (ainda mais antigas) que viveram espalhadas pelo país, como a mochica, a chimú e a vicu. Na verdade, os incas ficaram conhecidos por terem sido a civilização que mais teve contato com os europeus (e foi destruída por eles).

A grande maioria das árvores presentes no parque EL OLIVAR tem mais de quatro séculos de idade e ainda produz AZEITONAS

No bairro de Pueblo Libre está o Museu Larco Herrera, um dos mais importantes da cidade. É conhecido por seu grande acervo de peças mochica, civilização pré-incaica que viveu no norte do país do século 1 ao 6. Além das exposições permanentes de jóias, peças em cerâmica, artefatos de guerra e artísticos, o museu mantém seu acervo aberto ao público, em salas nas quais os visitantes podem circular livremente e apreciar mais de 45 mil peças, num grande mosaico da cultura pré-colombiana.

… Sacristia do convento

Maior conjunto monumental de arte colonial das Américas, o Convento de São Francisco, em Lima, possui uma sacristia (foto) repleta de imagens adornadas com ouro, azulejos espanhóis e belas pinturas dos séculos 17 e 18.

Outro ponto de destaque é a Sala Erótica, uma coleção de peças cujo tema é a relação de vários povos ancestrais com o sexo. São cerâmicas que certamente deixaram os europeus de cabelo em pé, com cenas de sexo explícito que demonstram como, para esses povos, o ato sexual era reverenciado como uma forma de transcendência.

Já as construções deixadas por eles estão preservadas em meio à modernidade da cidade grande. A mais interessante é o templo de Huaca Pucllana, no belo bairro de Miraflores, o mais requintado e famoso da capital. Entre casas e prédios, mantiveram- se em pé os traços da cultura lima, que deu nome à cidade, e que viveu entre os séculos 2 e 7. Huaca Pucllana abrigou um importante centro cerimonial e administrativo précolombiano e é hoje um dos cartões postais da cidade.

No bairro de SAN ISIDRO está o templo de Huaca Huallamarca. Um pequeno museu é o ponto de partida, seguido por uma caminhada até o topo da edificação. Segundo os arqueólogos, esse templo foi usado como habitação e cemitério do povo hualla, que viveu por ali do século 6 ao 16, até a chegada dos incas.

Ainda em San Isidro, uma boa pedida é dar um passeio pelo parque El Olivar, bem perto dali, que nos transporta para o presente a partir de uma herança deixada pelos colonizadores. Uma simples olhada já permite reconhecer que a grande maioria das árvores ali presentes são imponentes oliveiras, quase todas com mais de 400 anos de idade e ainda produzindo olivas. Chegaram com os espanhóis no século 16 e se adaptaram bem. Ainda hoje, há regiões no Peru que são grandes produtoras de azeite, como é o caso do Vale de Tacna, no sul do país. É certo que as que foram plantadas no parque El Olivar são procuradas muito mais pela sombra que oferecem, num local dedicado ao descanso e ao lazer, mas envolto em história.

DICA: Em Lima, a corrida de táxi é bem barata, mas antes é preciso se informar do preço cobrado com os moradores da cidade. Como não há taxímetros, alguns taxistas cobram mais caro dos turistas, muitas vezes até em dólar, que vale três vezes mais que a moeda local, o nuevo sol.