A prova dos noves será o primeiro teste industrial da Usina Termelétrica de Kemper, no sul dos Estados Unidos, que começa a funcionar no fim deste ano.

A salvação ambiental da indústria do carvão, o mais barato e poluente dos combustíveis fósseis, pode estar sendo construída no Estado do Mississippi, no sul dos Estados Unidos. A um custo de cerca de US$ 5 bilhões, a Usina de Energia do Condado de Kemper, que deverá estar pronta no fim do ano, é considerada pela Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA, em inglês) como a primeira termelétrica americana realmente capaz de capturar e armazenar suas emissões de gás carbônico de acordo com as novas normas baixadas pelo governo do presidente Obama para o setor.

Se for bem-sucedida, Kemper pode reabilitar o uso do carvão na produção de energia, setor responsável por 38% das emissões americanas de gases-estufa – um dos mais poluentes da economia do país. O carvão respondeu, em 2013, por 39% da geração de energia dos EUA, dez pontos percentuais a menos do que em 2007. Na China, fornece 74% da energia do país. Em termos globais, o carvão gera quase 27% da energia do mundo. Diante desses números, não falta quem o considere “indispensável”. 

Enquanto a usina de Kemper não entra em funcionamento, a briga entre interessados e críticos, favoráveis à limitação do uso do carvão, segue feroz. Os últimos afirmam que a eficiência da tecnologia Carbon Capture and Storage (CCS), da qual Kemper é o exemplo mais vistoso, não está comprovada. Já os políticos apoiados pela indústria aproveitam o argumento e os custos da CCS para tentar reduzir as exigências da EPA. Bilhões de dólares e o futuro do carvão estão em jogo.

Depois de 20 anos de planejamento e parceria entre o Departamento de Energia dos EUA e a Southern Company (controladora da Mississippi Power, dona da usina de Kemper), a termelétrica produzirá 582 megawatts-hora queimando anualmente 4 milhões de toneladas de linhito (carvão de qualidade inferior, com alto teor de carbono) extraídas dos morros atrás da usina. Matéria-prima não falta: o Mississippi possui reservas exploráveis de 4 bilhões de toneladas de linhito.

Reciclar e enterrar

Nada menos do que dois terços do gás carbônico liberado no processo não irão para a atmosfera. Não há magia. Uma parte do CO2 capturado será bombeada para empresas que o usarão na recuperação de petróleo de poços antigos, inacessível por métodos convencionais, e o restante será armazenado sob a terra, onde pode ficar por milhares de anos. “A pegada de carbono de Kemper é essencialmente a mesma ou até menor do que a de uma planta movida a gás natural que não captura CO2”, diz Randall Rush, engenheiro da Southern e um dos responsáveis pela concepção da usina. “Kemper é a primeira desse tipo que pode mudar o jogo da energia”, afirma John ompson, ambientalista diretor da Clean Air Task Force, que apoia o projeto. No momento, a usina do Mississippi é a única em construção movida a carvão financiada com dinheiro do governo. Cinco outros projetos, apesar de disporem de bilhões de dólares em subsídios de Washington, não têm tido sorte semelhante: já houve desistências, adiamentos  e crises financeiras. 

O motivo por trás das dificuldades, segundo analistas, são as duras regras governamentais que restringem a liberação de gases-estufa. Normalmente, uma termelétrica movida a carvão emite o dobro de CO2 de uma termelétrica a gás natural. Em 2011 e 2012, os Estados Unidos fecharam usinas a carvão que geravam 14 gigawatts de eletricidade. Calculase que outras plantas poluidoras, responsáveis por 63 gigawatts, cerrem suas  portas até 2017. 

Mas Gina McCarthy, a própria diretora da EPA, aposta em Kemper e em três outros projetos similares como exemplos de adequação do carvão à nova matriz energética americana regida pela preocupação com o efeito estufa. “Em vez de matarem o futuro do carvão, as novas normas estabelecem, de fato, uma trilha garantida para o carvão continuar a ser parte da matriz variada deste país”, afirma. 

Kemper se enquadra nas regras, mas os cuidados que requer e os atrasos na sua construção já produziram um custo astronômico. Pela proposta inicial, em 2009, ela sairia por US$ 1,8 bilhão. Em 2010, quando a construção foi aprovada pela Comissão de Serviço Público do Mississippi, a conta já havia subido para US$ 2,9 bilhões. Em maio de 2014, o valor bateu em US$ 5,2 bilhões. 

A Southern atribui o atraso a custos trabalhistas subestimados e à quantidade de tubos de aço, concreto e materiais necessários para a obra. A fim de reduzir a conta a ser paga pelos consumidores – entre os mais pobres do Mississippi –, a usina obteve um abatimento fiscal de US$ 1,18 bilhão  e convenceu o Legislativo estadual a bancar mais de US$ 1 bilhão em títulos da empresa.

Curiosidade cética

Um estudo da tradicional organização ambientalista Sierra Club mostra que Kemper é a mais cara usina já construída em relação à energia que vai gerar. O preço do quilowatt deverá superar US$ 6.800. Numa usina a gás natural americana, ele fica em US$ 1.000 e, numa planta nu clear, em US$ 5.500, revela a U.S. Energy Information Administration. 

Os defensores da termelétrica afirmam que assim que a usina comprovar sua viabilidade, os custos baixarão nos projetos seguintes. Já os opositores consideram os custos um absurdo sem tamanho. Para o Sierra Club, por exemplo, investir no carvão embalado no rótulo CCS é pura perda de tempo. “Ele é caro, sujo e desnecessário”, diz Louie Miller, diretor da entidade. Para Miller, tentativas como a de  Kemper só perpetuam o emprego do carvão e adiam a transição para a energia renovável. 

A Southern, por seu lado, não está tão preocupada com os gastos gerais: se Kemper vingar, ela poderá vender a tecnologia para países ricos em linhito, como China, Índia, Paquistão e Polônia. Não faltam interessados. 

O físico brasileiro José Goldemberg, especialista em energias renováveis, acompanha a polêmica com interesse e curiosidade. “A tecnologia CCS até agora tem sido feita em pequenos projetos-piloto. Ao que tudo indica, ela funciona, mas é cara”, avalia. “Kemper, primeira usina em escala industrial, segundo matérias recentes publicadas na imprensa, seria de fato ‘limpa’, mas seu quilowatt custaria bem mais caro do que o produzido por outras fontes. O mais interessante é ver se de fato a usina será ‘limpa’, apesar de cara.” 

Se não houver novos atrasos, no fim do ano o mundo conhecerá a resposta a essa dúvida. 

 

******

Risco planetário

O quinto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em abril, é o mais contundente sobre os impactos das mudanças climáticas no planeta. Segundo o documento, em 2010, 49 gigatoneladas de CO2 equivalente foram emitidas na atmosfera, o maior nível desde o início das medições. No cenário mais temido, a temperatura média da Terra podesubir 8°C até o fim do século, com consequências imprevisíveis.

Para a elevação ser de 2°C, o mundo teria de reduzir as emissões de gases-estufa entre 40% e 70% até 2050, e a patamares ao redor de zero até 2100. Mas, no padrão atual, até 2050 só o setor de energia deverá emitir o dobro ou o triplo do CO2 lançado em 2010. Até agora, nenhum governo admite abdicar dos combustíveis fósseis. Mesmo assim, há esperança. No mês passado, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA anunciou novas regras para reduzir em 30% as emissões das geradoras de energia do país até 2030, atingindo as usinas de carvão. No dia seguinte, a China supreendeu o mundo ao anunciar novas medidas para controlar a emissão de CO2 no seu plano quinquenal. 

 

******

Aposta chinesa

Para um país rico em carvão, mas pobre em recursos energéticos e que precisa desesperadamente de energia, a opção da China pelo mineral poluente é previsível, dada as suas reservas. Mas o alto custo ambiental abre um espaço importante para a tecnologia CCS. 

O país tem hoje 12 projetos de CCS em planejamento ou construção, o maior número no mundo, quase todos cercados de sigilo. O mais importante é o de Wulanmulun, que a estatal Shenhua, a maior produtora nacional de carvão, ergue desde 2010 no norte da China. Construído com a ajuda do governo de Beijing e o apoio de cientistas americanos e chineses, Wulanmulun concluiu sua primeira fase em 2013 capturando 110 mil toneladas de CO2, armazenadas num aquífero subterrâneo de água salgada. 

Quando estiver concluída, em 2020, a usina deverá capturar e armazenar 2 milhões de toneladas de CO2 por ano, a um custo sigiloso. A tecnologia CCS parece ser o único caminho viável para a China crescer sem depender de fontes  externas nem sacrifi car ainda mais o meio ambiente e a saúde da população.