A estátua de Federico García Lorca fica na Praça de Santa Ana, no Bairro das Letras, em Madri. À direita, textos de escritores gravados nas calçadas.

Algumas cidades e regiões mantêm uma relação direta com a literatura. A Lisboa de Fernando Pessoa, a Paris de Marcel Proust, o sertão de João Guimarães Rosa ou ainda o Rio de Janeiro de Machado de Assis sempre revelaram aspectos inusitados desses locais e de sua gente. Não é diferente com Madri, ainda que na capital espanhola não sejam apenas a vida e a obra de um único escritor que nos sirvam de roteiro, mas as de vários, concentrados em um bairro inteiro. É conhecido como Bairro das Letras, no centro histórico da cidade.

O lugar foi morada de um grande número de artistas, entre eles escritores, dramaturgos e poetas do século 17, tido como o Século de Ouro Espanhol. Teve como ícones Miguel de Cervantes, Lope de Vega e Calderón de La Barca, entre outros. Foi assim chamado pela pujança ocorrida nas artes, na literatura e na dramaturgia. Coincidiu com o período em que a cidade começava a se expandir numa região ainda repleta de pequenas propriedades rurais e tinha como uma das principais artérias a Rua de las Huertas (Rua das Hortas).

Nela foram erguidas construções mais modernas, a maioria de dois andares, que estavam de acordo com o modo de vida dos novos cidadãos, em geral pessoas que não precisavam de casas tão grandes, com espaço para criados ou mesmo para a criação de animais. Era o caso dos artistas, que passaram a viver por ali.

O passeio pode começar pela Praça Mayor, um dos pontos mais visitados da cidade, e seguir até a Praça de Santa Ana, a primeira parada. No caminho, é fácil perceber que se está entrando no Bairro das Letras, pois se vê uma série de textos gravados nas calçadas, com letras de metal, que trazem frases e referências a obras literárias de vários escritores que viveram ali ou escreveram sobre a região.

Abaixo, à esquerda, a Plaza Mayor; e a estátua em homenagem a Calderón de La Barca, na Praça de Santa Ana.

 

Na Praça de Santa Ana, logo chama a atenção uma estátua em homenagem a Calderón de La Barca, um dramaturgo e poeta espanhol do século 17 tido como um dos formadores da identidade cultural do país, com uma obra decisiva e vasta na história do teatro em língua castelhana.

Do outro lado da praça, uma estátua homenageia um dos mais famosos poetas espanhóis, Federico García Lorca, morto em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, que fortaleceu Francisco Franco no poder, mantendo uma ditadura até 1976.

À frente está o Teatro Espanhol, erguido em 1849 e conhecido como Teatro de Maria Pacheco, em homenagem à mulher que começou a realizar espetáculos em sua casa, no início do século 17, nesse mesmo local, considerado o primeiro teatro espanhol. Ela colocou um tablado ao centro e começou a realizar apresentações de vários dramaturgos e poetas da época, como Calderón e Lope de Vega.

O Teatro de Espanha

A Casa Alberto, uma das tabernas mais tradicionais de Madri; e um dos locais onde Miguel de Cervantes viveu.

Emaranhado literário

Próxima à Praça de Santa Ana encontra-se a Rua de las Huertas. Ali, uma das primeiras paradas é a Casa Alberto, taberna fundada em 1827, de grande valor histórico e etílico. Foi no segundo andar desse edifício que Miguel de Cervantes viveu e escreveu a segunda parte do clássico Dom Quixote de La Mancha, lançado em 1615, e concluiu Viagem ao Parnaso, outra de suas grandes obras. A taberna, por sua vez, ainda mantém seu balcão de pedra e suas antigas torneiras (grifos), de onde se retira o vermute de grifo, uma das bebidas tradicionais da Espanha. Hoje é conhecida por seu ótimo chope e pelos tigres rebozados, um tipo de mexilhão empanado “de chupar los dedos”, como dizem os espanhóis.

A casa quevedo hoje é um restaurante, sem grandes atrativos, embora guarde uma história de rivalidade com luis de góngora

Descendo pela Huertas chega-se à Rua José Echegaray, que ganhou esse nome em homenagem ao primeiro escritor espanhol a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1904. Ele nasceu em Madri, em 1832, e é autor de A Esposa do Vingador, Loucura e Sanidade e Mariana, obras lançadas no século 19 e pouco conhecidas no Brasil.

Mais alguns metros e entra-se num verdadeiro emaranhado de escritores e histórias: na Rua Lope de Vega há a antiga casa do escritor Francisco de Quevedo. Mais adiante fica o Convento das Trinitárias Descalças, onde está enterrado Cervantes, e paralela à Rua Lope de Vega encontra-se a Rua Cervantes, onde está localizado o Museu Lope de Vega.

 

A casa de Quevedo hoje é um restaurante, sem grandes atrativos, embora guarde uma história de rivalidade com Luis de Góngora, outro grande escritor da época. Foram personagens de uma verdadeira guerra de egos, algo comum naquele tempo, chegando ao ponto de Góngora, que era muito mais rico que Quevedo, comprar às escondidas a casa onde ele vivia (de aluguel) só para vê-lo sair à força. É certo também que Cervantes e Lope de Vega foram grandes rivais.

O fato de o autor de Dom Quixote estar enterrado num convento também merece atenção: depois de participar da Batalha de Lepanto, na Grécia, em 1571, contra os turcos, foi preso no retorno para a Espanha. Apanhado por corsários e levado para um cativeiro na Argélia, ficou cinco anos preso, sendo libertado mediante um pagamento feito pelas Trinitárias Descalças, que tinham como missão ajudar prisioneiros. Como retribuição, Cervantes pediu para ser enterrado ali, numa capela dentro do convento.

Mais alguns metros e encontra-se uma das maiores atrações do Bairro das Letras, a Casa Museu Lope de Vega. Logo na entrada, chama a atenção a frase esculpida na pedra: “Parva Propria Magna, Magna Aliena Parva” (pequena própria é muito, grande dos outros é nada), indicando que, apesar de ter tido muito sucesso em sua época, viveu tempos difíceis e soube valorizar o que teve. Lope comprou a casa em 1610 e nela permaneceu os últimos 25 anos de vida, até 1635, quando faleceu aos 73 anos. Embora a maioria do mobiliário não tenha realmente pertencido ao escritor, o local é um retrato fiel dos usos e costumes da época.

No topo , a casa onde Miguel de Cervantes viveu e morreu, na Rua Cervantes. Na foto central, a Rua Lope de Vega, próximo ao Convento das Trinitárias Descalças. Abaixo, a fachada do mesmo convento.

 

Usos e costumes

Na casa, cada ambiente foi reconstruído com peças originais do século 17, a partir de um minucioso inventário feito após sua morte. O primeiro local da visita é uma pequena capela que Lope de Vega mandou construir, aos 52 anos de idade, quando resolveu virar sacerdote, após a morte de sua segunda esposa. No entanto, sua vida era um exemplo das contradições da época: embora fosse muito religioso, era extremamente ligado aos prazeres da vida, tendo sido infiel e sedutor até o fim de seus dias. Sua casa evoca tal fato, pois em seu quarto ele mandou fazer uma pequena janela de onde via a capela. Diz-se que levava as mulheres até lá e já fazia sua confissão para dormir tranquilo.

Nesse mesmo quarto, uma pequena bacia simboliza que o Século de Ouro foi de ouro somente na arte, pois a Espanha encontravase num grande atraso no que diz respeito aos costumes, principalmente no asseio e na higiene. Estamos na época do “água vá”, quando se jogava a bacia cheia de “dejetos corporais” pela janela. Para avisar quem estava embaixo, gritava-se “água vá” (água vai) e… Esse método gerou várias enfermidades e epidemias, o que só mudou com o rei Carlos III, que começou a canalizar as fossas no século 18.

Uma das salas mais impresionantes é o estúdio de Lope de vega, com uma bela biblioteca, onde sabe -se que ele passava horas escrevendo

Durante o passeio também se visitam o estúdio, a cozinha, o quarto das empregadas, o quarto dos filhos e o quarto de hóspedes, que dão uma ótima dimensão de como se vivia naquela época. Uma das salas mais impressionantes é justamente o estúdio do escritor, com uma bela biblioteca, onde, segundo se sabe, Lope passava horas escrevendo. Era capaz de escrever mais de 3 mil versos numa noite, à luz de vela.

Nasceram ali obras como Fuenteovejuna, El Perro del Hortelano e Peribáñez, todas muito pouco conhecidas no Brasil, mas que são regularmente encenadas por grandes companhias espanholas. Para quem vai permanecer na cidade por mais tempo, a dica é ficar atento à programação cultural do Bairro das Letras, que é vasta. Depois desse passeio pelo mundo real dos escritores, a ficção terá uma outra dimensão, muito além das palavras e das letras.

No topo , azulejo do Bairro das Letras com a imagem de Lope de Vega. Nas fotos abaixo, o estúdio e biblioteca; e o quarto dele na Casa Museu Lope de Vega.

 

Serviço

Roteiro Bairro das Letras – A Secretaria Municipal de Turismo realiza passeios guiados pelo Bairro das Letras. O ponto de partida é o Centro de Turismo da Praça Mayor, número 27, de onde saem grupos nos fins de semana acompanhados de um guia especializado. Funciona todos os domingos, a partir das 10 horas. É preciso agendar antecipadamente. Mais informações: www.esmadrid.com

Casa Museu Lope de Vega – Rua Cervantes, 11. Funciona de terça a domingo, das 10 horas às 15 horas. É necessário agendar antecipadamente. Informações e reservas: tel. 00 34 91 429 92 16.