Criadora de “vulva gigante” em Pernambuco, artista Juliana Notari diz, em entrevista à DW Brasil, que se assustou com a repercussão da escultura, mas que debates são importantes para “as feridas” da história brasileira.No penúltimo dia do ano, a artista plástica Juliana Notari fez uma postagem em sua conta do Instagram. “Em meio a tantas rochas no meio do caminho desse ano distópico, finalmente termino ano com a obra 'Diva' pronta!”, celebrou ela. Se seu post anterior teve 405 curtidas e 12 comentários, este acabou viralizando: 23.600 reações e mais de 5.000 comentários.

A repercussão a assustou. Compartilhada em grupos conservadores de redes sociais, ela passou a ser criticada pela escolha temática. “De repente veio um enxame de ódio”, diz ela. Um site publicou que a artista havia sido financiada com dinheiro público para criar uma “vagina gigante”. Fake news: “Diva”, resultado de uma residência artística de Notari, foi bancada pela Usina de Arte, uma instituição privada.

A segunda onda de críticas, segundo a artista, foi positiva. O meio artístico passou a discutir o fato de que a maioria dos operários que trabalharam na obra são negros, enquanto a artista é branca. E houve quem problematizasse o fato de que “Diva” ignorava as mulheres trans, exaltando o discurso de binaridade. Para Notari, tais discussões acabaram “elevando o debate, com críticas mais construtivas”.

Instalada em uma paisagem rural no município de Água Preta, Pernambuco, onde antigamente havia cultivo de cana-de-açúcar, “Diva” é uma “land art” com 33 metros de altura, 16 de largura e 6 de profundidade. Pintada de vermelho, representa simultaneamente uma vulva e uma ferida.

DW Brasil: Como foi a concepção dessa obra?

Juliana Notari: Já faz quase 20 anos que eu trabalho com essa figura da ferida vulva. Eu a usava em performances quando abria cavidades na parede para banhar com sangue de boi e depois enfiar um espéculo ginecológico (…). Depois passei a colar essa imagem em espaços públicos, em Berlim, em Veneza, em Amsterdã, fiz essas intervenções urbanas. Quando fui convidada pelo Mamam [Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, instituição conveniada à Usina de Arte], fiz uma residência de dois meses meses lá e tive a ideia de fazer essa ferida. Foram 11 meses para fazer. Foi uma obra supertrabalhosa, toda esculpida, sem máquina, porque senão não ia ter a precisão das formas que eu desejava. O bom de não usar máquina é que pudemos dar emprego para as pessoas de lá. Fizemos a escavação, depois recobrimos com cimento e depois colocamos uma camada de fibra de resina, então veio a tinta. Foi isso.

No dia 30 você fez um post no Instagram com a obra concluída. Foi isso que desencadeou as críticas?

Realmente foi isso. Esse post começou a receber ataques, começou a ser muito compartilhado. Na minha bolha eu recebia muitos elogios, só coraçãozinho. De repente veio um enxame de ódio, começaram os robominions, como eu chamo, a me atacar e aí a coisa tomou essa proporção.

Depois dos haters, o meio artístico também se posicionou, elevando o debate, com críticas mais construtivas. Apareceu a questão dos transgêneros, dos trabalhadores, tudo o que aquele post suscitou. Virou um debate mais rico. Havia uma caixa de pandora e dali saíram as feridas coloniais que ainda persistem, que traumatizam muita gente, que o Brasil não curou. Me assustou de alguma forma, mas eu acho muito positivo tudo isso.

Como você reagiu?

No começo, fiquei assustada e com ódio. Deixei um pouco esse ódio tocar em mim. Depois desprezei o ódio e comecei a não ter tempo de ler. Você não consegue ler as coisas, nem as boas nem as ruins, vê uma aqui ou outra ali. E o bom é que você não fica só no ódio. As reflexões causadas por essas feridas estão gerando debates, isso que é importante. A arte está aí para isso, não para passar panos quentes nas coisas. Está para levantar questões, deixar dúvidas, se autocriticar. Estou aprendendo muito com esse processo. A questão trans, por exemplo, eu não tinha muito conhecimento.

A questão racial também. Eu, na minha branquitude, quando postei aquela foto, claro que aqueles trabalhadores em sua maioria negros estavam ali porque é um problema social brasileiro, a arte só reproduz, a arte faz parte da sociedade. Aquela foto, apesar de reforçar esse padrão hierárquico exploratório colonial brasileiro também levantou essa questão. Se você faz uma foto em um canteiro de obras, a maioria são negros, se você vai para um set de cinema, quem está fazendo o trabalho desqualificado precarizado são negros, e são negros porque a escravatura é uma ferida aberta, os escravos tiveram a libertação mas não tiveram acesso à terra, à educação, saúde, nada. Estão aí morrendo nas periferias. Aquela foto trouxe essa questão (…). Ali é Palmares, é Zumbi dos Palmares, é uma área de resistência, de quilombos. Aquelas pessoas são remanescentes que persistem até hoje fazendo os trabalhos mais precarizados.

Mas polêmicas não são novidade em sua arte. Como você se define enquanto artista?

Minha arte sempre lidou com as questões que a sociedade tenta esconder, que não se mostram. As questões tabus, que incomodam (…). São coisas abjetas, que a sociedade ocidental reprime, tipo sangue, crueldade. Sempre teve o feminino traumático, são dois milênios de patriarcado em que o corpo da mulher sempre foi usurpado, domesticado pelo Estado e pela figura do homem cis branco. Minha obra trata dessas questões, da violência histórica no corpo da mulher. Esse trabalho faz isso também, só que de uma forma que ganha uma proporção mais monumental. O lugar onde está teve outra conotação. O momento em que a gente está vivendo fez com que tivesse essa repercussão.

Você acredita que ainda seja tabu uma arte que exalte o feminino?

É uma questão que a gente sofre. Mulher sofre no corpo, na pele, a experiência do tabu e da repressão. Desde o ser educada para ficar em casa, ser a recatada e do lar, ser a dócil, ser a que cuida, a que só faz serviços domésticos. A gente tem essa repressão na história. E a vulva foi, ao longo dos milênios de patriarcado, cortada, castrada, mutilada (…). Toda cidade tem um obelisco e não cria esse rebu. Agora, se fazem isso com a vulva, imagina com o corpo da mulher? A mulher está aí sendo feita de objeto para vender cerveja, vender qualquer produto e também para ser morta. O feminicídio subiu nos últimos tempos quando esses pensamentos patriarcais, sexistas e machistas passaram a ser reavivados no Brasil.

Mas acho importante dizer que a vulva ali, ela também é ferida. Muito mais ferida do que vulva. (…) Levar essa ferida para a natureza, botá-la na montanha [tem um significado]. Porque o que foi a monocultura, senão um estupro da terra? Enfim, essa grande ferida da natureza também está relacionada à vulva, isso amplia as possibilidades de expressão e apreensão da obra. Essa ferida da mãe-terra. Ferida amplia o campo, e ampliou ainda mais nesse debate que está ocorrendo agora, porque entrou a questão social, a questão dos transgêneros também. A crítica das trans que não podem ter vagina e acham que esse trabalho está reforçando a binaridade macho-fêmea. (…) Não é disputa de lugar, é uma soma. Uma não anula a outra. A trans, ela tem de estar no campo da arte, tem de ter visibilidade, inclusão. A arte é um campo da liberdade.