A participação militar brasileira em missão no Haiti, de 2004 a 2017, e uma série de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) ocorridas na década passada, sobretudo no Rio de Janeiro, estão no cerne da ampliação do papel dos militares na política. Este é o argumento trazido pelo recém-lançado livro Dano Colateral: a intervenção dos militares na segurança pública, da jornalista Natalia Viana.

“O [presidente Jair] Bolsonaro se aproveitou disso e, como formou um governo que é de militares, chamou esses mesmos líderes”, afirma Vieira, diretora da Agência Pública, organização de jornalismo investigativo sem fins lucrativos.

Seu ponto de partida foi o caso ocorrido em abril de 2019 no Rio de Janeiro, quando o músico Evaldo Rosa dos Santos e o catador de recicláveis Luciano Macedo foram mortos por militares — com o disparo de 80 tiros contra o carro de Santos. A Polícia Civil informou na ocasião que tudo indicava que o veículo foi confundido com o de criminosos. O catador morreu quando tentava ajudar o músico e sua família. O julgamento do caso está previsto para setembro.

Viana se debruça sobre este e outros casos para explicar os “danos colaterais”, em suas palavras, acarretados pelo uso das Forças Armadas em operações de segurança pública.

“Mais de 70% [dos jovens militares] acreditam que seja papel do Exército combater o tráfico [de drogas], o que é um problema, porque isso é questão de segurança e não uma guerra. No Brasil não tem pena de morte. Se você coloca o Exército para combater o traficante, a missão seria matar [o criminoso], o que vai contra nossa legislação”, argumenta em entrevista à DW Brasil.

DW Brasil: O pesquisador Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, escreveu que seu livro serve para compreendermos como as operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) e a missão no Haiti “ajudaram a impulsionar a volta dos piores das fardas à elite do poder”. Por que são os piores das fardas que voltaram ao poder? Militar sério não entra em política?

Natalia Viana: Não acho que só os maus militares entram na política. Obviamente os que aparecem na imprensa acabam sendo aqueles que estão envolvidos em esquema de corrupção, vendas paralelas de vacina, etc. O problema não é ser bom ou mau militar. O problema é que militares são treinados numa lógica hierarquizada e pautada pela disciplina, o oposto da instituição democrática. Isso é natural, faz parte do que é uma força armada, um exército: homens armados que abrem mão de seu direito mais essencial, o da vida, para proteger o país e o território. A questão é que militares não devem se envolver em política.

Eles entraram na política para tentar consertar o que, a seus olhos, julgavam que estava errado. Mas essas pessoas não devem participar da política. Não tem como você estar dentro de uma hierarquia sólida que tem de ser respeitada e, ao mesmo tempo, participar da política, entrar em governo.

Também há problemas de doutrina e ensinamento em nossas Forças Armadas. Há uma decisão da cúpula de não se ensinar o apego à democracia como valor superior. Isso é expressado pela maneira como eles decidiram recontar a história da ditadura, está descrito no livro do [general e ex-comandante do Exército] Eduardo Villas Bôas [Conversa com o Comandante, em depoimento a Celso Castro] que eles analisaram que pedir desculpas [pelos horrores da ditadura militar] abaixaria o moral da tropa e poderia levar a processos criminais. Decidiram não fazer isso e abraçar uma narrativa de que eles salvaram o país ao dar um golpe militar. Isso está arraigado, é isso que se ensina até hoje nas escolas do Exército. Por princípio, os jovens militares aprendem que dar um golpe de Estado é justificável.

A experiência brasileira no Haiti resgatou o sentimento de autoridade de parte dos militares brasileiros?

Ela marcou uma geração de militares. Foi a grande missão — durou 13 anos e envolveu mais de 30 mil militares brasileiros. Nela criou-se uma doutrina de GLO que depois veio a ser aplicada no Brasil. Esses oficiais que foram ao Haiti passaram a ser muito bem-vistos dentro do nosso Exército e também pela sociedade. Muitos se tornaram comentaristas de política e de temas internacionais, acabaram sendo chamados para participar de política. O [presidente Jair] Bolsonaro se aproveitou disso e, como formou um governo que é de militares, chamou esses mesmos líderes.

As operações de GLO tiveram esse mesmo papel?

Elas cresceram muito em escopo e também em formato. Foram oficializadas, profissionalizadas e ampliadas em sua forma de ser a partir de 2010, com a ocupação do [Morro do] Alemão [no Rio de Janeiro]. Os oficiais e soldados que participaram passaram a ser respeitados pelos seus pares. Uma Força Armada tem o objetivo de entrar em guerras. Na ausência de guerras, um conflito urbano acaba entrando no imaginário.

Mais de 70% [dos jovens militares] acredita que seja papel do Exército combater o tráfico [de drogas], o que é um problema porque isso é questão de segurança e não uma guerra. No Brasil não tem pena de morte. Se você coloca o Exército para combater o traficante, a missão seria matar [o criminoso], o que vai contra nossa legislação. Ao mesmo tempo, as GLOs acabaram se convertendo em poder de barganha dos políticos.

Seu livro parte da execução do músico Evaldo Rosa, ocorrida em 2019. Dois anos depois, aquele Brasil parece apenas um rascunho do atual — agravado pela pandemia e com o presidente cada vez mais demonstrando não ter nenhum apreço pelas instituições democráticas. O processo de militarização do poder segue aumentando ou retrocedeu, nesse período, com cargos rifados entre evangélicos, ruralistas e Centrão?

A nossa política já está militarizada, ou seja, os militares estão agindo muito tranquilamente na arena política, tanto os da atividade quanto os da reserva. Há um engano muito grande na análise desses momentos de acordo com o Centrão, como se estivéssemos falando de um grupo ideológico qualquer… São indivíduos [os militares que se tornaram políticos] que são pagos inclusive pelo erário público e que estão engajados no governo federal na função de civis, inclusive mantendo seus salários pagos por serem militares. O eixo não deve ser “agora o Centrão está mandando”, “agora os militares estão mandando”, todas as ameaças que ocorreram são inaceitáveis numa democracia.

Você não pode ter um ministro da Defesa, um general estrelado, que faça uma ameaça a um chefe de outro poder [Braga Netto teria condicionado a realização das eleições de 2022 à introdução do voto impresso, segundo reportagem], isso não existe em qualquer democracia saudável. O fato de isso ter acontecido já demonstra que não estamos em uma democracia funcional. Isso ligado aos incidentes recentes do próprio presidente questionando a legitimidade das urnas é exageradamente preocupante. Precisamos descobrir, como sociedade, como sair desse buraco, para que isso não se repita.