Tudo começou no aeroporto de Washington, nos Estados Unidos. Para fazer hora antes de um vôo, passei pela livraria. Meus olhos bateram no Lonely Planet da Mongólia. Folheei algumas páginas, o colorido das fotos me chamou a atenção e um nome me soou familiar: Naadam. Sim, o festival dos arqueiros, lutadores e cavaleiros! Acontece todos os anos, nos dias 11 e 12 de julho. Eu tinha cinco meses pela frente, tempo suficiente para me organizar para uma longa jornada a esse fascinante e tão pouco conhecido país.

O evento Eriin Gurvan Naadam – traduzido por “três tipos de jogos masculinos” – também celebra a independência da nação. Nesse ano, os mongóis aproveitaram o feriadão de cinco dias para se reunir em família, fazer piqueniques e assistir as competições. Embora algumas pessoas tenham saído da capital para curtir a natureza, muita gente do interior – com cavalos, tendas nômades e muita tralha – veio celebrar essa verdadeira olimpíada nômade em Ulan Bator.

A ocasião é tão extraordinária que os estandartes simbólicos das tropas de Gêngis Khan têm a permissão de sair do Palácio do Governo. Ao total, são nove pavilhões brancos, cada um confeccionado com rabos de nove cavalos. Significam paz e prosperidade. Os nove pavilhões negros são reservados para a guerra.

Os estandartes foram levados pelos cavaleiros da Guarda de Honra até o Estádio Central, protegidos pela polícia como um tesouro nacional. No estádio, cerca de 20 mil mongóis e visitantes esperavam os pavilhões. Entre eles, o presidente da Mongólia, Nambaryn Enkhbayar, e o príncipe herdeiro do Japão, Naruhito, de visita ao país.

A abertura do festival durou horas. Teve de tudo: as famosas canções “longas”, as danças tradicionais das estepes e os ritos budistas Tsam, com máscaras das divindades protetoras. Mas, para lembrar que estávamos no século 21, os organizadores também promoveram uma parada de motoqueiros, um desfile de moda e a apresentação de uma banda de rock, a Black Rose. Porém, a essência do Naadam ainda estava por acontecer.

…Duelo de titãs

Sentido hor ário, as máscaras Tsam usadas no desfile de abertura do Naadam; uma das corridas de cavalos em Khui Dollon Khudag. Na prova Shudlen, para animais de dois anos, o pó levantado pelos cascos criava um enorme tapete ocre, contrastando com a relva verde da estepe; e os oito lutadores que ganharam seis rodadas seguidas bailam a dança da águia ao redor dos estandartes de Gêngis Khan, sob os olhares atentos da Guarda de Honra presidencial. Destes, quatro lutadores ganharão a próxima etapa e serão considerados zaan, ou elefantes em português.

As competições de luta livre são realizadas no gramado do Estádio Central e 512 hércules foram selecionados para as nove rodadas. Como quem perde é eliminado, na oitava apenas sobram 256. Na seguinte, 128. E por aí vai, até chegar à final.

O Naadam é a grande oportunidade para que novos lutadores sejam reconhecidos pelo público. Nesse ano, a maioria dos lutadores famosos foi derrotada por novatos. A partir da quinta rodada, a torcida e os gritos do público podiam ser ouvidos de fora do estádio. Mesmo não chegando até a final, os 16 lutadores que ganham cinco adversários seguidos levam o título de nachin ou falcão.

VÁRIOS JOVENS conseguiram o título pela primeira vez este ano, dominando grandes campeões. Quem ganha sete etapas é chamado de zaan, elefante, e o grande vencedor da nona rodada é condecorado pelo presidente da República como Avarga.

O lutador veste um short apertado, geralmente azul celeste ou vermelho, e um colete com o peito aberto. Narra a lenda que, quando o colete era fechado à frente, uma mulher ganhou de todos os seus adversários masculinos, criando um tremendo mal-estar. Por isso, lutador hoje tem de entrar na luta de peito aberto.

A regra é simples: o primeiro que cair, tocando o chão com o cotovelo, joelho, costas ou cabeça, perde. Mas vale se apoiar com as mãos. Conversando com mongóis e atento aos duelos, notei que cada lutador tem dezenas de truques, desde dar uma rasteira no outro a segurar e levantar a perna do adversário.

A luta SIMBOLIZA coragem e bravura, mas TAMBÉM é um SHOW de elegância e graça

AS LUTAS, CHAMADAS de bokh, fazem parte da identidade mongol desde o século 13. Gêngis Khan fazia questão de manter suas tropas em boa forma física e motivava seus guerreiros a praticar bokh. Hoje, os lutadores são reconhecidos por toda a sociedade.

A luta simboliza coragem e bravura, mas também exibe elegância e graça. No final da disputa, o ganhador dá uma volta ao redor dos estandartes de Gêngis Khan e performa a dança da águia. A massa corporal de 120 ou 150 quilos parece se transformar em um frágil e meigo bailarino.

Sem dar trégua, passei ao estádio vizinho onde já haviam começado as provas de arco e flecha, com 280 arqueiros. As mulheres conseguiram romper o bloqueio de um Naadam “puramente masculino” e hoje também disputam a melhor pontaria. Mas, do jeito que os atletas se vestiam, parecia que a prova era um fashion show. As cores e o requinte das roupas, tanto para elas como para eles, chegavam a ser mais importante do que a qualidade do arco.

A veterana Alimaa contou que pratica o esporte há 17 anos. Ela se interessou pelo tiro com arco quando se aposentou, aos 50. “Não queria apenas ficar em casa”, disse. Durante sua vida ganhou mais de 30 medalhas. Ela me descreveu como é seu arco, que contém peças de chifre de cabra, madeira, couro de camelo e fios de plástico.

Para o piloto de avião e de ultraleve Alexander, 39 anos, se apresentar no Naadam como arqueiro significa reviver as proezas de seu ídolo Gêngis Khan. Amigo do figurinista que preparou as roupas para um filme sobre o grande conquistador, Alexander se vestia como um soldado das hordas mongóis do século 13. “Não estou de acordo com essas roupas de cores chamativas. Por isso, me visto como um soldado que vai à guerra”, diz.

As competições, sempre entre quatro arqueiros, se desenvolvem em várias rodadas. O objetivo é acertar nos quatro alvos vermelhos pousados no chão, mas os outros 26 alvos negros também contam pontos. Quando a flecha acerta uma das canecas vermelhas de couro, os juízes, que estão ao lado do alvo, levantam os braços e cantam hinos para celebrar a proeza.

Os mongóis acreditam que TOCAR o suor dos cavalos VENCEDORES, ou mesmo sentir a poeira deles passando perto, traz boa SORTE

Ainda bem que consegui uma carona, pois, caso contrário, jamais teria chegado a tempo para ver a corrida de cavalos.

A festa eqüestre acontece nas estepes poeirentas de Khui Doloon Khudag, a 30 quilômetros da capital. A mais importante disputa do primeiro dia foi entre os cavalos Soyolon, de cinco anos. São os mais velozes, um símbolo de virilidade e força.

Dizem os mongóis que tocar o suor dos cavalos vencedores – ou até mesmo sentir a poeira deles passando perto – traz boa sorte durante todo um ano. Por isso, além de meus amigos mongóis, uma grande parte da população da capital também estava fazendo o mesmo percurso. A multidão foi estimada em quase 200 mil pessoas.

Infelizmente, graças ao imenso engarrafamento, muita gente não chegou a ver o final da competição de 25 quilômetros. Correndo pelas estepes, ainda consegui fotografar os cinco cavalos vencedores que disputavam a primeira posição. Completaram esta corrida 187 alazões.

Outras cinco provas foram organizadas nos dois dias de festa. A mais longa de todas foi a de 27 quilômetros, para cavalos com mais de sete anos, enquanto que a mais curta, de 12 quilômetros, reuniu potros de um ano de idade. Na realidade, os animais percorrem o dobro, uma vez que o percurso de ida também é realizado a cavalo, mas a trote.

OS GRITOS DA MULTIDÃO foram aumentando à medida que os vencedores se aproximavam. Para surpresa de todos, o cavalo que liderava vinha sem jóquei. O segundo lugar tentava, com todas suas forças, ultrapassar o cavalo da dianteira. Porém, este, sem o peso do ginete, mantinha seu galope firme e cruzou a linha na frente. Entretanto, as novas regras do Naadam foram aplicadas: o cavalo sem jóquei foi multado em uma posição e passou a ser o segundo colocado .

…Marcas brancas

Na foto à esquerda, depois de cumprimentar o ganhador, o perdedor dá uma volta ao redor dos estandartes de Gêngis Khan dançando como uma águia. Ao lado, mulheres competem com arco-e-flecha. Abaixo, à esquerda, no final do Naadam, prêmios são conferidos a todos os vencedores. Embora as crianças sejam felicitadas pelo presidente, os principais homenageados são os treinadores e os proprietários dos cavalos. O número de marcas brancas no rabo do chapéu, no caso 24, mostra a quantidade de vitórias obtidas pelo treinador. À direita, os alvos são canecas de couro, as quatros vermelhas são as principais.

Consegui chegar um pouco mais perto dos jóqueis e fiquei espantado ao ver como os meninos (e algumas meninas) eram jovens e pequenos. O regulamento insiste que o cavaleiro tenha ao menos sete anos. Mas como na Mongólia a idade é contada por ano de vida – no caso o sétimo ano de vida – a maioria das crianças tem, na verdade, apenas seis anos. Como participar do Naadam é uma honra sublime, esses pimpolhos não têm o menor medo do galope ou da velocidade. A recompensa vale a pena: os cinco vencedores das seis corridas recebem seus prêmios diretamente das mãos do presidente da República!

Consegui furar o bloqueio dos policias para tentar falar com um dos meninos. Estavam exaustos, coitados. Foi quando me lembrei que deveria tocar um dos cinco cavalos vencedores. Ludibriei mais uma vez a segurança – imagine se todos ali presentes fizessem o mesmo – e passei meus cinco dedos no pescoço daquele que foi o quinto colocado. Mesmo não sendo um cavalo Soyolon, tenho certeza que terei um ano de boa sorte pela frente, até o Naadam de 2008.

O Naadam, a partir de 2008, será incluído como um dos 150 lances do Teste de Viajologia Mundial

Haroldo Castro, jornalista, conservacionista e fundador do Centro de Viajologia, viajou a Mongólia, seu 134º país, com o apoio da operadora sueca Nomadic Journeys (www.nomadicjourneys.com) e em parceria com a Sociedade Internacional de Ecoturismo (http://www.ecotourism.org).

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