Morar sozinho é um luxo que tem pouco a ver com solidão e segue uma tendência generalizada em países desenvolvidos.

Há quem diga que é coisa de eremita ou então puro egoísmo, típico da “era moderna”. Chega-se até a falar na “ruína da família” e no “fim do convívio em comunidade”. Entretanto, o crescimento no número de casas habitadas por uma só pessoa, no Brasil e no mundo, não significa necessariamente isso. A única realidade que a tendência reflete, sem deixar margem a dúvidas, é a prosperidade econômica da população. “Esse é um luxo a que só as classes média e alta podem se dar. Nas classes mais baixas a configuração é outra: as famílias são mais extensas, as mães, mais jovens, e as avós ajudam na criação das crianças”, afirma a psicanalista Junia de Vilhena, estudiosa do tema.

No Brasil, a “família unipessoal”, segundo os critérios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é a modalidade de moradia que mais cresceu nas últimas duas décadas. O censo de 2010 revelou que 12,1% (6,98 milhões) do total de residências no país são unipessoais. Há 20 anos, eram apenas 6,5% (2,4 milhões). E não se pense que o fenômeno é restrito às metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro: as cidades em que as residências de um morador mais proliferaram foram Fortaleza (106%), Goiânia (84%) e Recife (73%). A tendência é crescente nos países desenvolvidos. De acordo com o Euromonitor International, os campeões da moradia individual são Finlândia, com 47% das casas com um morador, Grã-Bretanha, com 34%, e Japão com 31%.

Apesar de predominante, o ímpeto por morar só não é “um movimento único, inexorável e unidirecional”, disse à PLANETA, pouco dias antes de sua morte prematura, o antropólogo carioca Gilberto Velho. Estudioso dos fenômenos urbanos, o professor fez questão de enfatizar que a cultura que desponta não é marcada pelo egoísmo, mas sim pelo individualismo. Embora os dois conceitos muitas vezes se confundam no linguajar informal, e até nos dicionários, para a filosofia, o egoísmo é um julgamento de valor e o individualismo, uma doutrina baseada no indivíduo. Mas também não se deve esquecer que “o dinheiro não traz felicidade, mas paga tudo o que ela gasta”, como dizia, com perspicácia, o jornalista, escritor e cartunista Millôr Fernandes.

“Os valores e a ideologia individualista coexistem com ideias tradicionais”, ressaltou Gilberto Velho. “Um não acaba com o outro. Ter mais opções é a grande questão, e a liberdade de escolha do indivíduo é uma das bases do individualismo.” Basta recordar que para os jovens saírem da casa dos pais, décadas atrás, era preciso assinar um contrato: o contrato de casamento. Durante suas pesquisas, nos anos 1970, Gilberto Velho observou que as mulheres que viviam sós eram objeto de desconfiança e costumavam ser vistas como “moralmente duvidosas”. Hoje a realidade é outra. Embora ainda não estejam livres da maledicência, elas já não são necessariamente estigmatizadas.

De acordo com a psicanalista Junia de Vilhena, ter uma casa só para si é criar um espaço de individualidade, o que é muito saudável para o crescimento pessoal de cada um, seja homem, seja mulher, jovem ou adulto, solteiro, casado ou viúvo. “Em muitas famílias não há espaço para o indivíduo. O sistema familiar pode abafar e sufocar. Não dá mais para idealizar o conceito de família. Acredito que o aumento dos lares unipessoais nos propõe uma reflexão: que tipo de família queremos construir?”

Individualismo e solidão

Embora a família ainda seja a instituição mais estável da vida social, as pessoas demonstram estar em busca de novas maneiras de constituí-la. Não por acaso, o próprio IBGE usa a definição “família unipessoal”. Também a evolução das leis respalda essas mudanças, reconhecendo novos direitos como a união homossexual e a adoção por solteiros. Pode-se dizer que o moderno reconhecimento legal da “união estável” chega a desencorajar um casal a viver debaixo do mesmo teto sem compromisso, já que, após dois anos de convivência sem contrato formal de casamento, o Estado entende que deve já haver partilha total de bens em caso de separação.
Com o desgaste do modelo tradicional, surgem novas formas de interação e relacionamento. Ao contrário do que dizem algumas vozes apocalípticas, o aumento das residências com um único morador não é um sinal de “atomização” da sociedade. “A ‘atomização’ acontece quando há pouca comunicação entre as pessoas, mesmo se elas estão muito conectadas virtualmente”, ressalta Vilhena. “Acho importante não ‘patologizar’ nem manter uma posição conservadora contra as mudanças. Não é um problema as pessoas quererem morar sozinhas e nem é devido a problemas de convivência com familiares que elas tomam essa decisão.”

Junia lembra que nem sempre uma casa com dois ou vários moradores é um espaço de troca. Muitas famílias disfuncionais podem promover isolamento coletivo. Ser sociável, ou não, depende do jeito de ser de cada um. Morar sozinho não define isso, embora possa reforçar características de quem já tem esse perfil. Já para os mais expansivos, ter um ambiente próprio de recolhimento costuma propiciar momentos de reflexão e tranquilidade. Isso lhes permite recarregar as energias para viver o ritmo acelerado de superinformação e superexposição típico das grandes cidades, onde está concentrada a maioria dos que optam por viver sós.

Entre os que estudam o tema, viver sozinho tende a incentivar a interação social. Isso é o que diz Eric Klinenberg, professor de sociologia da Universidade de Nova York e autor do livro Going solo: the extraordinary rise and surprising appeal of living alone (Vida só: o crescimento extraordinário e o surpreendente apelo de morar sozinho, em tradução livre), lançado recentemente nos Estados Unidos. Klinenberg entrevistou cerca de 300 pessoas que vivem sozinhas, ao longo de quase uma década de pesquisas, e concluiu que essa condição parece facilitar o convívio social, na medida que “na ausência de obrigações familiares, as pessoas que vivem sozinhas muitas vezes dispõem de mais tempo para participar de atividades sociais”. Ele se fundamenta em pesquisas que indicam a existência de 33 milhões de lares unipessoais nos Estados Unidos – 28% das residências no país –, segundo o último censo.

Chefes de si mesmo

Ao contrário do que se poderia imaginar, no Brasil, nem a cidade nem o Estado de São Paulo estão no topo da lista em termos percentuais – embora estejam incontestavelmente no primeiro lugar em número absoluto de moradores sozinhos. As maiores concentrações de unidades domésticas em que moram apenas uma pessoa estão no Rio de Janeiro (15,6%), Rio Grande do Sul (15,2%) e Mato Grosso do Sul (13,24%). Nas cidades do Centro-Oeste e do Nordeste a expansão também é notável.
Porto Alegre e Rio de Janeiro destacam-se. No caso da capital gaúcha, o alto número de lares unipessoais é dado pelas boas condições financeiras e por um maior acesso à educação. Já no Rio, o principal motivo para essa grande concentração é a longevidade da população. Diferentemente desses dois casos de destaque, que marcam os extremos de uma população jovem e outra idosa, a maior parte dos que optam por morar sozinhos no Brasil (46,3%) estão na faixa dos 30 aos 59 anos.

A renda per capita de quem vive só costuma ser 4,5 vezes maior do que a dos que convivem com uma ou mais pessoas, segundo pesquisa realizada pela consultoria Market Analysis, entre 2008 e 2011, com amostras representativas das nove maiores capitais do Brasil. “Os altos ingressos de renda são o fator que permite viver só. Esse grupo não se vê pressionado a buscar parceiros para unir forças e melhorar de vida, como costuma acontecer nas classes mais pobres. Com o aumento da renda, da escolaridade, da longevidade, da ocupação do mercado de trabalho pelas mulheres e da autonomia como modelo de vida, as taxas de lares unipessoais ainda vão crescer muito no Brasil”, comenta Fabián Echegaray, diretor da empresa.

Embora formem um grupo heterogêneo, as famílias unipessoais têm características que as diferenciam das famílias mais numerosas. Segundo o executivo, as mulheres tendem a ser maioria entre os chefes dos lares unipessoais: elas atingem uma expectativa de vida superior à do homem, estão cada vez mais independentes, são atualmente maioria nas universidades e – assim como os homens – vêm colocando sua rea-lização profissional antes do casamento e da maternidade. “O estilo de vida saudável e o consumo consciente também são mais definidos entre aqueles que têm a casa toda para si”, afirma.

É a renda adicional que permite bancar uma alimentação diferenciada, com produtos orgânicos, vitamínicos, peixes, laticínios reforçados e cereais, entre outros alimentos funcionais. Esse grupo de consumidores também apresenta maior posse de seguros, de investimentos e de previdência privada. E, por mais contraditório que pareça num primeiro momento, eles estão mais dispostos a adaptar suas vidas a um modelo sustentável. “O que motiva a preocupação ambiental é uma noção de coletividade. Portanto, não me parece que as pessoas que moram sozinhas estejam procurando se afastar da vida em sociedade ou não estejam nem aí para o bem comum, como se costuma supor. A decisão deles está mais relacionada com qualidade de vida”, contrapõe Echegaray.

Nichos de mercadoApesar do poder aquisitivo que o grupo demonstra ter, o aparecimento de novas ofertas de serviço e produtos voltados para suas necessidades ainda é tímido. Não vai muito além dos produtos comestíveis em porções reduzidas e saladas lavadas oferecidas por supermercado. A revista Living alone, publicada pela Custom Editora, em São Paulo, há quatro anos, é um exemplo do potencial desse mercado ainda pouco explorado.

“A ideia da revista surgiu numa mesa de café – quando meu sócio percebeu que quase todas as mesas estavam ocupadas por uma única pessoa. Contamos com a agilidade típica de uma pequena editora: não fizemos pesquisas de opinião prévia nem preparamos o número zero. Mesmo assim, o retorno que tivemos já no lançamento foi muito legal, sem ter feito ao menos campanha de marketing”, afirma o diretor da editora, Fernando Paiva. A única estratégia preliminar foi realizar um levantamento em 470 edifícios da capital paulista – prédios novos, tipo loft, duplex e studio, em que os apartamentos custassem entre R$ 400 mil e R$ 900 mil – para formar um mailing de leitores de 15 mil pessoas.

“Não quisemos abranger os flats porque o público não se encaixava por questões culturais e financeiras. Não queríamos gente morando sozinha por simples força das circunstâncias”, justifica Paiva. Com alta qualidade de papel e impressão, a revista evita ficar batendo na tecla de “morar sozinho” ao longo das suas páginas. Mas, naturalmente, as matérias passam por temas do interesse do público-alvo, que está na faixa salarial acima dos R$ 20 mil: arte, design, programas culturais, viagens, fitness, casa e decoração, curiosidades e atualidades.

No caso da construtora Borges Landeiro, de Goiás, a proposta para a tendência crescente é o empreendimento Santorini. A torre residencial de 336 apartamentos de 40 m2 a 50 m2, construída em Goiânia, oferece serviços que o morador só paga se usar, sistema conhecido como pay-per-use. Entre eles estão o de concierge, a lavanderia e a governança executiva. Além disso, outras comodidades estão incluídas na conta do condomínio, como os espaços planejados para três lojas e um restaurante panorâmico (com serviço de entrega aos apartamentos), espaço fitness e sala para reunião de negócios.

“É um sucesso: 100% das unidades de dois quartos foram vendidas antes do lançamento e as de um quarto se esgotaram menos de um mês depois da festa de inauguração”, diz a vice-presidente Camila Landeiro Borges. “É um modelo que, sem dúvida, queremos replicar em outros empreendimentos.” Segundo a executiva, a maioria dos compradores é de jovens ou investidores conscientes de que a busca por apartamentos de um e dois dormitórios é muito grande. Um imóvel no Edifício Santorini, lançado há menos de um ano, já vale 80% mais do que seu preço original.

Chegar ao formato certeiro para o empreendimento demandou pesquisas de mercado, por meio das quais a construtora identificou que a questão dos serviços tinha um peso grande para os chefes de lares unipessoais. “Quem mora sozinho tem um estilo de vida prático, privilegia a boa localização do imóvel e quer ter acesso rápido a certas coisas que facilitam sua vida”, define Camila. Esse público está disposto a pagar por isso, o que não tem nada a ver com egoísmo ou clausura, mas sim como uma opção de vida.”