Crime triplamente qualificado. Mortos de três maneiras – afogados, apunhalados e estrangulados com garrote ou decapitados –, os corpos de homens com idade entre 24 e 40 anos contam muito do passado da humanidade e das tribos celtas que viviam na Irlanda, 700 anos antes da Era Cristã. Mais de 2.700 anos depois de suas mortes, eles podem ser vistos no Museu Nacional da Irlanda, em Dublin, num impressionante estado de conservação. A pele parece couro, em parte pelo efeito da presença do ácido tânico no bog (turfa pantanosa típica da região), mas ali estão cabelos ainda cuidadosamente penteados, poros visíveis e unhas bem cuidadas.

Quem eram eles? O que faziam? Por que morreram de forma cruel? Com entusiasmo, Eamonn Kelly, arqueólogo responsável pelas antiguidades irlandesas do museu, fala da riqueza que a descoberta dos bogmen trouxe à atualidade. Os dois corpos foram achados por acaso, em 2003, quando alguém escavava o solo. Embora mutilados, estavam em excelente estado de conservação e confirmaram teorias antes conhecidas somente através de lendas e da mitologia celta.

Minuciosamente estudados, os bogmen conhecidos como Old Crogham Man e Clonycavan Man indicam pelas mãos sem sinais de trabalho pesado, pelas unhas bem cuidadas e pelos cabelos tratados terem sido homens poderosos, ricos, líderes tribais ou reis. Mas que, uma vez condenados, sofreram um dos três tipos de morte para depois serem enterrados no pântano. O que teriam feito?

Na Irlanda celta, o rei, chefe tribal, era o Sol, casado com a deusa Terra. Esse era um pacto sério, estabelecido no dia da consagração como rei, quando prometia à deusa que o gado estaria protegido das pragas e a tribo, protegida das doenças. “Era ele o responsável pelo bem-estar do seu povo. Se fosse justo, só coisas boas aconteceriam. Caso ocorressem calamidades, não importava a razão – poderia ser um problema climático, uma praga agrícola ou uma guerra –, o rei seria responsabilizado e pagaria o preço, sendo sacrificado”, explica.

Tratados com deferência, os restos mortais estão em exibição de forma respeitosa no museu. Cada um ganhou um espaço próprio, com paredes arredondadas, ocultos do olhar de quem está apenas de passagem. Só serão vistos por aqueles que realmente desejarem entrar na área de exposição devidamente sinalizada e com informações do que irão encontrar.

“Esses corpos são, de fato, evocativos. Você pode imaginar aqueles braços acariciando a amada ou empunhando uma espada. Há uma personalidade ali, preservada nos restos mortais”, diz Kelly, um apaixonado pela arqueologia desde os 12 anos de idade, atual Keeper of Irish Antiquies (curador de antiguidades) no Museu Nacional da Irlanda, onde entrou em 1975.

“A mitologia dá dicas importantes, assim como o folclore, mas ambos fornecem apenas parte da fotografia”, diz Kelly. Os corpos adicionaram conhecimento ao que já se sabe, permitindo compará-los com material mitológico para entender melhor as tribos irlandesas do passado.

Tanto Old Crogham Man como Clonycavan Man, da Idade do Ferro, foram encontrados na Irlanda central, em sítios diferentes, em territórios tribais, junto a colinas em que reis eram consagrados. Além deles, o museu guarda o Gallagah Man, em pior estado de conservação, encontrado em 1821, quando as técnicas de preservação eram primárias.

Esse teria vivido entre 400-200 a.C. e estava na fronteira do reino de UL Mhaine, no condado de Galway. Estava nu, com uma capa de pele de veado amarrada ao pescoço por varetas de salgueiro usadas para estrangulálo como um torniquete. Achado em condições excepcionais de preservação, perdeu a barba e o cabelo devido às más condições de conservação. É impossível descobrir mais sobre ele.

Cada bogmen conta uma história violenta, preservada pela composição do solo. Esses pântanos e brejos, de solo esponjoso, formam-se ao longo de milênios pela acumulação e deterioração de material orgânico. São ricos em ácido tânico, mas pobre de oxigênio. O musgo e a turfa são naturalmente impregnados de antibióticos que eliminam bactérias e evitam a decomposição dos corpos. Mas sua composição destrói o DNA, tornando impossível rastrear geneticamente os descendentes dos bogmen. Durante séculos, torrões de turfa foram usados como combustível em casas pobres. O bog é abundante em países frios do Hemisfério Norte e da Irlanda central.

Neles também foram achados objetos da Idade do Ferro, tais como joias, armas, roupas, copos de metal e escudos de couro. Até uma vasilha com manteiga foi enterrada, provavelmente como oferenda para ser levada à outra vida.

“Vejo esses corpos como embaixadores do passado que vieram a nós com uma história para contar. Temos a responsabilidade de revelar o que aconteceu. Há milhares de anos, estas são histórias de tragédia e violência. Mas é bom lembrar que as histórias sobreviveram, enquanto seus assassinos não”, diz o arqueólogo. “Podemos dar algo de volta a essas pessoas contando suas histórias.”